EVASÃO
Todos os dias as mesmas rotinas: limpeza,
distância, contenção.
Todos os dias o foco nas notícias: contaminados,
curados, mortos.
Todos os dias a ligar aos meus, aos que prezo, aos
que amo.
Todos os dias, sabe-se lá por quantos mais dias…
Saio para o trabalho, e a cidade está deserta.
Como na música dos Ornatos, afinal.
“Ouvi dizer
Que o mundo acaba amanhã
E eu tinha tantos planos para depois…”
O mar não fechou, por isso saio, cautelosamente.
No porta-luvas um salvo-conduto para o trabalho.
Sigo paralela ao rio, nessas estradas vazias.
Impassível, o Tejo corre, os pássaros voam.
E eu, condutora em quase domingo, sigo,
Enquanto saboreio o som da natureza em descanso
Dos carros, do barulho, das vociferações humanas.
Entro num edifício cheio de ausências
Desinfecto novamente as mãos.
As tecnologias permitem-me trabalhar,
Coloca num ecrã os rostos e as vozes
Com quem usava partilhar os dias.
Assim passo o dia, na solidão física,
No contacto de espírito e almas.
Almoço o que trouxe de casa,
Que já não há onde comer.
Nem restaurantes, nem cafés.
A máquina dispensadora da empresa
Há muito que prescreveu.
Saio para a rua, só, entro no carro,
Naquele local, ao sol, escolhido
Criteriosamente na vastidão do parque.
Acondiciono o corpo no banco reclinado.
As pernas esticam-se, procurando o sol.
Embalo a alma com as folhas do livro.
Sigo adiante, inebriada pelo vento
Que trespassa as janelas.
Adenso-me na trama,
Distraidamente afago o cabelo,
Reponho o desinfectante.
Levam-me ao Tarrafal,
Sinto o calor húmido, as águas fétidas
As agonias dos homens que sofrem.
As mulheres de crianças nas costas
Que trabalham por entre o pó.
A dor, a doença, a involuntária contenção.
Fecho o livro, incapaz de abarcar mais desgraça.
Fecho os olhos, foco sem pejo,
sem medo, directamente o sol.
Encandeada, face a ruborizar,
Deixo que o calor me inunde,
Me relaxe, me leve sem resistência,
Numa consciente e progressiva inconsciência,
Em que o som se afasta, languidamente
O discernimento é paulatinamente ofuscado ,
Como naqueles dias de praia, em que me estendia ao
sol,
O astro queimando-me a pele, eu numa indolência
crescente,
Saboreando a onírica e tão desejada, evasão.
Sandra Ramos
Todos os textos publicados na rubrica EM TEMPOS DE QUARENTENA são da responsabilidade exclusiva dos autores e os direitos respectivos apenas a eles pertencem.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Toca a falar disso