quarta-feira, 18 de junho de 2025
A biblioteca da Sofia (excerto 4) - Fátima Santos
terça-feira, 17 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 62 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
62
Este não é um texto de saudosismo, mas tempos houve em que as cores do dia-a-dia eram mais vívidas, mais aconchegantes.
Os rios refletiam o brilho dos céus; as searas ondulavam a cor do sol; os pomares eram arco-íris de pêssegos, laranjas e maçãs, os jardins eram viveiros de rosas, margaridas, jacintos e tulipas, que cresciam entre ilhas de carvalhos, azinheiras, rododendros, glicínias e, por vezes, jacarandás.
O amarelo era alegria; o verde era esperança; o azul era tranquilidade; o conforto era castanho, a paixão era vermelha; o romantismo era rosa; a jovialidade era laranja; o respeito era preto; a paz era branca.
Hoje, sempre que vemos algo semelhante ao descrito, dizemos estar perante uma visão paradisíaca porque tudo ficou pálido, genérico, demasiado pastel e acelerado, e ficamos sem saber em que momento perdemos as cores e nos entregámos ao cinzentismo moderno.
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Pensamentos literários 32 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
32
Ausento-me de mim nas horas mais longas, à espera do momento certo para abraçar os pensamentos que me elevam.
Sou como um filtro de malha finíssima no garimpo da consciência, sem espaço para deixar-me enredar por irracionalidades pueris, que nada mais fazem do que emburrecer quem a elas se entrega.
Por não ser fácil manter a disciplina necessária para ganhar indiferença ao irrelevante, habituei-me a inundar a mente nos mergulhos que faço na literatura clássica - o meu eremitismo ajuda.
Com isto volto a reforçar a minha adoração pelo isolamento consciente e propositado; pelo silêncio solitário; pelas conversas mudas com os literatos do passado; com as minhas discussões internas. Mesmo que isso me coloque mais dúvidas do que certezas e mais perguntas do que respostas.
EMANUEL LOMELINO
domingo, 15 de junho de 2025
Pensamentos literários 31 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
31
Felizmente, há coisas sobre as quais já não escrevo. Não é autocensura, tampouco é cansaço das temáticas. Simplesmente escrevi tudo o que queria, e podia, sobre cada um desses assuntos e nada mais me resta dizer do que silêncio.
O ofício da escrita – e destes exercícios – também inibe a exclusividade e exige uma faceta criativa múltipla e diversificada, sob pena de martelar sempre as mesmas teclas e parecer um gravador em looping.
Depois, existem toneladas de palavras que merecem a minha atenção redobrada pela amplitude dos ângulos que posso abordar, tantos são os sinónimos à procura de emprego.
Por outro lado, caso seja necessário apontar dedos e culpados, peçam-se meças aos livros que se abrem aos meus olhos e aos raciocínios que afloram nesta mente irrequieta e esquizofrénica.
EMANUEL LOMELINO
De todo mal (excerto 1) - Rose Pereira
sábado, 14 de junho de 2025
Ao pé-da-letra 8 - Emanuel Lomelino
Ao pé-da-letra
8
Neste tempo que é o meu, os anos são cúmulo de água, cloreto de sódio, sangue, reticências, pontos e vírgulas.
Reúnem-se dores e lamentos que se transformam em bagagem-de-mão e escalam-nos até aos ombros, para terem uma vista privilegiada dos horizontes que nos esperam.
Os caminhos; os elementos; as ideias; os anseios; as esperanças; as derrotas; os contratempos; tudo são facas de gumes afiados preparadas para cortar a derme à primeira oportunidade; ao primeiro deslize; à primeira desatenção; ao primeiro baixar de guarda.
Noutro tempo que também foi o meu, as cicatrizes (físicas e mentais) eram medalhas de crescimento e a sensibilidade recusava ficar à flor-da-pele e nunca despertava por dá-cá-aquela-palha.
Os monossílabos não originavam depressões. As encruzilhadas não provocavam ansiedade. Os arrufos não geravam separação. Os atritos não empunhavam belicismo. Todos sabiam que a banha da cobra era escorregadia e o óleo-de-fígado-de-bacalhau sabia mal, mas nem por isso havia dúvidas existenciais nem associações de apoio a seres cheios de não-me-toques.
EMANUEL LOMELINO
Protesto por cinco minutos (excerto 1) - Daniele Rangel
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Pensamentos literários 30 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
30
É nestes exercícios de escrita que me abandono e encontro, vezes sem fim, por inteiro, sem lamentar a sorte nem chorar fados.
As palavras sabem como despir-me a alma (sem pudores nem tabus) e vestir-me o âmago (sem estéticas ou estilismos) porque todos os trajes são assessórios dispensáveis, que só existem por convenção e vaidade.
