quinta-feira, 2 de maio de 2019

DA IDIOSSINCRASIA FEMININA - LUZIA COSTA BECKER

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Ela acordou e sem se dar conta de que dia da semana era, sentiu um desejo enorme de domingo. De levantar o mais cedo possível só para ver o dia durar a eternidade dos seus desejos. Quando criança, acordava às seis horas da manhã. Depois de uma conversa despretensiosa com os bichos no quintal, vinha a jornada exploratória dos recantos da sua imaginação, interrompida apenas por uma ou outra regência materna.
O aroma do café a avisa que ela não é a primeira a acordar. O rebento da manhã ganha gosto de infância e o calorão do corpo, sentido de realidade inexorável. Permite-se demorar um pouco mais na cama.
O cochilo prolongado na penumbra do quarto incita a lembrança de uma cobiça reprimida. Tesão de puberdade explorando lençóis molhados de tensão hormonal. Um gozo leve percorre o corpo da menina que encontra nas linhas de expressão do rosto da mulher, o desejo ardente da maturidade. Dos diacrônicos aos sincrônicos espasmos emocionais, ela busca a lucidez. Da vontade de jogar a castidade na cara da Igreja à complacência feminina, a certeza da instabilidade do ânimo e o pranto.
Ela não entende as lágrimas e muito menos o turbilhão de emoções. Como em um mar revolto de sentimentos nunca antes experimentados em concomitância, seu corpo e sua mente seguem à deriva ora afetados pela transmissão adequada de serotonina potencializadora, ora pela sua transmissão inadequada e despotencializadora, numa busca desesperada pela disposição juvenil perdida.
O aroma do café invade o quarto expulsando de vez o delírio pubertário quando ela, ao invés do beijo materno, sente os lábios quentes do marido.
Resgatados pela promessa de amor eterno, corpo e mente se fixam na potência das mãos que abrem as cortinas da vida para dar forma ao cheiro de morangos frescos levados à boca da mulher amada. Afetos alegres que lhe abrem o apetite para mais um café da manhã de domingo na estação do climatério.
As afecções alegres serenizam o mar revolto e após uma longa e atribulada experiência de desassossego, ela se aconchega novamente no mundo, dando-se conta de que o climatério, diferente da puberdade, é prelúdio de uma criativa e idiossincrática fase da vida feminina, livre das perturbações que lhe vinham distorcendo as emoções.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

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