segunda-feira, 8 de março de 2021

Relicário - ADRIANA MAYRINCK

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O ar quente, com o cheiro de maresia que só Recife tem, fazia-me sentir novamente em casa, quando ia passar as férias de verão. Uma lar que nunca deixei, ao mudar-me para o Rio de janeiro aos três anos de idade. Também sentia-me em casa nas areias de Copacabana. Mas metade das lembranças de infância, são do colo do avô paterno na rede, enquanto desenhava seu famoso burrinho (único desenho que sabia fazer), a avó sempre na cozinha, fazendo doces ou biscoitos (de Natal)... depois puxava a cadeira para longas conversas, sobre bons costumes, família e religiosidade. Na época, preferia ver os burrinhos ganhando forma, mas hoje, ainda ecoam as palavras da minha avó e seus olhos profundamente azuis e sua mania de mordiscar a língua.

A praia bem ao pé de casa, os coqueiros balançando junto com a brisa que acarinhava os meus cabelos e os passeios pelas ruas de Olinda e Recife, com uma caixa de “isonor” no colo cheio de sorvete de graviola, mangaba e pitanga. Sabores que guardo ainda hoje, que permanecem na lembrança das férias na casa em Pau Amarelo. O Avô médico (anestesista) e muito bem disposto com suas anedotas e um jeito muito peculiar de falar palavrão. A Avó professora, extremamente católica, vivia de terço na mão. Tantas estórias e histórias eu ouvia, naquele tempo que passava junto com eles e como adorava ver o avô de roupa e sapatos brancos ajudando aquela gente que aparecia no portão em seu dias de férias na casa da praia. E a avó com a chave na mão, trancando a dispensa, pois a comida da casa, só ela quem cuidava.

Sair daquele fresquinho perto do mar, sempre descalça e despenteada e ter que colocar vestido e sapato para almoçar na casa dos bisavós no calor escaldante de Recife era uma penitência, só esquecida ao chegar lá, olhar para aquela casa imensa, catar azeitonas pelo chão, que deixavam a boca e toda a roupa manchadas de tinta roxa, ou pegar carambola no pé e balançar tentando chegar às alturas no banco de balanço, que ficava na varanda para os velhotes apreciarem o final da tarde, e nós, primos reunidos de diversas idades, querendo que se transformassem em objetos voadores, sem sucesso. E aquela mesa enorme farta, que estava sempre arrumada com iguarias a qualquer hora do dia, todos os dias, para quem chegasse. A família tinha sempre que bater o ponto de encontro, e todos sabiam que ali era o porto, de chegada, de acolhimento, de fartura, de amor, chamado Mãe Berta (minha Bisavó). Tias, tios, primos, avós e bisavós, meus pais e irmãos, com suas vozes e risadas misturadas, me faziam sorrir e acreditar que era pra sempre. A Zefa (tb já idosa) e a Zefinha (não necessariamente mãe e filha, estavam lá toda uma vida, ajudando a manter a casa e a cozinha em ordem. Lembro de um quarto só com quadros de todos os filhos, netos, sobrinhos e bisnetos nas paredes, em retratos e de uma escada enorme com tapete cor de vinho que levava para um lugar que criança não podia entrar para não fazer bagunça para não incomodar a bisavó que descansava. O bisavô se foi, quando eu ainda era bem pequena. E apesar de bem velhinha, Mãe Berta (a bisavó) permanecia em sua cadeira, a balançar e a receber a família, com o passar dos anos, um pouco menor, netos adultos, bisnetos mais crescidos, casamentos, batizados, viagens e mudanças de cidades... Um dia, a bisavó, foi para junto do bisavô. A família silenciou e a casa foi vendida.

A minha avó (também Berta) assumiu a união da família, pelo menos uma vez na semana, fazia questão de receber em sua casa, bem menor e sem tanta mordomia esses encontros com a família, já bem mais dividida. Mas as quatro irmãs (Berta, Maun, Zeca, bem alvas e de olhos claros e Nelsa – negra com olhos de jabuticaba) sempre muito unidas, eram o que eu mais admirava, quando recebia as notícias da minha família em Recife. As minhas férias deixaram de acontecer, e no ir e vir do tempo... alguns anos se passaram sem ver os avós. O avô com a doença de Parkinson, já não mais desenha e não ouvia, sem a ajuda do seu aparelho auditivo, que desligava quando não queria chatear-se e um dia, dormiu e não mais acordou. E anos mais tarde, foi a avó que já não reconhecia mais ninguém com uma doença que a fazia esquecer a família, a casa da Mãe Berta e tudo o mais, o tal do Alzheimer. E a avó, após muito sofrer, foi para junto daquele que ela tanto se agarrava em seus terços e orações. Assim como o meu pai, o meu tio e três primas, que deixaram seus ecos naqueles encontros na casa da Mãe Berta.

Percebo a força feminina, de uma família regida em sua maioria, por mulheres.

As tias, tão velhinhas e queridas, ainda encontrando-se às terças-feiras na casa da Tia Maun, e a minha tia Preta, também vai, representando minha avó Berta.

Ao longe, com quase cinquenta anos e na outra margem do oceano, trouxe o livro que a minha tia Maum escreveu, e com ele nas mãos, esse LEGADO DE AMOR, à beira do Tejo, vejo imagens e relembro esse tempo bom.

Ficaram os ecos das vozes, os cheiros, os sabores e as presenças, das mulheres que deixaram lembranças e muita saudade. Que marcaram, meu tempo de infância e depois que tornei-me mãe, compreendi a importância da palavra família, aquelas lições que tanto a minha avó, queria me ensinar, quando puxava a cadeira e me chamava para sentar.

São ricas memórias, herança ancestral - guardadas em um relicário.

EM - ELAS E AS LETRAS (INSUBMISSÃO ANCESTRAL) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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