quarta-feira, 11 de julho de 2018

CRÓNICAS DA MIM... A CEGUEIRA DE QUEM VÊ É A PIOR (ENXERGAR COM OUTROS OLHOS)



Acordei com os pensamentos do costume, retrógrados, preconceituosos e frios. A minha filha fugiu com um negro, se ela não fugisse eu era bem capaz dos matar aos dois, a minha outra filha fugiu de casa para ir viver com outra mulher, como é possível ter duas filhas tão alucinadas, não foram criadas para ser assim, sempre lhes dei o melhor e as melhores regras. A culpa disto tudo é da minha mulher, sempre as deixou andar por aí à solta na minha ausência, sempre me escondeu tudo, também pouco falávamos, desde que a comida estivesse no prato a horas e ela cumprisse com as suas obrigações na cama, para mim estava tudo bem. Além deste meu ar sério e carrancudo de respeito pouco me hão-de ver os dentes. Foi no dia em que acordei assim que se deu o fatídico acidente, seguia com a minha mulher ao lado quando reparei que não trazia a carteira com os documentos, comecei aos gritos com ela, claro que era ela a culpada por me ter esquecido dos meus documentos, andava sempre com a cabeça nas nuvens! Ao me aproximar do tablier baixando a cabeça enquanto procurava a carteira, quase à beira de dar um murro naquela cara muito bonita e assustada, levanto a minha cabeça a olhar a estrada e só vejo um camião na nossa frente. Foi neste ponto final dela que acordei numa cama de hospital meio atordoado, e aos gritos, sem conseguir ver nada, quando de mim se abeira uma mão e uma voz meiga que me tenta tranquilizar - tenha calma, você é um homem muito bonito e tem tudo para recuperar a visão, sabe o que lhe aconteceu? Naquele momento veio-me tudo à memória, pelo menos a memória eu não perdi, mas durante a conversa fiquei a saber que tinha perdido tudo, a minha mulher, o carro, já não contando com o todo que tinha perdido antes, o carro ficou todo desfeito, e de tão desfeito irreconhecível, estava ali sozinho numa cama de hospital, só uma voz muito meiga me auxiliava ao lado da cama. Vi-me morto naquele momento, tal como um cão que abandonei, num dia de rabugice em plena via de autoestrada, por largar pêlos pela casa e ladrar. O tempo foi passando e eu em silêncio chorava, aquela alma feminina que não me largava a mão, foi-me ensinando tudo, a comer, a ir à casa de banho, até a escutar as histórias que nunca escutei em criança. Passados dois anos do acidente e já sentado numa cadeira de rodas, no jardim continuava a ser empurrado por aquelas doces e meigas mãos dela, para o jardim e para a vida, nesse empurrar fui aprendendo a me apaixonar por uma alma, sem lhe ver o rosto, apenas sentia o cheiro e o calor do amor dentro de mim a crescer. Ela tinha vindo para Portugal em socorro de paz e trabalho, vinha de uma vida cheia de medos e perdas em auxílio de almas perdidas, assim como a minha, não queria  falar do seu passado, rejeitava qualquer pergunta.

Continuei a passar as minhas tardes naquele jardim, embora já num banco de madeira, com o tempo a passar e com a ajuda da fisioterapia tinha melhorado muito, adorava o cantar dos pássaros e o ladrar do cão que todos os dias me vinha cumprimentar com uma lambidela, imaginava dois homens que não conseguia ver, dois homens que todos os dias se sentavam num outro banco ao meu lado, escutava os carinhos que trocavam apaixonados, normalmente partiam sempre antes de mim, quando passavam cumprimentavam-me sempre com um grande sorriso, que não via, mas que me enchia a alma de afeto. E por lá ia chorando e sonhando em beijar, cada vez mais apaixonado aquela outra alma que me acompanhava sempre, aquela que me acarinhava todos os dias, que me mostrava o bom da vida. Até que chegou um dia em que perdi a vergonha e a beijei, quando se baixava devagar para me atar os sapatos. Depois nos dias que se seguiram amamo-nos por entre as quatro paredes do quarto sem o mais pequenino dos pudores, como duas almas sedentas e conhecedoras do verdadeiro amor.

Foram passando os dias até eu ser operado à vista, onde se deu um milagre, abençoado seja o médico que utilizou a sua própria vista para me fazer tanto bem, recuperou-me as duas vistas a sessenta e cinco por cento (quanto é sessenta e cinco por cento para quem não tem nada?). Finalmente chegava o dia mais importante e feliz, o dia em que me iam ser retiradas as compressas, devagar lá fui olhando e abrindo os olhos a medo, não tenho explicação possível para a minha felicidade, na minha frente tinha sem palavras a negra mais bonita e vistosa que me iluminou e ensinou durante todo aquele tempo de sofrimento.

Afinal quem somos nós quando vemos tabus e preconceitos em tudo e em todos, e não conseguimos enxergar a vida com o sentir dos outros, a cegueira de quem vê é a pior, qualquer sentido nos foi dado para ser utilizado da melhor forma, e não supérflua ou inutilmente, só uma alma livre pode realmente enxergar o amor.

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