Um dia pensei ser criador de frases (aprendiz de qualquer coisa semelhante a literatura), mas a realidade esbofeteou-me e agora sei que são elas (as frases) que me constroem, me definem, me escrevem.
O que escrevo não sou eu, nunca fui. Aquilo que escrevo é o que a escrita quer que eu pareça ser. E tudo isto porque eu medito no que ela me dita.
EMANUEL LOMELINO
A biblioteca da Sofia (excerto 3) - Fátima Santos
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Pensamentos literários 29 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
29
O vício de conhecimento empurra-me para leituras inquietantes que, apesar do desconforto da não identificação, têm o condão de plantar algumas sementes com fortes probabilidades de germinarem em algo útil.
Esta circunstância ocorre amiúde porque, por alguma razão que a própria razão me oculta, formatei-me de modo a conseguir ver qualidade literária naquilo que está fora dos parâmetros do meu gosto pessoal.
Quando isto acontece, fico sobressaltado pela indigestão que a leitura me provoca, no entanto, porque tenho um número considerável de neurónios sempre predispostos a saber mais, dou por mim a funcionar como uma esponja que absorve de forma selectiva, mas consciente, conceitos que posso aplicar nas criações por vir.
Este processo é a soma de duas máximas ancestrais: “O saber não ocupa lugar” + “Nada se perde, tudo se transforma”.
EMANUEL LOMELINO
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Devaneios sarcásticos 22 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
22
Esta coceira subcutânea é uma reacção alérgica à imodéstia que voga nos ares circenses do universo individualizado das palavras.
Há um formigueiro que alastra corpo acima, como um farol de incómodo, e um outro, de jactância, que sobrevive à base de ácidos, pompa e circunstância.
A questão central é, precisamente, ser tudo lateral, periférico, limítrofe, marginal, à essência da arte. Tudo é engodo e subversão. Um chamariz veneziano para um corso de elitismo pedante.
O problema não está na vaidade presunçosa, mas sim nos rostos de plástico e sorrisos acetilenos, que escondem facas nos cós e fatuidade nos gestos, como se o mundo dependesse de esturjões e cosméticos, ao som de pífaros e violinos, numa noite de fábula e histórias da Carochinha, de portas cerradas aos pés-no-chão e olhos-abertos.
E não há metáforas suficientemente impactantes para descrever a arrogância pífia desta nova tendência aristocrata que grassa, e se alastra como sarna, nas letras Iscariotes.
EMANUEL LOMELINO
terça-feira, 10 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 61 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
61
Abrem-se as portas da introspecção e na balança do deve e haver são pesados todos os passos, recuos e avanços.
Na avaliação, somam-se virtudes, méritos, nobreza, honra e altruísmos, e subtraem-se defeitos, vícios, transgressões, imperfeições e fraquezas.
O resultado desse exercício meditativo nem sempre corresponde à realidade porque existe uma tendência para a parcialidade, contudo, sendo-se honesto, chega-se a conclusões interessantes que podem ser benéficas, se usadas para limar arestas e alterar comportamentos.
Seja como for, a reflexão é a base holística do autoconhecimento e jamais pode ser reprimida, bem pelo contrário, deve ser entendida como uma oportunidade única para analisarmos as diferenças entre aquilo que queremos ser e o que somos na realidade. Só depois poderemos concluir se temos a fibra necessária para nos transformarmos no nosso ideal.
EMANUEL LOMELINO
E a maldição (excerto 4) - Rose Pereira
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Pensamentos literários 28 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
28
Deste lugar privilegiado, o horizonte é céu, terra, um rio navegado por inúmeras embarcações, uma ponte percorrida por uma infinitude de veículos, e todo o tempo que o meu olhar demora a perceber a totalidade da paisagem.
Igual extensão temporal existe na construção de puzzles, na leitura de dois capítulos dos Maias, ou na elaboração dos exercícios de escrita que, indiferente, partilho.
A mesma cadência existe no entrançar de pensamentos desta mente irrequieta, que se dedica (de corpo e alma; de fio a pavio) a dar voz à esquizofrenia que me define.
Não há nada mais nefasto para um ser-escrivão do que a ociosidade das mãos e a preguiça de uma pena.
Por isso, quando não escrevo sinto-me inútil e faço das tripas coração para que as folhas de papel (ou a tela do PC) estejam de bom humor e aceitem receber as palavras que nascem de mim.
EMANUEL LOMELINO
Velas perfumadas (excerto 5) - Daniele Rangel
domingo, 8 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 60 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
60
Estou cansado destes ares poeirentos que teimam em frequentar os espaços, sem ventilação, onde exerço o labor que me mortifica.
Não há um dia sem que essa presença fétida e mórbida fique a pairar sobre mim, como nuvem de tempestade iminente, mesmo resguardado no vazio das ideias e na leveza dos passos.
