Não me lembro de ser uma mulher comum sem o rude
exercício de aprender as lições da vida - ali - cotidianamente com "a faca
nos dentes". Com horas pequenas, dias efêmeros dentro de outros longos e
limitadores dias de pouca estima. Aprendi a viver? Inevitável aprender a viver
e fazer da vida algo transformador quando se tem a pedra como lição e
companhia. Com o passar dos anos e da convivência aprende-se muito sobre as
pedras. Aprende-se sobre o afeto que nos foi negado, sobre as falhas do
trajeto, sobre as desigualdades dos caminhos mais do que das origens.
Aprende-se sobre a condição de ser, a situação de ser, de ser quando se está
realmente sendo. E ser mulher, a mulher do dia, a mulher, como diz Cora
Coralina: “a minha irmãzinha”, requer a sabedoria das pedras. Preparar a vida
do amanhã, aninhar no braço sonhos destruídos, abraçar causas desperdiçadas,
amar os retalhos sem concessões e na solidão que não é bonita, requer
desdobramentos do corpo e da alma.
Eu também sei o que é ter asas e ser impedida de voar.
Ou ser daquele tipo que não chia nem canta. Isso talvez seja das violências a
que mais nos atinja, a violência silenciosa das grades construídas com a ajuda
de nossas próprias mãos, a construção pelo desperdício do raro, pelo silêncio
instalado entre o jantar e as coisas sujas que se amontoam nas pias da vida. No
universo dos pequenos detalhes e das sutis delicadezas a alma de desdobrada
pode tornar-se um vulto, uma sombra do que se é realmente. Presa na torre que a
confunde entre a espera e o desejo de mudança, a mulher que veio das pedras,
precisa ter a audácia de roubar a chave do seu fiel carcereiro para enfrentar o
desafio da liberdade.
A mulher das pedras que se liberta de seguir um padrão
rígido qualquer ou a grande expectativa do carcereiro, corre o risco de se
tornar a flor sedenta de sol, a flor teimosa que nasce vertiginosamente entre
as pedras, até porque belíssimas flores nascem de solos difíceis. Zelar pelos
novos fios que nascem da vida, tecer mitologicamente a sua própria natureza
recém-descoberta, fará dessa mulher a vasta existência entre tudo o que lhe foi
negado de história e tudo que virá a ser projeto de futuro. A mulher que nasce
entre a peleja e a beleza de sua sede de vida - quase um clichê, corre um risco
imenso de despertar - incompleta, feliz.
mini-Biografia: Patrícia Porto
Graduada em Literaturas Brasileira e Portuguesa, Doutora em
Políticas Públicas e Educação, professora e poeta, publicou a obra acadêmica
"Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da
Literatura” e os livros de poesia "Sobre Pétalas e Preces" e
"Diário de Viagem para Espantalhos e Andarilhos". Participou, ainda,
de coletâneas no Brasil e no exterior, integra o coletivo Mulherio das Letras e
é colaboradora do portal da ANF (Agência de Notícias das Favelas).
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