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Viajo ao longe, rememoro... A vida vagueia. E eu, nela, a tecer fiações de outrora. O presente, este? Esvai-se em minhas mãos como grãos de areia. Já não é. Aqui, agora, encosto minha face à sua. Relembro Clarice, sim, Lispector: Dá-me a sua mão?
Mãos dadas contigo, sigo. Mas, de novo Clarice insiste em cochichar. Escuto, Água viva inunda-me: o que estou fazendo ao te escrever? Estou tentando fotografar o perfume, devolvo-lhe. Nesse interim, GH: Por te falar eu te assustarei e te perderei? Mas se não falar eu me perderei. E por me perder eu te perderia.
Então, em supressões desaguo, preciso falar.
Borrões da memória, vislumbro: lá está ela, meu pai, as crias, nós, em lidas contínuas, em meio às tensões matrimoniais e outras marés, naquela ocasião. Depois, imagino, discrições, intensas ondas, transgressões, para não se perder. Ou, talvez não, e esta sua filha fique a saborear conjecturas outras. Sua história, portanto.
Logo cedo, aos 21 anos, Lila, minha mãe, casou-se.
Era o destino das mulheres naquela época. Pai, seu Tonho, como era chamado, com ela casou-se e a levou ao novo lar, distante de familiares, após os ritos matrimoniais.
Desde as primeiras semanas após o casório, a jovem esposa defrontou-se com a nova realidade, o papel de esposa: cuidar da casa, da roça, trabalhar na casa de farinha de familiares do esposo, além de se sentir estranha no ninho, por conta das diferenças culturais locais que iam de encontro às suas. Alegrias devem ter ocorrido, acredito, mas diante dos poços de mágoas aprisionadas nos porões da memória, com o passar dos anos minguaram. As estrelas dos seus olhos só se iluminam ao falar dos filhos, frutos do casamento.
O esperado príncipe, meu pai e suas transmutações amorosas, a saborear novos amores fora do lar, o problema principal do casal. Depois, a criação severa dos filhos, a desqualificação e a pressão da vida matrimonial.
A rua, a alegria dele. A casa, os dilemas dela em meio aos afazeres contínuos, a criar a prole e ajudar no sustento do lar. Para isso, vendia roupas na região.
Nem tudo era tristeza. Havia cantos, a brisa da roça e as crias a nascer com saúde, crescer e instigar o viver.
Ao anoitecer, às vezes, entre lençóis, reprimidas vozes a silenciar afetos rápidos, por conta da prole no pequeno quarto ao lado. Desses enlaces nascemos, povoamos o lar.
Pai, esbelto, cor retinta, sorriso faceiro, esmerava-se em elogios à esposa do compadre. Mãe desconfiava, nada falava. Era a esposa do compadre! Não, não podia ser! Quem acreditaria? Fingia nada ver. Engolia à seco. Entristecia.
Na garganta, uma espinha atravessada, essa. Nos olhos, lágrimas jorradas em silenciosa tormenta interior.
Tensões, aprisionava a dor. Aos filhos dedicava-se, a florir o caminhar entre espinhos e afetos esparsos do esposo.
E o tempo correu seu curso. Pai, após anos de romance com a mulher de seu compadre, mudou-se com nossa família para uma zona urbana da região. Do suposto romance, nada sabíamos, especulações, apenas.
Outra rota na nova cidade? Quem sabe! Enfim, pequena cidade havia as feiras aos dias de sábado e muita movimentação. Pai tinha uma barraca, onde vendia caldo-de cana, bebidas e doces. Mãe tinha uma banca de tecidos e confecções.
Eu adorava acompanhá-la. Gostava do ambiente, do mulherio a transitar e das diferentes gentes. Das irmãs e irmãos, que mais andava comigo, na época, era Neide. E, junto, nos dirigíamos à barraca de pai.
Ah! Meu velho! Lágrimas inundam minha face agora...
Seu Tonho! Um homem engraçado na rua. Sedutor, em sua barraca, a contar causos, encantar. Era comum ouvir:
– Seu Tonho, tô com uma sede danada, tem aí aquele caldo de cana gelado?
– E o velho abria um sorriso largo, tirava o palito da boca, o boné da cabeça, coçava e respondia:
– Oxente! Vou passar um agora, bem fresquinho, minha amiga!
E eu, ali, no cantinho, a observar, remoer ideias.
Instigações dispersas.
Tonho adentrava a barraca, pegava uma cana, raspava, amassava com uma barra de ferro e passava no moedor. O sumo, esverdeado, escorria suave. Depois, ele servia a cliente, o restante dava a mim e a Neide, quando lá estávamos. Ainda fico a salivar aqueles dias doces.
Minha mãe tinha carnes fartas e seios volumosos.
