Alteridade entre passarinhos
São Jorge é um
passarinho de quintais. Veja que este é um passarinho que anda mais que voa.
Logo me assemelho a ele, porque sou do tempo da travessia dos quintais, do
tempo do hortar e do orai por nós que se planteia na terra roxa. Sou desse
tempo da gentileza que palavras firmes carregavam também suas belezas para além
das maldições, e não eram só de praguejar; de maldizer. Então sou do
pertencimento dos quintais, feito os pássaros que andam e transitam por
pequenas escolhas de percurso. Tudo isso digo porque nesses dias vivi uma cena
que muito me comoveu, uma cena que não era humana. E questiono sobre como se
pode ser um São Jorge longe de quintais. Sim, porque ergueram muralhas sem
traços de passarinho. Ergueram, aqui nessas cidades, essas grandes gaiolas que
apertam e apartam passarinhos. Ergueram grandes ninhos de desumanos sem rastro
de terra, sem roseira, onze horas, sem hera ou hora de ouvir bichos de
quintais. Ergueram grandes muros com cercas elétricas. E enjaularam gente de
asa por puro medo dos vôos dos bichos mais novos de aventuras.
Mas eu vivi uma cena de alteridade entre seres não humanos. Dois São Jorges no meio de uma travessa. Um deles ferido por algum tipo de atropelamento lá agonizava no paralelepípedo. Um dos São Jorges pulava de um lado pro outro e em volta do pássaro que estava em agonia. Eu vinha passando e vi a cena. Acho que por algum efeito inexplicável de alquimia virei um terceiro São Jorge e peguei o bichinho na mão, ainda no quente de seu frágil corpo, que foi logo se acalmando, se preparando pra morrer, diminuindo. Dentro de minha mão o corpo quente da morte de um passarinho. O outro São Jorge então se foi, buscando calçada. Percebi que era ali uma preservação não da vida da espécie, mas da morte da espécie, um amor fati dos quintais e rituais que perdemos. Tirar o corpo da rua para não ser esmagado. Morto, não esmagado. E nós, os tolos humanos contemporâneos conversadores de umbigo, vamos entendemos cada vez mais de aprisionamentos, armadilhas e da violência das arma duras, das dita duras, das palavras duras. Caçadores implacáveis da própria espécie. Nós matamos é na rua e esmagamos cabeças de São Jorge com balas perfurantes sem gesto que lembre a preservação da morte da espécie, a da humana ainda mais rara.
Mas eu vivi uma cena de alteridade entre seres não humanos. Dois São Jorges no meio de uma travessa. Um deles ferido por algum tipo de atropelamento lá agonizava no paralelepípedo. Um dos São Jorges pulava de um lado pro outro e em volta do pássaro que estava em agonia. Eu vinha passando e vi a cena. Acho que por algum efeito inexplicável de alquimia virei um terceiro São Jorge e peguei o bichinho na mão, ainda no quente de seu frágil corpo, que foi logo se acalmando, se preparando pra morrer, diminuindo. Dentro de minha mão o corpo quente da morte de um passarinho. O outro São Jorge então se foi, buscando calçada. Percebi que era ali uma preservação não da vida da espécie, mas da morte da espécie, um amor fati dos quintais e rituais que perdemos. Tirar o corpo da rua para não ser esmagado. Morto, não esmagado. E nós, os tolos humanos contemporâneos conversadores de umbigo, vamos entendemos cada vez mais de aprisionamentos, armadilhas e da violência das arma duras, das dita duras, das palavras duras. Caçadores implacáveis da própria espécie. Nós matamos é na rua e esmagamos cabeças de São Jorge com balas perfurantes sem gesto que lembre a preservação da morte da espécie, a da humana ainda mais rara.
Lá fui eu subindo a
Rua do bairro do Pé Pequeno, me sentindo a pequena, talvez menor que um
passarinho. Velando o corpo no trajeto fiz a oração de Maria. Agora e na hora
de nossa morte. Agora e na hora de nossa morte.
Enterrei o São Jorge aninhado entre as folhas fortes de uma amendoeira. Fiz afeto na terra discreta, no jardim da infância, onde busco minha criança, enterrei aquele ser de asas. E senti pena. Dele? Não. De mim. Da minha espécie. Por um triz quis entrar no corpo dele e me enterrar com gentileza e amor com minhas próprias mãos. Mas não sou passarinho.
E eles não passarão se não tirarmos os corpos em agonia dos outros de nossa espécie que se quedam ao chão. A isto se chama alteridade: olhar o outro quando tudo é plena extinção.
Enterrei o São Jorge aninhado entre as folhas fortes de uma amendoeira. Fiz afeto na terra discreta, no jardim da infância, onde busco minha criança, enterrei aquele ser de asas. E senti pena. Dele? Não. De mim. Da minha espécie. Por um triz quis entrar no corpo dele e me enterrar com gentileza e amor com minhas próprias mãos. Mas não sou passarinho.
E eles não passarão se não tirarmos os corpos em agonia dos outros de nossa espécie que se quedam ao chão. A isto se chama alteridade: olhar o outro quando tudo é plena extinção.
mini-Biografia: Patricia
Porto
Graduada em Literaturas
Brasileira e Portuguesa, Doutora em Políticas Públicas e Educação, professora e
poeta, publicou a obra acadêmica "Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte
Docente na Escolarização da Literatura” e os livros de poesia "Sobre
Pétalas e Preces" e "Diário de Viagem para Espantalhos e
Andarilhos". Participou, ainda, de coletâneas no Brasil e no exterior,
integra o coletivo Mulherio das Letras e é colaboradora do portal da ANF
(Agência de Notícias das Favelas).
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