quarta-feira, 1 de julho de 2020

Para ler depois do exílio – I - CLARISSA COMIN

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Esse ano vai ser promissor, você disse. Como quem pressente, passamos a virada ao som de canções de protesto e de telefones que não paravam de tocar. Atacava-me a tendinite enviar mensagens através daquele celular, apertando com força bruta as teclinhas, conta-goteando um texto de 140 caracteres para cada familiar (ainda não havia a opção copiar e colar). Por isso, rendia-me aos chamados e para fins de organização atribuí um toque diferente para cada departamento - a) familiares próximos; b) familiares distantes; c) verdadeiros amigos; d) ex-amantes; e) colegas de trabalho; f ) semi-conhecidos.
Enquanto você, sagaz, desligou seu aparelho bem antes da meia- -noite e deliciou-se com o meu desespero. Querida, é sempre divertido te ver atarantada, derrubando bebida na toalha de mesa, afugentando o cão com pontapés invisíveis, gastando a potência desconhecida de suas cordas vocais e, em seguida, rir de você virando para os lados, com a cabeça na minha direção, e perguntando, meio desentendida “Pra que foi tudo isso mesmo, hein?”, enquanto abana as mãos freneticamente, como quem apaga os últimos vestígios de um incêndio, rindo síncopes ritmadas.

Sim, depois de muito queimar as orelhas no visor decidi que merecia tomar todas, como soi, e você, numa sobriedade irritante, engravidava- me os ouvidos com seus planos, resoluções, promessas definitivas, que não se realizariam, evidente. Eu não seria capaz de reproduzir esse monólogo na íntegra, mesmo que pudesse fazê-lo, afinal este relato não passa de pura ficção, científica, dirá a oposição desdenhosa, mas, de todo modo, ficção. A única coisa que lembro com nitidez - afinal reconheço momento com vocação para memória - foi quando você constatou que
a palavra-trovão, na abertura de Finnegans Wake, tinha exatamente cem letras, e isso não era por acaso, e isso só poderia significar alguma coisa. Sorri, sorrimos, entrei num estado nebuloso de semissono, embalada pela (sua?) voz potente que, pouco a pouco, distanciava-se e transpunha-
se para o meu sonho.

Não lembro como finalmente adormeci e muito menos como fui parar na cama. Mas lembro que sonhei com a gente numa lancha bacanuda, estilo 007 Live and let die, e quem a conduzia era um velhinho japonês, com um senso de humor irretocável, nos metralhando com piadas, e dizendo, nos espaços espasmódicos dos risos, que estávamos em alto mar e somente um milagre nos salvaria da sequência de ondas, deslumbrantes, de um azul tímido, nos abraçando afetuosas, tigresinhas criadas no quintal de casa. Na primeira, rimos junto com o japonês, cujos olhos permutavam-se com o sorriso, reforçando mais ainda a confiança que nele depositávamos. Na segunda, a lancha quase nos vomitou para fora, senti minhas mãos suadas procurarem algo como uma saída de emergência, algo impossível porque antes mesmo desse gesto terminar uma terceira onda, do tamanho de um edifício de quatro andares, nos capturou, volta mortal daquela montanha-russa, a maior do mundo,
Guiness Book 2008.

Corta.

Escapamos, só eu e você, com alguns arranhões e esparadrapos envolvendo as cabeças, não sabíamos do japonês, aliás, era como se ele nunca houvesse existido. Embarcávamos em um avião estilo zepelim, na condição de imigrantes ilegais, esperando a última chamada para não sermos descobertos. Faminta, matava uma lagosta, decepando-lhe a cabeça, num só golpe fatal, uma onda vermelha embebia o corredor, novamente a lancha, o japonês, as mãos suadas, corta, só via você.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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