Agradecemos à autora TECA MASCARENHAS pela disponibilidade em responder ao nosso questionário
1 - Qual a sua percepção sobre essa pandemia mundial?
Como habitante desse planeta desde a segunda metade do século XX, é legítimo afirmar que já vi milhares de cenários se descortinarem; claro está que de muitos eu fui apenas espectadora, enquanto em muitos outros atuei efetivamente.
Mas jamais, nem nos meus piores pesadelos, eu pude imaginar protagonizar tempos tão tenebrosos quanto os dessa pandemia, a segunda a se espalhar em escala mundial depois da devastadora Gripe Espanhola, de 1918.
Numa cruel coincidência, exatamente
um século após, a Covid-19 se alastra violentamente por todos os continentes e
impõe urgentes políticas sanitárias, econômicas e humanitárias a fim de atender
os infectados, conter seu avanço, proteger a população e, nos extremos do
infortúnio, sepultar seus mortos.
Infelizmente, o que se depreende
sem muito esforço cognitivo é que, enquanto líderes de organismos multilaterais
esforçam-se em promover as mais urgentes e amplas estratégias de ação global,
baseados nas pesquisas científicas de ponta já produzidas e se produzindo; por
outro lado, na contramão de qualquer razoabilidade, o conhecimento científico
construído historicamente durante séculos é negado e/ou desprezado por uma
imensa parcela de pessoas; e o que é muito mais grave, nela se destacam os
principais responsáveis pelas tomadas de decisão e exemplos numa sociedade,
tais como, chefes de Estado, representantes de instituições e de partidos
políticos, guias religiosos, grandes empresários; o que sem dúvida obstaculiza
e impede o avanço urgente das soluções, enquanto assistimos crescer
exponencialmente o número de seres humanos dizimados, ao nosso lado e mundo
afora, por essa doença avassaladora e letal.
2 - Enquanto autora, esse momento afetou o seu processo produtivo? Em tempos de quarentena, está menos ou mais inspirada?
Inicialmente, considero forçoso dizer que a pergunta seria bem mais adequada se indagasse em que medida sou afetada por esse momento. Como costumo declarar, eu sou uma pessoa que escreve, uma poeta; e não existo “enquanto isso” ou “enquanto aquilo”; sou o mesmo ser humano, indiviso, complexo e multifacetado como todos os demais seres humanos, exercendo diferentes atividades. Minha produção intelectual está em permanente diálogo, muitas vezes em embate, com minhas idiossincrasias e com o universo que me circunda e permeia; assim, como afirma o filósofo Ortega y Gasset (1883-1955), eu sou eu e minhas circunstâncias.
Há um poema no meu livro que será publicado ainda nesse semestre (nem parece que é AVESSO) que assim diz
EU VIVO A VIDA À FLOR DA PELE
o nervo exposto
a carne viva
não há nada que não me
capture o olhar
sofrimento alegria
não há nada que não me
cale à fímbria
paixão nostalgia
não há nada que não me
aguilhoe a alma
felicidade agonia
eu vivo a vida que me cumpre
a que eu engendro
e a que me resta
e a tua e a deles
— eu vivo a nossa vida
O nosso grande poeta Vinicius de Moraes declarou que o que o inspira é a vida. Para mim, não é diferente. Mas não me refiro à inspiração no sentido que lhe dá o senso comum, como uma dádiva; a inspiração para mim resulta sempre de uma inquietação, que pode ser mais emocional ou mais crítica, contudo, sempre é fruto de uma inquietação interior. Quase assim como uma perplexidade prestes a ser atingida pela luz da palavra.
Quanto à minha produção poética no
estado de isolamento físico que essa pandemia nos inflige, ao qual me submeti
convictamente, declaro que sofreu uma sensível solução de continuidade. Diante
dessa tragédia da humanidade, de proporção incalculável, com um sem número de
almas em sofrimento crescente e milhares de vidas perdidas a cada dia,
considero quase um sacrilégio poetar; influenciada, ainda que
inconscientemente, pela indignação sentida pelo genial poeta Bertolt Brecht
(1898-1956) que num trecho de seu famoso poema (Aos que vierem depois de
nós) exclama:
Que tempos são esses,
Que tempos são esses,
Quando falar sobre flores é quase
um crime.
