quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Como nascem as estrelas - GABRIELA AMORIM

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– Mãe, como nasce as estrela?
– É o que, menina? – as mãos se perderam nos bilros. Lá fora as estrelas começavam a cintilar no lusco-fusco do fim das coisas.
– As estrela, mãe, de que barriga que vem? – quase onze anos de pura curiosidade.
– Onde já se viu barriga de estrela, menina? Que ideia! Caminhe pra dentro botar uma água pro café, vá! – toda vez que as perguntas eram maiores que seu saber, arrumava uma ocupação para a filha.
Achava melhor que a menina tocasse o real e aprendesse as urgências diárias a se perder em devaneios. “Um dia ainda endoidece com essas ideia, se deixar”, costumava alertar a si mesma.
A menina foi aviar a janta das duas, enquanto enumerava suas próprias hipóteses para responder àquele mistério. Já deitadas, ela sussurrou pra mãe que fingia dormir na cama ao lado:
– Estrela é bonito, né, mãe?! Parece até inventação... – A mãe sorriu e deu a bênção à menina. No fundo, se orgulhava muito de a filha ter aprendido a ler e escrever.

Mal amanhecido o dia, as duas já trabalhavam na roça. Os bichos, as plantas, a mãe a gritar pressas, toda a urgência e cansaço não deixavam a menina pensar direito sobre as estrelas e os partos. Mas a caraminhola já estava posta na cabeça. Finda a jornada matinal de trabalho, desabalou carreira para a escolinha do povoado.
Era uma casinha miúda de dois cômodos, as crianças de todas as idades se amontoavam numa sala de chão batido com quadro de giz pintado na parede. A professora, única para tantas ensinagens, equilibrava todas as impossibilidades na ponta do lápis. A menina já tinha terminado o ciclo básico de estudos.
A mãe até a mandara por uns meses para a escola na sede da cidade, mas ela era bicho arredio: esmurrou a valer o primeiro menino que ousou rir de suas sandálias rotas e sua dificuldade com os números.
Era melhor não criar caso, disse a mãe, “fique mais eu na roça esse ano, e para o ano nós vê o que será”.
A menina sonhava em ir para a capital, usar sapatos fechados e ter uniforme branco para a escola, mas se desgostava muito dos meninos que riam de si.
A mãe já tinha ido pra capital, mas falava pouco desse tempo, a filha sabia só o que pescara das conversas dela com sua avó. Tinha trabalhado em casa de família, se assustava da imensidão da cidade e da infinitude do mar. Voltara para roça prenha, construiu a casinha de dois cômodos nas terras da mãe com o pouco dinheiro que juntou e quedou-se por ali a trabalhar as terras e cuidar os bichos para que a mãe–avó descansasse sua velhice.
A menina em frente à escola escarafunchava o chão à espera do fim do turno. Quando as crianças correram pelo terreiro em algazarra, entrou na sala de aula pedindo licença.
– Chegue pra dentro, Kellen. Deu saudade da escola? – riu seu riso cansado. A professora gostava da menina.Trocaram as gentilezas de praxe, e então a ex-aluna soltou sobre a mesa:
– É que eu tô caraminholando uma coisa desde onte: de onde nasce as estrela, fessora? – Sentia-se à vontade de perguntar a ela, pois sabia que não haveria riso nem troça.

– Eita, que essa é difícil, viu, Kellen! – Riu satisfeita da curiosidade – criança. – Vou lhe emprestar um livro que explica isso direitinho. Você leve e não tenha pressa em devolver, viu?! – Foi falando enquanto cavoucava na estante um livro de Ciências. Marcou a página com uma dobradura na ponta, e estendeu a resposta para a ex-aluna.

Kellen se agarrou no livro, murmurou um agradecimento e correu o caminho de casa. Por dois dias, tentou decifrar a ciência do nascimento das estrelas, num se entender e desentender com as letras. Era uma conversa difícil sobre nuvens de gás, nebulosas, fusão de não sei o quê. Desistiu. Foi ter com a avó: os mais velhos é que sabem.
Sentada na mesa de fórmica azul tomando um café com pão com a avó, deitou sua pergunta na conversa: “Vó, como nasce as estrela?” Ela riu, gostou do desafio: “Mais velha me disse, fia, que é a Lua quem bota estrela no céu. A Lua é quem guarda as água tudo da Terra: a maré, os rio, as água das barriga das prenha, o sangue das mulher feita, inté nossas lágrima. E cada lágrima que as mulher chora aqui na Terra, a Lua prende uma gota lá no céu pra mó de a gente lembrar, pra mó de todo mundo saber o tanto de lágrima que nós e quem veio antes de nós já chorou”.
A avó sabe mais do que todo mundo, disse pra si a menina.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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