quinta-feira, 24 de agosto de 2017

FALA ÁFRICA... MACVILDO PEDRO BONDE

Entre o juízo estético e empírico: é ainda possível pensar poesia hoje?
 “Mestre das horas invulgares, companheiro do crepúsculo sedento contra os agiotas da palavra, que pecado original nos espreita quando se perde a inspiração do poema genial? Os aedos da televisão sujam a praça de loucos, palco onde os transeuntes procuram o mel. A glória, a dádiva, perdem o fulgor de outros carnavais, choram na retina desarmada o bolo prometido em tempos de fome. Mestres! A solidão é um prato vazio recheado de talheres ocos para o alimento que foge do calor. Ou é apenas um lugar esparso no coração do homem?” In: Ensaios Poéticos, 2017, M. P. Bonde

Fazer uma comunicação em volta das artes é sempre um enorme desafio. Como iniciar o texto? Que elementos trago comigo, para afirmar que a poesia não é pensada nos dias de hoje, conhecido como pós-modernidade? Os valores que conhecemos sobre determinadas coisas, estão hoje confinados a certos arquétipos académicos, e podem não responder às massas que são intoxicadas por novas formas de olhar o mundo.

Mais, do que respostas venho carregado de interrogações visto que no dizer de Rimbaud “O poeta faz-se vidente através de um longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos”. Como ser vidente numa sociedade que olha de esguelha para o poeta, pela forma como se apresenta?

O neoliberalismo e a pós-modernidade empurram-nos para o grutesco, onde aplaude-se a mediocridade sem pudor. Como argumenta Nietzche sobre a arte “o mundo criado pela arte é uma aparência ou uma ilusão que, contudo, não nega a realidade, não a desvaloriza, não a submete a juízos morais, mas unicamente transfigura a matéria sensível, colocando o mundo para lá do bem e do mal”. É sobre a submissão de juízos que pretendemos neste breve encontro reflectir.

Penso que o poeta será sempre o farol com o qual uma sociedade se espelha para a construção dos seus sonhos. Neste sentido, a poesia deve constituir o alicerce para a construção social e elevação de valores.

O juízo estético cria múltiplas acepções. Um dos pensadores mais discutidos sobre o tema é Emmanuel Kant Para o filósofo, o juízo estético: “é a forma de comunicarmos em palavras e conceitos um sentimento: o sentimento da beleza. O juízo estético exprime o que acontece quando temos uma experiência estética, ou seja, traduz um sentimento que experimentamos ou vivemos ao contemplar um objecto”(Kant, 1995)[2]. Quer dizer, o juízo estético reflecte a nossa visão sobre o mundo a partir da arte que produzimos. Ele traduz um sentimento, que pode ser visto como a representação da nossa experiência como artista, no caso vertente, o poeta. Kant é de opinião que o juízo estético é universal.

Entretanto, em Schopenhauer, afirma que o conhecimento estético é objectivo, pois dado por meio da objectivação das ideias, mas que parte de um sujeito cognoscente “puro”, por isso despido de qualquer referência a objectos que se relacionam entre si no domínio do conhecimento científico e do senso comum, por meio das modalidades do princípio de razão. Trata-se, pois, de uma representação de tipo especial, um sujeito puro que se refere a um objecto também “puro”, isto é, destacado quer das cadeias causais das representações intuitivas, quer das cadeias dedutivas das representações abstractas. A este sujeito é atribuída a qualidade de génio, pelo tipo especial de conhecimento que propicia, através da ideia estética que realiza a fusão sujeito e objecto, só possível no caso da ausência da mediação pelo princípio de razão. (Cacciola, 2012:33). A poesia tem esse mérito de transcender a razão e cruzar saberes.

Pode ser que a forma mais simples de definir o juízo estético seja de Martindale (2000), que resume em pura contemplação, não possui interesse ou desejo, não quer atribuir um conceito fixo, é um juízo livre na sua essência; são verdadeiros juízos individuais. 

Chegados a este ponto, podemos concluir que juízo estético pode ser a representação dessa inquietação a partir da arte que produz o belo. Os objectos criados pelo processo criativo reflectem uma determinada realidade em função de um contexto, o sentimento do artista.

Sobre este ponto, Lukács (1978), defende que a arte tem o poder de realizar uma leitura correcta do contexto social e ter uma apreciação exacta do momento presente. Ela deve estar centrada na busca incessante de estar ligado à vida quotidiana e buscar suas maiores conquistas e transformações, afinal, é para o quotidiano que se vive.

De que quotidiano devemos falar? Os meios de comunicação cultivam diariamente a mediocridade? A violência entra nas nossas casas sem pedir licença. Os artistas convidados às luzes da ribalta brindam-nos com o sexismo do século XXI e o conteúdo deixado no porta-bagagens do automóvel.

