terça-feira, 2 de dezembro de 2025

No fundo do baú 36 - Emanuel Lomelino

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num ciclo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

No fundo do baú 35 - Emanuel Lomelino

Hoje, a palavra escrita é a representação gráfica de alguns gritos presos na garganta; de alguns impropérios que não podem ser proferidos porque ainda há crianças acordadas; de algumas imprecações lamechas que não combinam com a linguística socialmente aceite.

Hoje, a palavra escrita é uma fuga silenciosa aos fantasmas que teimam em assombrar os ingénuos; aos enfadonhos oradores que não sabem a diferença entre os sinónimos poéticos de festa e plenário; aos inúmeros arrolhadores das plataformas digitais.

Hoje, a palavra escrita é a excessiva glorificação do silêncio; é a exaltação dos pensamentos mais mundanos e vulgares; é o elogio à criação narcisista – dispensável como a maionese numa salada de frutas.

Hoje, a palavra escrita não é um exercício catártico; uma purificação de alma e espírito; um exorcismo de angústias, desilusões, desesperos.

Amanhã, a palavra escrita simbolizará outras coisas – ainda bem – porque também os dias são todos diferentes e merecem ser descritos com as palavras que melhor se adequam à sua singularidade.

EMANUEL LOMELINO