Entre o juízo estético e empírico: é
ainda possível pensar poesia hoje?
“Mestre das
horas invulgares, companheiro do crepúsculo sedento contra os agiotas da
palavra, que pecado original nos espreita quando se perde a inspiração do poema
genial? Os aedos da televisão sujam a praça de loucos, palco onde os
transeuntes procuram o mel. A glória, a dádiva, perdem o fulgor de outros
carnavais, choram na retina desarmada o bolo prometido em tempos de fome.
Mestres! A solidão é um prato vazio recheado de talheres ocos para o alimento
que foge do calor. Ou é apenas um lugar esparso no coração do homem?” In:
Ensaios Poéticos, 2017, M. P. Bonde
Fazer uma comunicação em volta das artes é sempre
um enorme desafio. Como iniciar o texto? Que elementos trago comigo, para
afirmar que a poesia não é pensada nos dias de hoje, conhecido como
pós-modernidade? Os valores que conhecemos sobre determinadas coisas, estão
hoje confinados a certos arquétipos académicos, e podem não responder às massas
que são intoxicadas por novas formas de olhar o mundo.
Mais, do que respostas venho carregado de
interrogações visto que no dizer de Rimbaud “O poeta faz-se vidente através de
um longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos”. Como ser
vidente numa sociedade que olha de esguelha para o poeta, pela forma como se
apresenta?
O neoliberalismo e a pós-modernidade empurram-nos
para o grutesco, onde aplaude-se a mediocridade sem pudor. Como argumenta
Nietzche sobre a arte “o mundo criado pela arte é uma aparência ou uma ilusão que,
contudo, não nega a realidade, não a desvaloriza, não a submete a juízos
morais, mas unicamente transfigura a matéria sensível, colocando o mundo para
lá do bem e do mal”. É sobre a submissão de juízos que pretendemos neste breve
encontro reflectir.
Penso que o poeta será sempre o farol com o qual
uma sociedade se espelha para a construção dos seus sonhos. Neste sentido, a
poesia deve constituir o alicerce para a construção social e elevação de
valores.
O juízo estético cria múltiplas acepções. Um dos
pensadores mais discutidos sobre o tema é Emmanuel Kant Para o filósofo, o
juízo estético: “é a forma de comunicarmos em palavras e conceitos um
sentimento: o sentimento da beleza. O juízo estético exprime o que acontece
quando temos uma experiência estética, ou seja, traduz um sentimento que
experimentamos ou vivemos ao contemplar um objecto”(Kant, 1995)[2]. Quer dizer,
o juízo estético reflecte a nossa visão sobre o mundo a partir da arte que
produzimos. Ele traduz um sentimento, que pode ser visto como a representação
da nossa experiência como artista, no caso vertente, o poeta. Kant é de opinião
que o juízo estético é universal.
Entretanto, em Schopenhauer, afirma que o
conhecimento estético é objectivo, pois dado por meio da objectivação das
ideias, mas que parte de um sujeito cognoscente “puro”, por isso despido de
qualquer referência a objectos que se relacionam entre si no domínio do
conhecimento científico e do senso comum, por meio das modalidades do princípio
de razão. Trata-se, pois, de uma representação de tipo especial, um sujeito
puro que se refere a um objecto também “puro”, isto é, destacado quer das
cadeias causais das representações intuitivas, quer das cadeias dedutivas das
representações abstractas. A este sujeito é atribuída a qualidade de génio,
pelo tipo especial de conhecimento que propicia, através da ideia estética que
realiza a fusão sujeito e objecto, só possível no caso da ausência da mediação
pelo princípio de razão. (Cacciola, 2012:33). A poesia tem esse mérito de
transcender a razão e cruzar saberes.
Pode ser que a forma mais simples de definir o
juízo estético seja de Martindale (2000), que resume em pura contemplação, não
possui interesse ou desejo, não quer atribuir um conceito fixo, é um juízo
livre na sua essência; são verdadeiros juízos individuais.
Chegados a este
ponto, podemos concluir que juízo estético pode ser a representação dessa
inquietação a partir da arte que produz o belo. Os objectos criados pelo
processo criativo reflectem uma determinada realidade em função de um contexto,
o sentimento do artista.
Sobre este ponto, Lukács (1978), defende que a arte
tem o poder de realizar uma leitura correcta do contexto social e ter uma
apreciação exacta do momento presente. Ela deve estar centrada na busca
incessante de estar ligado à vida quotidiana e buscar suas maiores conquistas e
transformações, afinal, é para o quotidiano que se vive.
De que quotidiano devemos falar? Os meios de
comunicação cultivam diariamente a mediocridade? A violência entra nas nossas
casas sem pedir licença. Os artistas convidados às luzes da ribalta brindam-nos
com o sexismo do século XXI e o conteúdo deixado no porta-bagagens do
automóvel.
