domingo, 12 de abril de 2020

Em tempos de quarentena - MAURÍCIO GOMES


Húmus
Vértices de um céu plúmbeo
Gotas de orvalho ácidas caem nas cabeças das formigas
Sapos não coaxam mais
Silenciam-se!
Nem o zumbido de uma mosca
Sua língua cola
Visões desaceleradas.
O cachorro pestilento
Morde um carrapato e
Cospe seu sangue
Um velho na cadeira de balanço
Balança a vida sem pressa
Sorri sem dentes
Ao ver o vira-lata
Com o rabo no cu
Plantações de coca bolivianas
Perfumam as mãos cálidas das nativas
Compulsões dos amanheceres
Mastigadas pelas bocas indígenas
Adormecidas sem beijos.
O peixe sobe pelas ribanceiras
Se suicida
O pescador cheio de inviabilidades
E redes que enfeitam seus dissabores amorosos
A vaca berra o rio Ganges
Água turva abençoada por Shiva
Impurezas líquidas
Purezas da alma.
Nas confluências da vida
O negro é açoitado
Carne negra chicoteada
Pelos bigodes de Abraão Lincoln
E emplastos e bálsamos
Panaceias dos inconfidentes.
Suores dos negros escorrem
Descem pelo corpo preso ao fálico tronco
Descem pelos corpos das alvas e níveas
E bucetas rosáceas donzelas.
Nas curvas do Sena infectado
Victor Hugo se sentou e sentiu
A miséria parisiense
Merdas e ratos e homens chafurdam
Em um banquete de estrumes de cavalo
Uma orgia pantagruélica.
Na outra parte do Sena,
Um bêbado poeta chora sua dor em uma garrafa de absinto
Ao lado de um cachorro.
A poesia é um cão.
Abandonado. Seu latido ressoa nos tímpanos de um suicida
Que se joga nas águas poluídas.
Poesia é podridão e poluição.
Um pássaro quer alcançar o sol
Suas asas são queimadas
Sua queda cai sobre as asas de um avião.
Na luz do abajur de um quarto qualquer
A aranha tece seu sonho
E fica encaracolada nas nervuras de suas patas.
Nos ângulos dos ponteiros do relógio Tower Clock
De ponta-cabeça, lá estava ele, o morcego de Augusto dos Anjos
Com seus olhos voltados
A Whitechapel, aos bordeis,
O Jack the Ripper!
Sim, ele, o morcego!
Dentes afiados nas goelas das prostitutas
Mulheres secas e sem sangue.
Desertos egípcios faraônicos
Sísifo aparece com sua pedra
Ardentemente, entre acácias
Seneh!
Seneh!
Eterna sina!
Ehyeh-Asher-Ehyeh!
E ele carrega o mal da humanidade.
Em um lixão qualquer
No meio de variados lixos
Um livro de poesias
Sujo!
Fedido!
Borrado!
Páginas desfeitas
Foi encontrado!
Mãos sujas
Boca lambendo moscas ao vento
Lambem os dedos fétidos
O homem na sua insignificância
Urubus em auréolas circulam a podridão
Protegem a poesia daquele lugar.

Maurício Gomes


Todos os textos publicados na rubrica EM TEMPOS DE QUARENTENA são da responsabilidade exclusiva dos autores e os direitos respectivos apenas a eles pertencem.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Toca a falar disso