quarta-feira, 17 de junho de 2020

O relógio inglês - MARIANA MORETTI

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O patrão ralha com os trabalhadores da estação.
– Três dias pra socar meia dúzia de tábuas no chão?
Está a se referir sobre a colocação das dormentes.
Não espera resposta de nenhum dos homens, espera que a pergunta bata feito martelo na cabeça e pregue as malditas peças de eucalipto no chão da ferrovia.
Feito Cristo pregado na cruz é a sina dos que tinham muito, convivendo com os que tinham muito pouco.
Cego de raiva, aponta para o vigilante imóvel que pende do teto da estação – o robusto relógio inglês – e volta a se trancar na sala. Mesmo sabendo que o povo é educado desde sempre a olhar para o céu e compreender que o sol só levanta pra reger o trabalho, os ingleses acham que o maquinário imponente da Maria Fumaça merece a presença do relógio de madeira adornada. Sua rigidez não orna com a paisagem tropical, com os entardeceres alaranjados e úmidos e com os casais que se metem nos cantos escuros para trocarem fluidos e juras efêmeras. Mais que isso, o relógio inglês é a autoridade quando o homem enfezado está perdido no mar de contas e suspiros de quem nunca viu um pôr do sol como se deve.
– Valha-me, Deus! – exclama o dono das mãos, do suor e do tempo daquela gente toda.
Puseram as dormentes com afinco e se riam da surpresa, já se organizando para captar o dinheiro da aguardente. Aguardente, enfim, rima com fim de expediente.
– É que o povo vem acertar o relógio com o grandão aí. Hoje ele cansou de girar e ninguém veio prosear.
O relógio foi retirado a machadadas no dia seguinte, sob gritos de felicidade dos trabalhadores a cada parte que se espatifava no chão tropical. Vitória do nascer e do pôr do sol contra a rigidez dos dias.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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