Usava vestidos coloridos, a delinear a cintura fina. Vendia roupas e tecidos na cidade e viaja a outras regiões, nas redondezas. Íamos e voltávamos ao anoitecer em ônibus ou carro comunitário, kombi, às vezes.
Da barraca pai só voltava à noite.
Em casa era comum ele não levar sua toalha ao banheiro. Antes, mãe enchia o balde com água morna e lhe entregava. Em nossa casa, na ocasião, não havia chuveiro. Do banheiro, ele gritava:
– Lila, minha toalha!
Após o banho, pai sentava-se à espera da janta.
Naquela rotina cresci. Via o cansaço de mãe.
Acalentava-a. Notava fios de tristeza em seu olhar, diante da vida dupla de pai. Mas ele negava.
Não entendia por que ele a traia, visto que enaltecia a família, a esposa, o lar! Eu, nada podia fazer, recolhia-me na condição de filha. Contudo, ideias foram surgindo.
As escondia.
Certa vez, desmoronando-se por dentro, mãe descobriu uma amante de pai e decidiu pegá-los no flagra.
Meu Deus! Temi. Tremi, mas torci. Quem sabe se ele não mudaria? Pensei. A mulher, desconfiávamos: era uma das clientes dele, as vizinhas de mãe diziam.
E se fosse verdade? Como ele reagiria? Tencionei.
Fiquei a imaginar o flagra! Eu e meus irmãos a acompanharíamos.
Plano traçado, dissimulamos. O que mãe faria?
Como pai reagiria? E a amante? E nós, os filhos, como ficaríamos? Não sabíamos!
Enquanto isso, pai seguia sua rotina. E as cenas se repetiam: minha toalha? Minha cueca? Meu jantar? E ela, de lá para cá, de cá para lá, a atender.
O esperado dia chegou! Tínhamos um carro antigo.
Meu irmão o dirigia. Estávamos em quatro: os dois irmãos, eu e mãe.
Era noitinha. Chegamos. Ficamos distante, escondidos, esperando pai abrir a barraca. Minutos depois, ele saiu da toca. A seguir, ela, discreta. Era ela!!! Zezé!!!
À espreita os acompanhamos. Chegando mais perto, mãe vociferou:
– Tá bonito, Tonho!
Zezé abaixou a cabeça, com ar de surpresa.
Disfarçou. Pai, no entanto, esbravejou:
– Bonito, o quê? Em casa conversamos!
E seguiram em silêncio. Nos entreolhamos.
Afastamo-nos. Naquela noite, tensões e choros.
Altas horas pai chegou. Ao encontro de meu irmão, o agrediu. Mãe interviu. Ele parou. Nos recolhemos, os filhos.
Dirigiram-se quarto do casal. Farpas verbais, trocaram. Mãe deixou ecoar a sufocada voz. Pai revidou, negou. Fez-se vítima. Ela, retrucou. Depois, as vozes serenaram, serenaram. Adormecemos.
O sol raiou. Acordamos. Ele também. Só saímos da cama após ele tomar café e ir para a barraca. Notamos, os olhos de mãe eclipsados estavam.
Com o passar do tempo, as águas se acalmaram, aparentemente, seguidas de grandes silêncios após pai adentrar nosso lar. A sós, confabulei ideias rotas para mãe:
– Mãe, por que a senhora não se separa, ou faz igual a dona Santa?
Sim, dona Santa que, certo dia, ao descobrir que o esposo a traía com outro homem, deu o troco.
Reaprendeu a amar em segredo. Quem sabia, nada dizia.
Por que mãe não fazia o mesmo? Pensava.
Um dia, não sei se imaginação aflorada, notei um senhor bonito, altivo, negro, proprietário de uma loja de tecidos, a se achegar, florear
palavras belas e ela, com muita educação, a dissuadir. Estávamos, na
época, na cidade de Caetano Veloso, o famoso cantor baiano, onde tínhamos
banca e, também, dona Santa.
Será, que...? Pensei. Dispensei depois.
Coincidência ou não, mãe reaprendeu a sonhar, sorrir e se enfeitar
mais. Até pai notou. Ela desdenhou.
Mesmo assim, o triangulo amoroso seguiu: pai, mãe, Zezé...
Os anos se passaram. Crescemos, as crias.
Ela, na casa dos 80, suspira, narra travessias. Ele, meu velho, anos
atrás, partiu para o orum. Zezé, depois.
Mãe, segue o caminhar. A vida, esta, como grãos de areia, escorre
suave, densa, aperta, aparta. Amores, des/amores, navegações. Ao longe,
rememoro...
Nessas reminiscências, Clarice, a Lispector e sua GH invade o pensar.
Acolho: Ah! meu amor, as coisas são muito delicadas: a gente pisa nelas
com patas humanas de mais (...) há coisas ainda mais delicadas que não
são visíveis.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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