terça-feira, 31 de agosto de 2021

Trivessia - DAIANA PASQUIM

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A cabana não era de qualquer das cores inventadas pelo homem. Era caprichosamente desenhada pela ação secular do vento e da umidade, dia após dia, com as mudanças das estações do ano. Definir em poucas palavras sua aparência, seria: surrada pela natureza. Isso conferia certo mistério para aqueles três metros quadrados. Com a porta entreaberta era possível enxergar as panelas amassadas de tantos cozidos, penduradas em um dos cantos, donde se revelava a metade de uma chapa sobre tijolos amontoados. Estas quatro paredes cobertas por palhinhas dispostas em feixe, lado a lado, protegiam da vida aquela senhora reclusa, não-vinda, mas nascida ali, como um broto de árvore que rebenta, cresce e vai se ramificando amplamente ao envelhecer.
A senhora da cabana detinha conhecimentos herbários aos quais a vila recorria: para picada de bicho brabo ou doença danada, daquelas que deixavam de cama. Ela era pouco vista rodando por aí, mas muito visitada, apesar de pouco amistosa, nunca negava um atendimento em caso de necessidade. Sua linguagem se traduzia muito mais em ações, que em palavras. A expressão corporal de acolhida, a mão estendida com o fruto, flor ou erva certeira, o aceno de cabeça e o olhar firme era toda a posologia que aquela gente queria. A senhora da cabana era dona de um olhar profundo e inspirava uma magnífica confiança. Era esse olhar que salvava seu vocabulário enxuto e preciso. Mesmo sendo tão prestativa à vila, sem paga nem reza, nutria uma solidão “ensimesmada”. Por mais que parecesse, a natureza não lhe bastava. Em seu passado, uma ruptura continuava ecoando.
Isso até o dia em que as gêmeas chegaram. Duas desgrenhadas loiras, madeixas compridas e entrançadas com vários fios solto moldados pelo vento, canelas finas e pescoços compridos. Mas o que denotava sem dúvida o parentesco era o mesmo olhar profundo e a escassa expressão vocabular. Suas presenças, contudo, tinham um “que” de alegre vistos naquelas pequenas flores em verde, no vestido acinzentado de um fundo que já foi branco.
De casa em casa, passaram pela vila em busca de algo, ou alguém. Primeiro, na dona Ana Benzedeira, depois logo começaram todos a falar das gêmeas viajantes. Inspiravam 17 anos. Até que um dia não restou mais dúvida: as garotas seriam da linhagem da senhora da cabana. Filhas, corriam à boca pequena, pela vila toda. Mas demorou para que chegassem lá. Por mais que tão logo aparecessem no povoado já soubessem da existência, demoraram alguns dias para perfilarem-se defronte àquela cor não inventada pelo homem. Foi naquele por de sol de sexta-feira que, lado a lado, apareceram em frente a porta da cabana. Não encontraram a velha logo de cara. Mesmo uma quase eremita estranhamente havia saído de casa naquela tarde. Quem sabe por que viria a ser aquela uma noite de pleníssima lua cheia. Aquela que costumam chamar de Lua de Sangue.
As gêmeas continuaram na soleira da cabana a aguardar. O sol desceu. De repente, as folhas das árvores em derredor puseram-se a mexer. Uma crescente onda se aproximava... o compasso da mãe anciã começou a acelerar. Seus olhos se encontraram. Anos de espera e separação. Mudas, naquela constante e familiar linguagem que às três mulheres lhe eram conferidas. A senhora da cabana diminuiu o passo, agora mais leve, menos constante. Não era possível o que os seus olhos traziam. Poderia mesmo confiar na íris?
Não eram gêmeas, eram trigêmeas. Pisando aqui na Terra, a senhora da cabana carregava sozinha aquele DNA triplo, que a deixava erma em si mesma. Quem sabe até mesmo por isso, encerrada o fosse: não era uma, era trina. Ao olhar-se no espelho d’água enxergava multifaces. O rio, dias mais cheio, dias mais vazio, com turbulências como a própria metáfora do estrangeiro que volta às origens. Útero é água. Em dado momento, estiveram as três unidas. Em apenas uma, o coração bateu. Tão cedo aprendeu que nunca se entra duas vezes no mesmo rio. Nem nós, nem as águas, seremos as mesmas. Recebeu a visita da terceira margem. Uma questão metafísica em sua loucura e solidão, do feminino com fluídos e ervas. O peito dela se aqueceu de travessias. Uma grande luz se antecipou da lua e a infusão aconteceu. O clarão fora de longe avistado.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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