sexta-feira, 10 de julho de 2020

Silêncio eloquente - IZILDA BICHARA

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Levou o prato vazio e os talheres para a pia e dobrou com cuidado a velha toalha estampada de legumes coloridos. Depois colocou a fruteira sobre a mesa da cozinha e verificou se estava tudo em ordem. Na sala, sentou-se um pouco na velha poltrona desbotada, àquela hora ainda batida de sol. Sua gata estirou-se no tapete.
Também ela gostava de se aquecer depois do almoço. Há quanto tempo não saia de casa? Uma semana?

O fato é que, desde que perdera a voz, também perdera um pouco o gosto por sair. Como tinha acontecido, não sabia. Talvez tivesse sido por falta de uso.
Um dia, ao perguntar, pelo interfone do prédio, a que horas voltaria a energia elétrica, sua voz simplesmente não saiu. Assustou-se, naquele momento, tentou pigarrear, tossir, gaguejar. Nada. Estava muda. Totalmente muda e na escuridão. Colocou o fone no gancho angustiada, enquanto o porteiro retornava a ligação com insistência. Não atendeu mais. Não conseguia emitir nenhum som! Nem naquele dia, nem nos que se seguiram.

Pensou, a princípio, em procurar um médico, mas sequer conseguiria marcar a consulta, quanto mais dizer ao doutor o que se passava. Desistiu. Quem sabe um dia sua voz voltasse? Ou não. No começo foi bem embaraçoso. Já não dizia bom-dia para o porteiro e para os vizinhos no elevador. No máximo, sorria. Mas isso não fazia a menor diferença para eles.

Depois do susto inicial, começou a desenvolver algumas técnicas.
Levava sempre tudo anotado num papel, como se estivesse temporariamente afônica, ou, então, fingia-se de antipática e mal-educada para evitar conversas em filas e salas de espera. Algumas raras vezes, quando a palavra se fazia mesmo necessária, limitava-se a balançar positiva ou negativamente a cabeça, ou apenas olhava para o interlocutor como se fosse uma estrangeira, alheia por inteiro aos significados do idioma.

Havia momentos de resignação. Que importância tinha não ter voz? Talvez fosse melhor assim. Poderia ficar mais tempo vendo televisão, entendendo-se com a gata, driblando a vida com a magra aposentadoria.

No entanto, as palavras que não mais lhe saiam pela boca começaram a inundar sua cabeça. Passou a ter sonhos agitados, cresceram suas indagações e percebeu que, em seu silêncio, estava cada vez mais cheia de ideias. Os livros tornaram-se grandes companheiros, porque a levavam sempre a lugares novos, ampliavam seus pensamentos, provocavam-lhe reflexões profundas e sentimentos sutis. Muitas vozes surgiam, mais e mais, em sua cabeça e, então, começou a escrever para registrar as ideias ou para, timidamente, se expressar pela internet.

Mais tarde, passou a escrever para dar vazão ao que sentia e imaginava e então percebeu que suas palavras também podiam viajar por lugares distantes e fazer eco em outras pessoas. Sim. Havia outras pessoas como ela. Outras mulheres. Mulheres de etnias, classes sociais e orientações sexuais diversas. Mulheres jovens e velhas. Mulheres apaixonadas, sonhadoras, inspiradas, sofridas, injustiçadas, guerreiras. Todas sem voz, mas nem sempre caladas.

Ela se levantou da poltrona, abriu um pouco mais a cortina da sala e foi se sentar diante do computador. A gata se espreguiçou e, depois de um longo bocejo, tratou de se acomodar no colo da dona. A luz do sol, naquele início de tarde, as aquecia e iluminava. Eram cúmplices no silêncio, mas havia muito a dizer.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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