quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Quando parei de subir em árvores - CÁTIA CASTILHO SIMON

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Como dizer em palavras o que havia acontecido? O que falar daquele amigo da família que ao me ouvir responder que não tinha mais ninguém em casa, forçou a porta e me jogou no chão? Como nomear o que aconteceu com o meu corpo que se contraiu e enrijeceu na esperança de ejetar o que violentamente se impôs entre as minhas pernas? Como chamar a um amigo que trai a confiança de todos assim? Inimigo? Não dá conta. Abusador é pouco, é outra coisa. As palavras que conheço podem descrever o que aconteceu a outras gurias da minha idade, mas a mim, não.
Agora fazia sentido a perturbação em sua presença. Estranhava a mudança de comportamento dele frente a meus pais; ignorava-me como se fosse invisível. Quando por acaso ficávamos a sós, em breves momentos, sentia o corpo esquentar como se o olhar dele me queimasse por inteira. Pelo canto do olho eu o via encarando-me, só desviava os olhos quando alguém se aproximava. Um dia tentei contar isso para a mãe que me cortou a palavra na hora. Disse que era coisa da minha cabeça e que o tal fulano era respeitoso como um filho. Ríspida, acrescentou que eu devia mudar as roupas que usava, pois não era mais criança. Então guardei todo aquele incômodo para mim, e não falei mais.
Atirada no chão, passei a mão entre as pernas e a viscosidade do sangue me assustou. Ele sequer me deixou falar, muito menos gritar. Faltou-me a voz e a energia necessária para escapar. A mão que me sufocou trancou todas as palavras, acho que até as engoli e ficaram atravessadas qual espinha de peixe na garganta. Nem sei mais a que hora do dia o fato aconteceu. Não saberia dizer por quanto tempo fiquei ali chorando encolhida ou puxando meus próprios cabelos pela raiva que me acometia.
Pensamentos desconexos me dominavam. Os comentários, dia desses, sobre uma menina morta pelo zelador do edifício retornaram feito flecha. Todos, todos aqui em casa colocaram a culpa na guria. Disseram que tinha facilitado, dado corda e enlouquecido o homem. E agora, como falar de mim? O que dizer? Iam me culpar por não ter mudado as roupas. Estava previamente condenada por insistir em agir como criança subindo em árvores, mostrando as pernas que resultavam lanhadas das insistentes aventuras que empreendia. Não conseguia precisar exatamente onde doía mais. Eu me doía inteira e aos pedaços. Por baixo da porta o vento e um pouco da água da chuva entraram feito um carinho que precisava, até que enxerguei o maldito shortinho embolado aos meus pés.
Esfregava o sabonete no corpo desejando apagar aqueles rastros, buscava palavras para dizer, para contar. Talvez a saída disso começasse por assumir a culpa de tudo - de qualquer forma o veredito estava dado, eu sabia. Alternava água fria e quente e não percebia a mínima diferença. Eu apenas desejava o jato forte da água em todo o corpo para lavar, limpar, quiçá esterilizar. Não sabia dizer o que sentia nem tampouco a quem contar, faltava-me a palavra.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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