segunda-feira, 6 de julho de 2020

Faz-se tarde - FÁTIMA D'OLIVEIRA

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O que primeiro as uniu foi a singularidade dos seus nomes: Maria Goretti e Maria de La Salette. Enquanto que uma tinha um nome de origem italiana (1), a outra tinha um nome de origem francesa (2). Apesar de virem de sítios diferentes, de moverem-se em círculos completamente opostos e de morarem em partes distintas da mesma cidade, a atracção, aliada a uma irresistível curiosidade, era por demais evidente.
Estudavam em escolas que não podiam ser mais diferentes – enquanto que uma frequentava um colégio privado, a outra andava numa escola pública –, mas no âmbito de um programa inter-escolas que visava o conhecimento para além das diferenças, assim como a sensibilização para a realidade de cada um, conheceram-se numa mesma visita de estudo: assistir a uma peça de teatro, “Bem está o que bem acaba” de William Shakespeare. Depois do espetáculo havia um debate sobre o que tinham acabado de ver, moderado pelos professores que os acompanhavam, com todos os participantes em pé de igualdade e onde cada um podia dizer de sua justiça. Apesar da má-vontade e ainda que contrariados – ninguém, entre os alunos, via aquela história do debate com bons olhos: não gostavam da ideia de misturas e não achavam graça à ideia do convívio, ainda que forçado, com, por um lado, a ralé e, pelo outro, com um bando de meninos queques e copinhos de leite –, o debate revelou-se uma agradável surpresa, recheado de ideias e pontos de vista interessantes, suportados por argumentos válidos, quer dum lado, quer do outro. No debate, para uma melhor e mais rápido reconhecimento de cada um, todos estavam identificados com uma etiqueta com o nome. E foi assim que cada uma reparou na outra. Maria Goretti e Maria de La Salette. E foi também ali mesmo que se assistiu ao nascimento de uma improvável aliança, para além da compreensão de quem as rodeava.
“Mas vocês não têm nada a ver uma com a outra”, era a frase mais ouvida, quer dum lado, quer do outro, seguida de “Tu não pertences ao mundo dela”. A todos esses comentários e mais algum, fizeram questão de fazer orelhas moucas e ouvidos de mercador. A vontade de se descobrirem uma à outra crescia a olhos vistos: havia uma pressa premente, uma urgência absoluta de mergulharem uma na outra e de encontrarem a verdade de cada uma. De se perderem mutuamente e se acharem juntas. Unas. Não o sabiam pôr em palavras: apenas sentiam que o tinham que fazer antes que fosse tarde demais. Porque sabiam que se estava fazer tarde.
Porquê e para quê, não o sabiam.
Mas sabiam que se fazia tarde.


1 Maria Teresa Goretti (n. 16/10/1890, m. 06/07/1902) – jovem católica italiana assassinada aos 11 anos, venerada como santa e mártir
2 La Salette, nos Alpes Franceses – montanha onde a Virgem apareceu a duas crianças, a 19/09/1846

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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