A poesia nos dias de hoje
Se Baumann defendeu que “vivemos tempos líquidos”
em função da falta de alicerce entre os homens, a poesia neste momento vive de
os choques constantes, porque as editoras não editam e os leitores tem outras
prioridades, típicas de uma sociedade de consumo e sem capacidade de reflexão
sobre os seus hábitos e atitudes.
Tive a sorte de fazer parte do colectivo Arrabenta
Xitokhozelo onde divulgamos Literatura, e a poesia em particular, de qualidade
independentemente da sua corrente ou época. Os nossos eventos estavam as mesmas
pessoas. Os amigos e amantes das artes e letras que encontrávamos nas artérias
da cidade defendiam a sua continuidade dada a qualidade do projecto mas, muitos
deles não apareciam aos eventos.
Como conviver com esse contra-senso? Os meios de
comunicação abriram espaços de divulgação de artes e cultura e muitos jovens
aproveitaram e tem aproveitado esses meios para promover os seus textos. Que
conhecimento estético tem os dinamizadores desses programas? Que critérios
utilizam para convidar os protagonistas? Como a poesia poderá sobreviver, se a
mediocridade dos textos é vendida a escala nacional?
A respeito da sociedade de consumo em que estamos
envolvidos, Rahde (2007), defende que a pós-modernidade, sem dúvida, vem
trazendo maior liberdade, maiores possibilidades de argumentações, se formos
educados a questionar para obtermos compreensão maior da complexidade que nos
cerca, sem os padrões e regras rígidas que regiam alguns aspectos da arte na
modernidade, com a qual ainda convivemos. É preciso, portanto, conviver e
melhor aceitar estas contradições que nos cercam.
No entanto, não temos capacidade ou vontade de
questionar. A verdade é ofertada a partir de programas televisivos, redes
sociais, programas radiofónicos. Tudo o que passa nesses meios constitui
verdade para as massas. Daí que o poeta deve ser sempre esse elemento que
interroga, prevê novas formas de olhar o mundo a sua volta, projecta caminhos.
Como refere Vasquez (1999), dissolveram-se cânones de reflexões estéticas sobre
a beleza, uma das categorias da estética, e novas categorias passaram a fazer
parte do pensamento estético, a ironia e o grotesco passam a ter novos
significados.
A poesia sob influência do neoliberalismo e da
pós-modernidade como algo menor, frustrando o meu conceito de belo absorvido em
Kant, Pessoa, Baudelaire, Rimbaud, Rilke, Herberto Hélder, Knopfli, Patraquim
ou White. Contudo, existe uma geração de jovens como Sangari Okapi, Mbate
Pedro, Chagas Leve, Leo Cote, Andes Chivangue, Álvaro Taruma, que continua essa
dura luta pela sobrevivência, dado que a poesia, hoje, ganha valores derivados
da alteração dos cânones que acreditamos no passado. Temos de sobreviver para
que a nossa visão do juízo estético acoplado a experiência possa se reinventar.
A poesia representa um espaço de emancipação da sociedade[3]. Como argumenta
Rahde, (2007), se ainda pudermos cultivar uma harmonia estética interior, ela
poderá, sem sombra de dúvida, levar-nos à apropriação de uma percepção maior do
mundo, num processo de reconhecimento, de compreensão e de interpretação. É por
essa razão que acreditamos ser absolutamente necessário o desenvolvimento
harmónico interior do ser humano e da percepção de si mesmo.
Termino com uma opinião de Walter Benjamin: “o que
faz com que uma coisa seja autêntica é tudo o que ela contém de originariamente
transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho
histórico” (Figueiredo & Oliveira, 2005).
Bibliografia CACCIOLA, Maria Lúcia. Sobre o génio
na estética de Schopenhauer. In: ethic@ – Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 31 –
42, Julho de 2012.
LUKÁCS, George. Introdução à estética marxista. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1978 KANT, Immanuel. Crítica da
faculdade do juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
MARTINDALE Colin. Estética e cognição. In FRÓIS,
João Pedro. Educação Estética e Artística: abordagens transdisciplinares.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. RAHDE, Maria Beatriz Furtado.
DALPIZZOLO, Jaqueline. Considerações sobre uma estética contemporânea. In:
Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação.
e-compos, Abril de 2007 - 2/16
VASQUEZ, Adolfo Sanchéz. Convite à estética. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
[1]Comunicação apresentada no debate sobre as artes
e literatura, no âmbito da divulgação dos livros editados pela editora Cavalo
do Mar.
[2] KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
[3] Como no passado (a luta pela autodeterminação e
a poesia de combate, ou no pós-independência com o conflito dos 16 anos), a
poesia pode ser o lugar onde o poeta torna-se vidente, mostrando os caminhos
para a construção social do cidadão.
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