Que se come frio
Eu sempre achei que seria recompensada por todas as
minhas perdas. Eu teria compensações por merecimento de dor absurda. A vida
levou meu pai e mãe naturais, depois levou meus pais adotivos e meu irmão
adotivo, depois levou minha casa, minha Ilha, a casa de Tambor de seu Bernardo,
levou também meu sotaque, minha saúde, minha gente virando poeira na estrada da
janela do Ita. Acordei no deserto de uma multidão desalmada. Achei que fosse o
tempo de enfrentar o Demo. Não foi. Lá do alto de meu ego eu esperava os
prêmios, as conquistas e o reconhecimento. Tudo vaidade. Eu era vaidosa de
minhas perdas. Quando fui ser professora na periferia da periferia descobri o
tamanhão do meu ego. Meninas e meninos que sequer conseguiam pensar sobre suas
faltas. Eu tinha os livros e a literatura. Não era pouco, porque dava pra
sustentar meus ombros de pé. Os meninos me ensinaram que a história não
compensa ninguém se você fica esperando reparação. Era preciso fatiar o ego e comer
aos pedacinhos, feito miúdos de porco. Chouriço de ego. A vida não te compensa,
rapaz. É preciso ir lá e fazer a revolução sem rastro algum de piedade. É faca
nos dentes e sangue nos olhos. Quando a carne esfria é que ela ganha sabor.
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