Pois significa silenciar sobre
tanta injustiça!?
3 - Quando isso passar, qual a lição que ficou?
Infelizmente, a precisão da resposta que este questionamento requer faz sua morada no futuro: “quando isso passar”...
No momento, o que me é possível
antever é que nada irá voltar ao que era, tudo será diferente e teremos que
aprender um novo jeito de caminhar. A sociedade inteira será atingida e em
vista disso emergirá fragilizada, em diferentes graus mas em todos os aspectos:
afetivo, psíquico, cognitivo, social, cultural, econômico...
As restrições impostas pelo
isolamento, as dores dos afastamentos e das perdas, as experiências de medo e
de luto darão lugar a um outro mundo e a um outro sentido de normalidade, pois
novos hábitos se imporão até que se encontrem medicamentos e vacinas capazes de
controlar e/ou erradicar a doença. E ninguém pode prognosticar o tempo que
levará e a dimensão da incerteza que isso engendrará.
No entanto reafirmo que, em se tratando da pessoa humana, sou uma otimista inabalável; e que (a despeito de muitas previsões contrárias), bem longe de uma esperança ingênua, sigo a acreditar que aprenderemos uma lição importante com essa pandemia de nível planetário. Penso (e espero com veracidade) que se expandirá na humanidade a compreensão de que o mundo em que vivemos é reflexo das escolhas humanas e de nossa relação de interdependência com todos os seres viventes; de que enorme parcela dos efeitos deletérios dessa crise resulta do egoísmo, da ganância, da ignorância e da desumanidade de muitos; e que num crescendo a intolerância, estopim dos males dos tempos atuais (imensa desigualdade social, violência de todas as ordens, culminando nos suicídios e nos assassinatos, vulnerabilidade individual e coletiva, fundamentalismo, xenofobia, preconceitos, desprezo pelo saber acumulado, etc.), cederá espaço para a observação dos Direitos Humanos e o exercício da fraternidade.
Independentemente de etnia, nacionalidade, gênero, orientação sexual, crença, classe social, cultura, profissão, idade, nível de instrução ou qualquer outra variante que possa diferenciar-nos como pessoa humana.
Enfim, acredito que com essa tomada de consciência estaremos palidamente reverenciado as milhares de vidas perdidas e o desmedido sofrimento causado por essa catástrofe.
4 - Os movimentos de integração da mulher influenciam o seu cotidiano?
Conforme espero que seja possível colher da minha obra, a minha subjetividade está imersa na pluralidade e sou parte pulsante do universo atemporal que me abraça.
Assim sendo, todos os movimentos de
integração social das minorias influenciam a minha existência e têm o meu apoio
incondicional.
Mas minha alma é feminina, meu eu lírico é feminino e eu sou feminista desde sempre. O que significa afirmar que a minha poética se estabelece também como uma contribuição na recuperação do espaço da produção intelectual e artística da mulher, perversamente apagada dos registros históricos da humanidade por milênios.
Tanto a voz da mulher que luta em
grandes grupos, quanto a das que militam nas suas comunidades e, ainda a das
que o fazem entre quatro paredes, nas suas casas com seus familiares, encontram
eco na minha alma e na minha mente.
Especificamente com relação aos movimentos de integração da mulher, respondo que sou alvo dessa influência desde a juventude, nos meus primeiros contatos com Simone de Beauvoir; mais tarde, conheci a obra de Virgínia Wolff, a luta de Ângela Davis, a da catarinense Antonieta de Barros; depois vieram Rosé Marie Muraro e Marilena Chauí; mais na atualidade, me alinho aos posicionamentos de Maria da Penha, Márcia Tiburi, Judith Butler, Djamila Ribeiro e muitas outras que dão visibilidade a essas prementes questões dos direitos humanos, da igualdade entre os gêneros, os direitos às diferentes orientações sexuais e o combate às violências.
5 - Como você divulga seus escritos e/ou a sua obra?
Como consta da orelha do meu livro que está no forno e ao qual antes fiz referência, eu escrevo versos desde sempre, mas talvez possa ser considerada uma ‘poeta tardia’ porque somente comecei a divulgá-los na maturidade; o tempo das ponderações, das relevâncias e, por que não declarar, das urgências.
