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Há histórias que valem a pena contar, porque fogem às linhas retas, descarrilam dos carris, despenteiam as certezas, impõem-nos pontos de interrogação, como bengalas presas ao semblante.
Josefa remexeu a fogueira com um tição e passeou os olhos intensamente azuis pelo rosto dos presentes, um a um. À sua volta, sentados no chão de pedra ou em bancos de madeira improvisados, aninhavam-se uns contra os outros, num pequeno círculo imperfeito, umas dúzias de
moradores temporários, da pequena aldeia. No verão o lugarejo enchia-se de vida, com o regresso dos “avecs”, que ano após ano voltavam aos magotes, sacudindo a pasmaceira e o sono do inverno e provocando um verdadeiro reboliço. Em noites como esta, acendia-se uma fogueira na praça e como por magia o pessoal ia-se juntando, e ali ficavam cinzelados uns aos outros, para ouvirem as histórias da velha Josefa. Ela seguia sempre o mesmo ritual, depois de um silêncio que crepitava de ansiedade, vestia uma gravidade respeitosa, de quem tem algo sério para contar e encavernava a voz: E a história começava solenemente.
A noite estava quente, tão quente que parecia que a porta do inferno se tinha escancarado para atentar os mortais e até há quem diga que no ar pairava um hálito a enxofre. Certo e sabido é que estava quente para uma noite de novembro. A lua nova, desenhada a lápis, marcava presença num céu pontilhado de estrelas. Era já tarde e as ruas estavam desertas. Os grilos cantavam serenatas e ouvia-se o ribeiro a correr no seu leito. Colados à noite, como se de uma única pessoa se tratasse, seguiam de braço dado, um casal jovem que já há algum tempo agitava o lugar pela sua peculiaridade. Eram as únicas almas viventes a calcorrear a calçada que vai dar à torre do sino. Diz-se que não temiam nada nem ninguém, escarneciam do medo, alheios aos comentários maldosos e
acusadores. O povo apelidou-os de “canibais” (porque se comiam um ao outro com os olhos), ou eram uns verdadeiros selvagens, digo eu. A verdade é que nunca ninguém soube os seus nomes.
Josefa fazia uma pausa e perdia o seu olhar para lá da fogueira e dos rostos atentos, como se por momentos se perdesse no tempo. De facto perdia-se na noite entrançada de memórias.
– E depois? E depois, Josefa? – Perguntava alguém do público.
O silêncio ali ficava pautado pelo bater de muitos corações.
– E depois, - dizia ela: ouviu-se um grande estrondo que ecoou em toda a aldeia e a noite calou-se. Tudo ficou em silêncio. Ninguém se atreveu a sair até a aurora pincelar as janelas dos primeiros raios de sol.
Os moradores então saíram do ventre das casas, a medo, e varreram os caminhos à procura da explicação para o sucedido. A única coisa que encontraram junto aos pés da torre foi a roupa do jovem casal, caída no chão, como se tivesse sido tolhida por uma fúria impiedosa. E deles, nada.
Há quem diga que o inferno os arrecadou, que Caronte veio buscar o que era seu. Outros dizem que eles se cansaram e foram-se embora, mas isso não explica o grande estrondo. A verdade é que nunca mais ninguém os viu.
– E tu, Josefa, o que achas que aconteceu? – Perguntavam.
E a Josefa respondia: Eu creio que deixaram o inferno na aldeia, pois nunca mais houve paz.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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