Acordei com os pensamentos do costume, retrógrados, preconceituosos e
frios. A minha filha fugiu com um negro, se ela não fugisse eu era bem capaz
dos matar aos dois, a minha outra filha fugiu de casa para ir viver com outra
mulher, como é possível ter duas filhas tão alucinadas, não foram criadas para
ser assim, sempre lhes dei o melhor e as melhores regras. A culpa disto tudo é
da minha mulher, sempre as deixou andar por aí à solta na minha ausência,
sempre me escondeu tudo, também pouco falávamos, desde que a comida estivesse
no prato a horas e ela cumprisse com as suas obrigações na cama, para mim
estava tudo bem. Além deste meu ar sério e carrancudo de respeito pouco me
hão-de ver os dentes. Foi no dia em que acordei assim que se deu o fatídico acidente,
seguia com a minha mulher ao lado quando reparei que não trazia a carteira com
os documentos, comecei aos gritos com ela, claro que era ela a culpada por me
ter esquecido dos meus documentos, andava sempre com a cabeça nas nuvens! Ao me
aproximar do tablier baixando a cabeça enquanto procurava a carteira, quase à
beira de dar um murro naquela cara muito bonita e assustada, levanto a minha
cabeça a olhar a estrada e só vejo um camião na nossa frente. Foi neste ponto
final dela que acordei numa cama de hospital meio atordoado, e aos gritos, sem
conseguir ver nada, quando de mim se abeira uma mão e uma voz meiga que me
tenta tranquilizar - tenha calma, você é um homem muito bonito e tem tudo para
recuperar a visão, sabe o que lhe aconteceu? Naquele momento veio-me tudo à
memória, pelo menos a memória eu não perdi, mas durante a conversa fiquei a
saber que tinha perdido tudo, a minha mulher, o carro, já não contando com o
todo que tinha perdido antes, o carro ficou todo desfeito, e de tão desfeito
irreconhecível, estava ali sozinho numa cama de hospital, só uma voz muito
meiga me auxiliava ao lado da cama. Vi-me morto naquele momento, tal como um
cão que abandonei, num dia de rabugice em plena via de autoestrada, por largar
pêlos pela casa e ladrar. O tempo foi passando e eu em silêncio chorava, aquela alma
feminina que não me largava a mão, foi-me ensinando tudo, a comer, a ir à casa
de banho, até a escutar as histórias que nunca escutei em criança. Passados
dois anos do acidente e já sentado numa cadeira de rodas, no jardim continuava
a ser empurrado por aquelas doces e meigas mãos dela, para o jardim e para a
vida, nesse empurrar fui aprendendo a me apaixonar por uma alma, sem lhe ver o
rosto, apenas sentia o cheiro e o calor do amor dentro de mim a crescer. Ela
tinha vindo para Portugal em socorro de paz e trabalho, vinha de uma vida cheia
de medos e perdas em auxílio de almas perdidas, assim como a minha, não
queria falar do seu passado, rejeitava qualquer pergunta.
Continuei a passar as minhas tardes naquele jardim, embora já num banco
de madeira, com o tempo a passar e com a ajuda da fisioterapia tinha melhorado
muito, adorava o cantar dos pássaros e o ladrar do cão que todos os dias me
vinha cumprimentar com uma lambidela, imaginava dois homens que não conseguia
ver, dois homens que todos os dias se sentavam num outro banco ao meu lado,
escutava os carinhos que trocavam apaixonados, normalmente partiam sempre antes
de mim, quando passavam cumprimentavam-me sempre com um grande sorriso, que não
via, mas que me enchia a alma de afeto. E por lá ia chorando e sonhando em
beijar, cada vez mais apaixonado aquela outra alma que me acompanhava sempre,
aquela que me acarinhava todos os dias, que me mostrava o bom da vida. Até que
chegou um dia em que perdi a vergonha e a beijei, quando se baixava devagar
para me atar os sapatos. Depois nos dias que se seguiram amamo-nos por entre as
quatro paredes do quarto sem o mais pequenino dos pudores, como duas almas
sedentas e conhecedoras do verdadeiro amor.
Foram passando os dias até eu ser operado à vista, onde se deu um
milagre, abençoado seja o médico que utilizou a sua própria vista para me fazer
tanto bem, recuperou-me as duas vistas a sessenta e cinco por cento (quanto é
sessenta e cinco por cento para quem não tem nada?). Finalmente chegava
o dia mais importante e feliz, o dia em que me iam ser retiradas as compressas,
devagar lá fui olhando e abrindo os olhos a medo, não tenho explicação
possível para a minha felicidade, na minha frente tinha sem palavras a negra
mais bonita e vistosa que me iluminou e ensinou durante todo aquele tempo de
sofrimento.
Afinal quem somos nós quando vemos tabus e preconceitos em tudo e em
todos, e não conseguimos enxergar a vida com o sentir dos outros, a cegueira de
quem vê é a pior, qualquer sentido nos foi dado para ser utilizado da melhor
forma, e não supérflua ou inutilmente, só uma alma livre pode realmente
enxergar o amor.
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