terça-feira, 9 de abril de 2019

NANÁ - ANAMARIA ALVES

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Naqueles tempos, a Chacrinha era um gueto. Todos negros e descendentes de escravos. As casas pobres de adobe ou pau-a-pique misturadas aos belos paredões imponentes da antiga fazenda eram antíteses vivas, germes da desigualdade. Misturados à natureza exuberante do que era o pomar da fazenda e ao barulho gostoso do rio, tornavam-se um cenário não apenas belo de ver, mas de sentir. Paisagem de sentimento. História gostosa de tocar e cheirar, a Chacrinha dos Pretos.
Esse causo eu ouvi do rapaz que o viveu. Meu velho tio Ademar. Na Chacrinha todos tinham nomes santos ou portugueses. Mas ninguém ao menos sabia quem era quem, se dependesse desses nomes. Ademar era Naná, Geraldo era Ladinho, mas Ladinho podia ser também Ladislau, Maria era Cota e por aí se íam os apelidos, que eram mais nomes que os de batismo.
Tio Naná era um dos maiores “aprontadores” da Chacrinha. As artimanhas incluíam sobretudo pular janelas de donzelas e até comprar presente para a namorada e anotar na conta do pai da moça na vendinha em Belo Vale. Suas preferidas eram amedrontar o povo da Chacrinha na Quaresma, ora vestindo-se de lobisomen, ora subindo nos pés de fruta e balançando as folhas quando, no breu da noite, alguém passava.
Adoeceu de um dia para outro e passou a mancar. No Quilombo não havia recurso algum e tudo ficava a no mínimo oito quilômetros dali. Vó Lia tentou ajudar, Dona Tica também, mas nada dos chás surtirem efeito. Quando a virilha do rapaz inchou de verdade, a constatação:
- É mula.
E estava grande o caroço. De mancar, passou a não andar mais. A dor o estava ensinando a regredir. Moço bonito, o Naná. Era de dar pena vê-lo assim.

Um dia, um certo Dr. Barreiras foi visitar a Tia Beta. Ele era farmacêutico, branco, e Deus sabe o que ele viu na Chacrinha, pois não desgrudava de lá... Dizem que as bananeiras e o mato à beira do rio têm histórias quentes para contar do Dr. e as pretas da Chacrinha...
Uma tarde o Vô Torgamin foi à tia Beta pedir ajuda ao Dr. que logo foi à casa dele ver o doente.
-É uma íngua. É caso de cirurgia, seu Torga.
O Dr. falava do lado de fora do quarto onde o enfermo, febril, nada ouvia.
-Podemos operar ele aqui mesmo... Empreste-me o seu canivete bem amolado e mande buscar cinco homens fortes!
O Vô obedeceu prontamente. Lá vieram os rapazes mais fortes do Quilombo.
-Agora pegue um limão que esteja não muito maduro nem verde.
Vó Lia foi pegar.
-Um pano para o rapaz morder.
-Sim, senhor Doutor!
Esse foi o material cirúrgico. Os cinco homens seguraram o rapaz, o Dr. deu o pano para ele morder. Ele suava. Tinha medo. Mas homem não chora. Lá vai...
O farmacêutico abriu com o canivete a virilha do Naná, enfiou os dedos e retirou a íngua. Não foi rápido o processo. Parecia mesmo tortura a dor indescritível. No buraco, limão bem espremido! O rapaz não chorou. Tremeu, suou e desmaiou de dor. Voltou tonto, como que embriagado de sofrimento, e não costurado. O máximo que o Dr. pôde fazer foi recomendar repouso até que o buraco se fechasse sozinho.
Assim terminou a primeira cirurgia no Quilombo Chacrinha dos Pretos. E se inflamasse? E se perdesse a perna? E se morresse? Aqueles escravos tinham sido alforriados havia mais de 100 anos, muito antes da abolição. Mas ainda eram carne barata. Mão de obra remunerada desde a alforria, sim. Mas com miséria e falta de assistência desde sempre. Desprezo e miséria no Quilombo.

Mas sabem? Naná sobreviveu. E tão logo ficou forte outra vez, resolveu ser diferente, mas sem abandonar os seus. Foi estudar e trabalhar em Belo Horizonte. Passou dificuldades sim. Racismos mil. Mas sobreviver é possível. Sobreviver é preciso.
Existe hoje um posto de saúde no Quilombo Chacrinha dos Pretos. Obrigada, tio Naná, o Senhor faz parte dessa história.
Sobreviver. Resistir. Existir.
Desde sempre.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

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