"Outros
Cantos" e a estética da sobrevivência.
Há
narrativas-correntezas tão fortes que nos fazem mergulhar no outro que também
somos. Parece algo muito fora de nós a princípio, dada a vertigem do encontro,
mas vamos entendendo no percurso da leitura que é realmente da nossa intimidade
que se alimenta, da nossa imediata identificação, dessa afinidade aguda que
pode até mesmo nos interrogar e que se lastreia para dentro, nos investigando
os porões, revirando os guardados, revelando vozes segredadas, aquelas que não
cuidamos de registrar e que vão se misturando ao chão da vida, trajetórias de
leituras que nos escapam... E é partindo deste princípio, do meu lugar de
leitora e educadora, ambas encantadas, que ofereço uma modesta contribuição de
olhar a "Outros Cantos" de Maria Valéria Rezende. Porque, se nos
encantamos e ainda não fomos castrados nesta habilidade, é pelo olhar curioso,
visitado por outros sentidos, que nos deixamos reconhecer no texto lido e
amado.
Em "Outros Cantos", ao me
deparar com Maria, as Marias que habitavam em mim ressoaram. Dentro de mim uma
nova jornada mítica: significar o que compreendo como estética da
sobrevivência. Algo de delicado e outro de doloroso me ocorrem para tentar
descrever esta estética de histórias que se assemelham às minhas e recriam pela
cultura este diálogo permanente e polifônico. Como recebo Maria a partir de
minhas Marias? As Marias que não deixei vingar, as que calei de saída, por medo
e resposta antecipada contra o que parecia destino? Perguntas teimosas me fazem
companhia pelo trajeto da leitura, às vezes estreitando a vista a fim de
enxergar melhor esses jogos de perder e achar. Não sei se alcanço o todo de
dizeres que vão brotando da pedra, a minha é a mais bruta. Procuro aqui e ali
um desvão, um atalho que nos una, e que me faça encontrar Maria, a educadora, a
nordestina, a viajante, a corajosa - num feito de matriochka. Um engenho
elaborado entre escrita e significação que vou costurando junto à cartografia
do sertão. O sertão que se biparte em geografia e sentimento. Patuá de sertão é
para sempre esse carregado de memórias no peito.
Mas eis que surge a
imagem que persigo: a viagem. O caminho sensível pela alma de minha leitura
amorosa, alma porosa, cálida e dedilhada pelo risco e invento dos
sobreviventes. Tento sintetizar minhas percepções e palavras como "denso,
perturba-dor, delicado" são os melhores qualitativos que encontro. Ouso
trazer Maria e "Outros Cantos" para minha coleção de imagens. Guardo
este segredo de quem escava histórias em mil camadas e que se instaura na
convergência da leitura com a educação: dois amores e uma espécie de circuito
inacabado que encarna no mundo como aliança quixotesca, subversiva, desviante.
"Outros Cantos" acende em mim
a tradição das almas velhas. Dou rendas à escritura: cheia, vazia, entrelaçada,
torcida - que não guia, mas nos torna cúmplices da narrativa, sujeitos
clandestinos, desejantes e sonhadores.
Maria
Valéria Rezende é ganhadora do prêmio Jabuti e do prêmio Casa de Las Américas.
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