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Algumas pessoas nascem para nunca serem subjugadas. Não importa onde, nem quando, nem de que famílias proveem, não existem rédeas nem físicas nem imaginárias que consigam deter o seu espírito selvagem.
A Maria sempre foi assim: popular, conversadora, espevitada pronta para a festa e muito namoradeira. Uma mulher entre homens, irmãos e pai, e uma mãe sem mão nela. O choque entre duas mulheres, sempre foi evidente, lutavam pelo amor e admiração do marido e pai, como ferozes amazonas, fisicamente muito parecidas e iguais em feitio, mãe e filha. Quis o destino que morressem da mesma forma, com largos anos de distância, deixando que o tempo e o desgaste do corpo chegasse, como quem aguarda pacientemente pelo dia da morte.
Numa época em que as mulheres apenas aspiravam a casar e ter filhos, uma criatura rebelde, via-se assim, amarrada às vontades de um pai e de uma herança familiar e mais tarde presa aos desígnios da família que criou. Nunca quis ser uma mãe extremosa, fazia apenas o básico para manter o lar funcional, à sua maneira muito pessoal, mantinha tudo em ordem.
Cresceu nas montanhas e por isso era tão rebelde como o vento que habitualmente percorre as terras altas, um espírito livre completamente desajustado da época e do local onde nasceu. Ainda assim, sentia-se bem ali, era filha da terra. O enquadramento natural permitia que se deslocasse quase de forma imperceptível dos olhares das alcoviteiras locais.
Era ágil e astuta como uma raposa, conseguia contornar todos os obstáculos, quando a teimosia do querer muito alguma coisa lhe toldava a vontade, era impossível de demover.
Uma noite, em que sorrateiramente se esgueirou de casa sem que ninguém tivesse dado conta, para um encontro romântico, deparou-se com uma cena que nunca tinha presenciado.
A casa onde vivia era longe do centro da Vila, estrategicamente posicionada num vale solarengo onde a água corria em abundância e os terrenos férteis permitiam a sobrevivência de pessoas e animais. O caminho de terra batida até à Vila era duro e demorado, por isso, para conseguir chegar mais rápido e longe dos poucos olhares indiscretos que pudesse encontrar no caminho, escolhia quase sempre o caminho pelo meio da floresta, com árvores e vegetação alta.
Nessa noite, a lua estava cheia e iluminava os vales da cordilheira central como um holofote gigante. A luz natural ajudava a superar os obstáculos que iam surgindo no meio da floresta, apesar de conhecer bem o caminho quase de olhos fechados, a floresta nunca era igual de dia para dia, há que saber respeitar as alterações naturais do meio, como boa “raposa” que era, sabia isso muito bem.
A meio do caminho começou a ouvir sons, que pareciam uivos de lobos. Lobos? Sabia que andavam por ali, o pai tinha sempre a arma carregada em casa, pronta para abater qualquer animal selvagem que resolvesse atacar. Já estava bem longe de casa, sem que ninguém soubesse, por isso tinha de continuar!
A curiosidade superou o medo, o Carlos estava à espera dela e iria esperar, mas tinha de perceber primeiro de onde vinham os sons. Quanto mais se aproximava mais se distinguiam claramente os uivos, não pareciam sons de animais. Sentia-se um cheio intenso a queimado, seria uma fogueira? A caminho da estação quente, pareceu-lhe imprudente que fosse.
Era mesmo! Numa clareira na floresta estava um grupo de mulheres nuas à volta de uma fogueira gigante. A luz do lume era tão forte que só conseguia distinguir os vultos dos corpos nus, sem conseguir vislumbrar-lhes a cara. As mulheres uivavam e diziam palavras estranhas. Teve medo que a vissem, escondeu-se bem. Quem seriam?
Apontavam para o céu, numa espécie de adoração estranha à lua. Nunca tinha visto nada semelhante, não compreendia uma palavra do que diziam, o calor da fogueira sentia-se em todo o lado, conseguiu perceber porque não tinham roupa, era insuportável! Uma das mulheres abeirou-se da fogo e com uma faca fez um golpe no pulso, as pingas de sangue saltitaram em contacto com as chamas, quando esta se virou para pegar num pano para estancar o sangue, reconheceu de imediato o rosto da sua mãe!
O espanto, o pavor, a incompreensão, o calor fizeram com que corresse dali para fora, o mais rápido que conseguiu. Chegou ao pé do Carlos sem ar, a transpirar como uma bica, confusa, nervosa e sem conseguir articular uma única palavra. Ainda tentou por breves instantes contar o que viu, mas percebendo que ele não estava a conseguir acompanhar, disse-lhe apenas: andam lobos selvagens no caminho, por isso tive de fugir deles!
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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