Publiquei três obras e estou em
vias de dar à luz meu quarto livro de poemas, disponibilizados também em
e-books; tenho coautoria em várias obras coletivas, no Brasil e no exterior;
sou membro efetivo da Academia de Letras de Balneário Camboriú, onde moro, a
qual tem uma boa visibilidade regional; estou vinculada a diversos grupos
ligados à literatura, como o Mulherio das Letras, o Leia Mulheres, o Café
Filosófico de Itajaí, cidade limítrofe; e espalho minha poética também nas
redes sociais, nas quais possuo um considerável número de amigos e seguidores
generosos que me estimulam a insistir.
6 - Quais os pontos positivos e os negativos do universo da escrita para a mulher?
A renomada escritora Virginia Woolf (1882-1941), cuja obra se revela na vanguarda do seu tempo, destaca no ensaio Um teto todo seu, que a mulher necessita de um espaço físico — um escritório, uma sala, um quarto — no qual possa, livremente e sem interrupções, se dedicar a escrever. Contudo, realça que sem independência financeira e reconhecimento da sociedade, isso seria inviável. Não esqueçamos que a conferência foi escrita no final da década de vinte do século passado, época em que essas condições para a mulher praticamente inexistiam. Bem, já se foi quase um século e a realidade pouco mudou.
Com a nossa entrada nas
universidades e no mercado de trabalho, acrescida dos cuidado com a família —
para a grande maioria — o tempo não se configura como um aliado. A luta do dia
a dia pela sobrevivência também é um grande impeditivo para o livre exercício
da atividade de escritora.
Contudo, a mulher gradativamente e a duras penas vem conquistando seu espaço na sociedade, exercendo as mais diferentes atividades nas mais diversas posições hierárquicas. Muito embora essa seja uma tarefa árdua e diária, na qual a grande maioria ainda continuamos lutando, creio que pontos positivos e negativos são inerentes à todas as profissões. Principalmente para aquelas que historicamente eram tidas como naturalmente masculinas, a exemplo escrever, publicar e fazer sucesso, o que muitas de nós começamos a experimentar.
7 - O que pretende alcançar como autora? Cite um projeto a curto e um a longo prazo.
Fiz minha carreira acadêmica como professora universitária e somente depois de vinte anos foi que passei a me dedicar especificamente à literatura. Considero-me realizada como autora e com minhas obras produzidas, muito embora isso não signifique que não continue a escrever e a pretender ampliar a divulgação da minha poética.
Esse é meu projeto, é um estar
sendo...
8 - Quais os temas que gostaria que fossem discutidos nos Encontros Mulherio das Letras em Portugal?
Todos os temas relacionados à mulher sempre são pulsantes e prementes, tendo em vista a invisibilidade histórica a que foi submetida. Razão pela qual pautas como aborto, estupro, violência doméstica, carreira X maternidade, acesso à educação formal de qualidade, equidade salarial, engajamento político, assédio sexual, universo literário... serão sempre necessárias e, por isso mesmo, invariavelmente prestigiadas.
9 - Sugira uma autora que lhe inspira ou influencia na escrita.
Essa pergunta é indefectível e por mim jamais respondida. Rsrs...
Sou um pouco de cada livro e de cada uma das/os poetas e das/os escritoras/es que li, em alguma medida. Assim como também de cada música, de cada filme, de cada obra de arte, de cada viagem, de cada afeto, de cada contato humano... de cada lambida de cão, de cada gorjeio de pássaro, de cada quebrar de onda no meu Atlântico, de cada nascer e pôr de sol, de cada grão de areia, de cada estrela e de cada luar... sou um pouco de cada porção de ar que me enche os pulmões... de cada átomo que me circunda.
Ah, e aprecio Virginia Woolf, Marguerite Duras, Cecília Meireles, Clarice Lispector...
10 - Qual pergunta gostaria que lhe fizessem? E como responderia?
Como você se sente com a criação da vacina contra a avassaladora Covid-19?
Indizivelmente feliz!
Fiquei muito feliz com o convite para a entrevista e sua publicação! Agradeço à In-Finita Lisboa a oportunidade de juntar minha voz à dessas incríveis escritoras e parabenizo-a pela incansável labuta em prol da produção literária lusófona. Beijos poéticos.
ResponderEliminarGratos pelo apoio e participações...
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