A poesia nos dias de hoje

Se Baumann defendeu que “vivemos tempos líquidos” em função da falta de alicerce entre os homens, a poesia neste momento vive de os choques constantes, porque as editoras não editam e os leitores tem outras prioridades, típicas de uma sociedade de consumo e sem capacidade de reflexão sobre os seus hábitos e atitudes.

Tive a sorte de fazer parte do colectivo Arrabenta Xitokhozelo onde divulgamos Literatura, e a poesia em particular, de qualidade independentemente da sua corrente ou época. Os nossos eventos estavam as mesmas pessoas. Os amigos e amantes das artes e letras que encontrávamos nas artérias da cidade defendiam a sua continuidade dada a qualidade do projecto mas, muitos deles não apareciam aos eventos.

Como conviver com esse contra-senso? Os meios de comunicação abriram espaços de divulgação de artes e cultura e muitos jovens aproveitaram e tem aproveitado esses meios para promover os seus textos. Que conhecimento estético tem os dinamizadores desses programas? Que critérios utilizam para convidar os protagonistas? Como a poesia poderá sobreviver, se a mediocridade dos textos é vendida a escala nacional?

A respeito da sociedade de consumo em que estamos envolvidos, Rahde (2007), defende que a pós-modernidade, sem dúvida, vem trazendo maior liberdade, maiores possibilidades de argumentações, se formos educados a questionar para obtermos compreensão maior da complexidade que nos cerca, sem os padrões e regras rígidas que regiam alguns aspectos da arte na modernidade, com a qual ainda convivemos. É preciso, portanto, conviver e melhor aceitar estas contradições que nos cercam.

No entanto, não temos capacidade ou vontade de questionar. A verdade é ofertada a partir de programas televisivos, redes sociais, programas radiofónicos. Tudo o que passa nesses meios constitui verdade para as massas. Daí que o poeta deve ser sempre esse elemento que interroga, prevê novas formas de olhar o mundo a sua volta, projecta caminhos. Como refere Vasquez (1999), dissolveram-se cânones de reflexões estéticas sobre a beleza, uma das categorias da estética, e novas categorias passaram a fazer parte do pensamento estético, a ironia e o grotesco passam a ter novos significados.

A poesia sob influência do neoliberalismo e da pós-modernidade como algo menor, frustrando o meu conceito de belo absorvido em Kant, Pessoa, Baudelaire, Rimbaud, Rilke, Herberto Hélder, Knopfli, Patraquim ou White. Contudo, existe uma geração de jovens como Sangari Okapi, Mbate Pedro, Chagas Leve, Leo Cote, Andes Chivangue, Álvaro Taruma, que continua essa dura luta pela sobrevivência, dado que a poesia, hoje, ganha valores derivados da alteração dos cânones que acreditamos no passado. Temos de sobreviver para que a nossa visão do juízo estético acoplado a experiência possa se reinventar. A poesia representa um espaço de emancipação da sociedade[3]. Como argumenta Rahde, (2007), se ainda pudermos cultivar uma harmonia estética interior, ela poderá, sem sombra de dúvida, levar-nos à apropriação de uma percepção maior do mundo, num processo de reconhecimento, de compreensão e de interpretação. É por essa razão que acreditamos ser absolutamente necessário o desenvolvimento harmónico interior do ser humano e da percepção de si mesmo.

Termino com uma opinião de Walter Benjamin: “o que faz com que uma coisa seja autêntica é tudo o que ela contém de originariamente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico” (Figueiredo & Oliveira, 2005).

Bibliografia CACCIOLA, Maria Lúcia. Sobre o génio na estética de Schopenhauer. In: ethic@ – Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 31 – 42, Julho de 2012.
LUKÁCS, George. Introdução à estética marxista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1978 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
MARTINDALE Colin. Estética e cognição. In FRÓIS, João Pedro. Educação Estética e Artística: abordagens transdisciplinares. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. RAHDE, Maria Beatriz Furtado. DALPIZZOLO, Jaqueline. Considerações sobre uma estética contemporânea. In: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação. e-compos, Abril de 2007 - 2/16
VASQUEZ, Adolfo Sanchéz. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
[1]Comunicação apresentada no debate sobre as artes e literatura, no âmbito da divulgação dos livros editados pela editora Cavalo do Mar.
[2] KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
[3] Como no passado (a luta pela autodeterminação e a poesia de combate, ou no pós-independência com o conflito dos 16 anos), a poesia pode ser o lugar onde o poeta torna-se vidente, mostrando os caminhos para a construção social do cidadão.




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