segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Formigas aladas - ELIANA MACHADO

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Debruçada na janela, Guida trançava sua longa cabeleira negra, observando o movimento entre as ruas do Gasômetro e da Alfândega, no bairro do Brás. Praticamente nascera ali naquele imóvel amarelo que ficava na intersecção de ambas as ruas. Deixara a Itália ainda bebê com sua mãe e seu irmão mais velho, surdo de nascença. Não conhecera o pai. O patriarca havia morrido pouco antes de a família embarcar para o Brasil, na virada do século XX. Dele só se sabia que era siciliano; ali naquela casa o nome Giancarlo Ferrante era tabu.
Guida nunca se casara, porém era muito apreciada pelos moradores do bairro, principalmente por Manuel, um senhor elegante de uns sessenta anos de idade, que vinha todas as tardes jogar gamão com os amigos no bar situado ao lado da casa dela. O comércio pertencia ao mesmo lote que o de Guida, mas ficava na rua da Alfândega. Antes de chegar ao bar, Manuel passava diante da sua janela.
Boa tarde, dona Guida.
Oh, seu Manuel, boa tarde! O senhor já se curou da sua cefaleia? Sente-se melhor?
Mais do que ontem e menos do que amanhã, dona Guida. Não há de ser uma dor de cabeça que vai me impedir de sair. Além do mais, eu aprecio muito o verão; os dias vão ficando mais longos e os primeiros grupos de formigas aladas começam a aparecer. A época do acasalamento chegou.
Das formigas?!
Pois é, das formigas, dona Guida. As fêmeas saem das colônias para encontrar os machos. Após o acasalamento, o macho morre, a fêmea torna-se rainha e voa procurando um lugar para fazer seu ninho na terra. Quando o encontra, corta as asas, escava seu reino, deposita seus ovos e uma nova colônia nasce.
De uma morte, um nascimento.
O que disse?
Nada importante, seu Manuel. E então? Quem foi que ganhou a partida de ontem?
Ah, o resultado do jogo é o que menos importa. Dona Guida, a senhora me permitiria uma observação?
Pois não, seu Manuel. Adiante.
Não posso deixar de elogiar o seu magnífico penteado. Seus cabelos trançados destronam até mesmo os da Dama de Brassempouy1.
Gentileza sua, seu Manuel. Essa senhora é uma familiar sua?
Não, dona Guida. Essa senhora morreu há séculos! Bom, meus parceiros me esperam. Passar bem, dona Guida.
Obrigada, seu Manuel. Bom divertimento!

Na tarde do sábado, Guida pôs-se à janela para ver passar Manuel. A Lua despontou, as estrelas apareceram em transparência no céu e Manuel não passou.
No dia seguinte, da sua janela, Guida viu passarem vários homens vestidos de terno preto e chapéu. Esticou o pescoço em direção à rua da Alfândega e viu alguns deles reunidos na esquina, conversando circunspectos diante da porta do bar. Intrigada, pôs sua roupa de domingo, saiu de casa e foi até o bar. Uma nota escrita num pedaço de papel colado à porta anunciava o fechamento do comércio naquela manhã de domingo por causa do falecimento de um dos clientes: Manuel. A breve nota informava ainda que ele estava sendo velado na sala A da paróquia do bairro, na Rua Assunção.
Ao ler o aviso, Guida sentiu um aperto no peito. Movida por um sentimento inédito, entrou em casa como um autômato, indo diretamente para o banheiro. Resoluta, abriu o armarinho atrás do espelho, retirou uma tesoura de costura e cortou a sua trança na altura do pescoço. Quando viu a irmã com o cabelo cortado e solto, estupefato, Giuseppe balbuciou pela primeira vez seu nome:
Guida!
Guida não reagiu, e seguiu para o velório. Avançava com passos largos, apressados. Os saltos dos seus sapatos ressoavam no pavimento da calçada. Enquanto caminhava, seu corpo se endireitava, ganhando pouco a pouco em verticalidade e ligeireza. Sentia-se outra.
Chegando à paróquia, não viu ninguém na tal sala. Permaneceu alguns segundos parada próximo da porta, sem saber o que fazer. A sala era pequena e não recebia muita luz ; o que a iluminava um pouco eram as dezenas de velas acesas espalhadas por duas mesas que a mobiliavam. No meio dela, o féretro. Guida decidiu enfim aproximar-se para ver o rosto do seu vesperal e infatigável visitante. Inclinou-se sobre o caixão e, sem o pudor das outras vezes, observou cada detalhe daquele semblante amigo. Num ato quase instintivo, quis acariciá-lo, mas abortou o gesto. Olhou à sua volta e vendo que continuava a sós com Manuel, depositou-lhe um terno beijo nos lábios. Logo, enfiou a mão no bolso da saia, retirou a trança cortada, colocando-a debaixo do travesseiro do morto e saiu sem pressa. No corredor, deparou com aqueles homens de preto que tinha visto pela manhã. Eram os amigos de jogo de Manuel, que haviam se retirado da sala quando a avistaram aproximando-se do local. Ao vê-la saindo do velório, todos se viraram em sua direção, baixando a cabeça em sinal de reverência.
Na volta, antes de entrar em casa, sentou-se no banco da praça do outro lado da calçada e pôs-se a observar as formigas aladas no seu voo nupcial. Agora, mais do que nunca, Guida sentia-se uma mulher viúva.
***
Nota:
1. Vênus de Brassempouy ou Dama de Brassempouy, estatueta descoberta em 1894 em Brassempouy, cidade da França. Essa obra teria sido elaborada 23 mil anos antes de Cristo.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

1 comentário:

  1. Escrevi esse conto em homenagem a minha avó Tereza Ferranti Machado nascida na Itália, Calabria.

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