É uma fadiga crescente, ácida e pérfida que, acima de tudo, consegue perpetuar todos os desconfortos mais tempo do que o necessário, como um post-it esquecido e com lembrete desatualizado.
É inglório chegar-se à madurez da existência, apto para gerir colateralidades e administrar as doses certas de equilíbrio, e ter de inalar todos os vapores inválidos e fora de prazo, expelidos pelas chaminés do infortúnio, como um despertador que recusa silenciar-se.
Neste contexto, há muito deixei de acreditar ser possível escrever direito por linhas tortas. Por mais que as estique voltam sempre a encarquilhar.
EMANUEL LOMELINO
A biblioteca da Sofia (excerto 2) - Fátima Santos
sábado, 7 de junho de 2025
Devaneios sarcásticos 21 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
21
No horizonte, duas áleas de fogo-fátuo iluminam, com as suas línguas afiadas de fome, as gordas passadeiras da presunção.
Pernas torneadas, por óleos, lâminas depiladoras e solário, avançam na vaidade dos passos altivos rumo ao salão pedante, como se a vida fosse movida a esturjão e champanhe francês.
Os espelhos refletem a modesta jocosidade dos engraxadores de crinas escovadas e gravatas espampanantes, que bajulam girafas anoréticas, e outras aves-raras, de pescoços nus e manchas retocadas a botox.
Até os lustres e candelabros receberam suas doses de unguentos de brilho cristalino para irradiarem pompa e circunstância sob as ocas cabeças de gel, laca e outros gases aspergidos.
E este cenário de saltos-altos e narizes polvilhados só fica completo havendo trovoadas de flashes e adulações vocais porque, quando o sol retornar aos céus, o mundo plebeu vai querer vibrar com a ostentação dos bonecos movidos a exuberância fútil, lisonjas supérfluas e capas maquilhadas.
EMANUEL LOMELINO
sexta-feira, 6 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 59 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
59
Quando sou abraçado pela paz dos meus mais preciosos silêncios, consigo levitar sobre a dureza dos dias como nuvens sopradas pela brisa matinal de verão.
Nas veias, correm livres, jangadas de júbilo sobre rios de esperança e o corpo, suspenso num raro frémito aliviado de tensão, flutua numa boia de confiança, prazer e bem-estar.
Os passos nascem com a agilidade felina e corajosa de quem enfrenta o mundo de peito aberto às adversidades, e os gestos brotam soltos, leves e indolores, numa completa indiferença sensitiva, apenas acessível pela dose certa de robustez emocional.
As encruzilhadas são meros detalhes de uma jornada que se faz primaveril, para deleite dos sentidos anestesiados pela beleza dos horizontes, que se mostram mais nítidos e definidos.
Depois… bem, depois volta o cinzentismo dos dias invernais, mas o espírito, calibrado pela serenidade da reflexão, tem a firmeza suficiente para ultrapassar os obstáculos que os combates da vida proporcionam.
EMANUEL LOMELINO
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 58 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
58
Embora o tempo esteja a esgotar-se, ainda tenho esperanças de encontrar, em vida, o contrato de adjudicação e a licença empresarial da fábrica que fornece os problemas e contratempos que cruzam o meu caminho.
Depois, caso consiga o contacto directo, pedirei uma reunião de trabalho com os máximos responsáveis da empresa (CEO, diretor criativo, chefe de produção, chefe da logística e de distribuição) para procurar entender os fundamentos-base na definição da complexidade e género de obstáculos que me destinam, conhecer os critérios usados para estabelecerem o momento exacto de confrontar-me com cada item, saber as razões para a frequência, quase diária, das entregas feitas e, mais importante de tudo, por que carga de água devo pagar as faturas de artigos que nunca encomendei.
EMANUEL LOMELINO
E a maldição (excerto 3) - Rose Pereira
quarta-feira, 4 de junho de 2025
Devaneios sarcásticos 20 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
20
Interrogo-me sobre o paradeiro das palavras que, por falta de caneta e papel, ficaram por escrever. Aquelas que, abandonadas a sorte nenhuma, ficaram recolhidas no orfanato do léxico à espera de serem adoptadas por outros progenitores mais merecedores e sedentos da sua significação e importância.
Quantos serão os adjectivos, vagabundos silenciados com uma folha curricular debaixo do braço, que deambulam de estômago vazio e a esperança cosida na lapela?
Por onde andarão os advérbios sem modos e de nariz empinado que emergiram num momento de lucidez jamais registada?
Para onde navegarão agora aqueles verbos imponentes, contudo esquivos, que miraram o porto da criação com olho gordo, mas não saíram da embarcação da mente?
Como estarão os substantivos que um dia afloraram e foram barrados nos portões do estro, por não haver trajes de tinta nem hábitos de papel para os embrulhar numa qualquer história sem moral?
Como pode ser esdrúxula uma tarde sem pena nem caderno e palavras reprimidas!
EMANUEL LOMELINO