domingo, 26 de julho de 2020

Início de primavera - SILVANA SALERNO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Voltando para a capital, vinha ele pela rua afobado. A vizinha, que estava na janela, estranhou. O que teria acontecido? Voltar assim pra casa no começo do dia quem trabalhava tão longe, e ainda por cima antes da hora do almoço... Boa coisa não deveria ser.
Alfeu demorou a encontrar a chave de casa no bolso da calça; via-se que estava nervoso.
“Ainda bem que só a dona Dinorá está na janela”, pensou, um pouco aliviado. “As outras mulheres da vizinhança ou estão no trabalho ou estão preparando o almoço”. Mas ele sabia que isso não era consolo; num instante, dona Dinorá correria a vizinhança com a notícia. E, mais do que isso: logo mais bateria à porta dele pra saber se estava bem, se precisava de alguma coisa.
O rapaz afastou esses pensamentos e se concentrou no aspecto positivo da cena enquanto girava a chave na fechadura. Subiu de dois em dois os degraus para o quarto e pegou o banco para alcançar o alto do armário. Com dificuldade, puxou uma caixa escura, que estava escondida bem lá no fundo. Desceu do banco com ela e se jogou na cama, como se estivesse exausto pelo esforço feito.
Tirou os tênis velhos e as meias furadas e se estendeu na cama de casal, abrindo braços e pernas, como se quisesse ocupar todo o colchão. Sua respiração estava rápida... parecia que tinha subido o morro correndo. Olhou para o teto com os olhos fixos, daquele tipo que o sujeito olha sem ver, enquanto o suor escorria de sua testa. Passou a mão pelos cabelos, completamente empapados. Baixou os olhos do teto para a caixa a seu lado e os fechou em seguida. Aos poucos, sua respiração foi retomando o ritmo normal. Estava quase cochilando quando ouviu batidas na porta.
“Essa não é a dona Dinorá”, pensou imediatamente. “Isso é mão de homem, ou melhor, arma de homem. Deve ter batido com um porrete ou uma barra.”
Alfeu não teve esses pensamentos deitado. Assim que ouviu as batidas saltou da cama em silêncio, abriu a caixa, pegou um pacote, pôs no bolso da calça de brim e correu de levinho para o banheiro. “Ainda bem que estou descalço”, pensou aliviado, como se a situação que vivia algum alívio tivesse.
Subiu na privada, tirou umas telhas e pulou para o telhado. Enquanto isso, as porradas na porta haviam parado. A pessoa devia estar entrando pelo quintal, onde era fácil pular o muro e arrombar a porta da cozinha.
Lá do alto, olhou ao redor e rapidamente traçou um caminho pelas casas mais baixas.
Já estava no telhado de dona Dinorá quando o elemento invadiu sua casa. Dava para ouvir de longe o barulho que o cidadão fazia dentro da casa, derrubando e quebrando tudo pelo caminho, abrindo gavetas e virando tudo pra fora, jogando objetos e roupas dos armários no chão. Quando entrou no banheiro, viu as telhas mexidas e saltou depressa para o telhado.
Alfeu já estava longe. Apesar da chuva que começou fininha e foi engrossando, fazendo-o andar mais devagar, ele já tinha atravessado o telhado de umas tantas casas.
Quando chegou à casa do sr. Honório, sentou-se no telhado e foi baixando, agarrando-se a reentrâncias da parede e ao vão da janela até chegar ao chão. Correu para uma viela no meio do mato, pouco usada pelos moradores do bairro, e estava descendo o morro quando ouviu passos.
Sem parar de correr, coloca a mão no bolso e tira o pacote com a mão esquerda. Os passos vão se aproximando. Percebe que tem mais gente, não é apenas um, e o seu sinal de alerta se acende. Sai da pista e entra para o mato; sobe na primeira árvore que encontra, procurando se esconder entre seus galhos e folhagens. Do alto, vê duas crianças que descem o morro apostando corrida.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

Sem comentários:

Enviar um comentário

Toca a falar disso