quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Lomelinices 34 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

34

Nesta bruma cerrada escondem-se os limites das sombras que nos fogem ao olhar e os enganos vestem-se camuflados de farol.

Nesta neblina fechada escondem-se os finais de tarde que, nem os mais furtivos raios de sol conseguem iluminar.

Nesta névoa trancada escondem-se as margens vampirescas que se mascaram de anjos para levar-nos ao precipício.

Neste nevoeiro selado escondem-se as barreiras da ilusão com o simples e matreiro propósito de nos ocultar os embustes.

Nesta cortina de fumo espesso escondem-se as armadilhas sedentas de sangue, de quem, com esperança e boa-fé, se deixa guiar.

Os véus do engodo aproveitam-se da cegueira dos tolos e inocentes, como se o prejuízo dos desavisados fosse a única e suprema via para matar a fome da cobiça desmedida e cobarde.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 14 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

10-09-2024

Desconheço o modelo educativo utilizado na formação dos novos jornalistas, mas desconfio que, ao contrário do que era ensinado, em tempos que vão longe, os princípios base da profissão devem ter sido colocados de lado e informar sobre os factos deixou de ser a sua principal e imperativa função.

Este paradigma do jornalismo, que não é novo, faz com que os noticiários e as colunas de jornal nada mais sejam do que enxurradas de hiperbólica adjectivação sobre coisa nenhuma, avalanches de especulação barata, aniquilamento do bom-senso e apologia de imediatismo, que resulta na estupidificação maciça.

Longe vão os tempos em que ler jornais e assistir a um espaço noticioso televisivo ou radiofónico, para além do aspecto informativo, enriquecia-nos linguisticamente, através de espessas doses de textos com qualidade literária.

Infelizmente, nestes dias de selvático consumismo descartável e sedentarismo mental, somos encharcados por meros rascunhos lamacentos, cheios de estrangeirismos bacocos, fraca dicção e ausência completa de ética e valores deontológicos.

Não posso negar que a era digital trouxe coisas boas mas, para mal dos nossos pecados, o que mais se destaca é a preguiça intelectual, como fica provado pelo miserável jornalismo que nos inunda os sentidos.

EMANUEL LOMELINO

Cordão umbilical (excerto) - Julia Seraphim

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Tem épocas em que a minha curiosidade em relação àqueles que me geraram se aguça. Tanto que, há alguns anos, procurei uma radiestesista para saber mais a respeito. Descobri que tenho um irmão que igualmente foi entregue, pela mesma falta de condições dos nossos progenitores. Curioso é que todas as minhas dúvidas poderiam ser sanadas com uma boa conversa com a minha mãe adotiva. O problema é que simplesmente não conseguimos dialogar sobre temas profundos, minha mãe e eu temos uma relação de difícil proximidade.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Lomelinices 33 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

33

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Lomelinices 32 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

32

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num círculo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir...

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 3) - Jorge Chichorro Rodrigues

 

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O oceano, além de ter a grande qualidade de irmanar todos os homens da nau capitânia da frota comandada por Pedro Álvares Cabral, fazendo-os partilhar as mesmas grandezas e os mesmos perigos, transmitia ao orador o estranho pressentimento, de muito vagos contornos, de que tinha uma missão a cumprir sobre a Terra. O seu carisma rejuvenescera homens que haviam embarcado com as faces causticadas pelo destino, os olhares fustigados por anos de sofrimento e de trabalho, os corações a sangrarem de saudades da terra e dos parentes deixados para trás, o espírito receoso quanto ao incerto futuro…

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

domingo, 13 de outubro de 2024

Contos que nada contam 28 (A cantora) - Emanuel Lomelino

A cantora

A plateia levantou-se, em uníssono, para ovacionar Severina, com a mesma intensidade emocional que a cantora emprestou à sua actuação.

Apesar de sentir no peito todo o esforço despendido durante as duas horas de espectáculo, Severina não precisou forçar um sorriso perfeito e repleto de humildade genuína, na hora de demonstrar agrado pela devoção do público.

Ela vivia para aqueles momentos de louvor. Os únicos que lhe transmitiam paz e davam motivos para não desistir. Durante o tempo que estava na sala de espectáculos, o mundo parava, a vida suspendia-se e Severina conseguia usufruir de algo que era mais do que um sonho. Era uma pausa no pesadelo diário que vivia fora dos palcos.

Entregar-se de alma e coração à sua arte, ver as lágrimas de comoção em alguns rostos e, entre gritos de reverência e admiração, escutar soluços pungentes e emocionados, por muito incoerente que pudesse soar, eram os estímulos que necessitava para esquecer momentaneamente todas as agruras que a vida lhe proporcionava diariamente, após perder a criança e descobrir que não poderia voltar a engravidar, e que o generoso público ignorava completamente.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 12 de outubro de 2024

Lomelinices 31 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

31

Nesta loucura de mim, reflexo das piscadelas de olho dos meus (apurados?) sentidos, cravo todos os verbos auxiliares de memória e construo uma história sem futuro, mas intemporal.

Como criador que sou (e me sinto?) abro o kamasutra de possibilidades ilimitadas do estro (se o tenho!) e desenho a inconveniente postura de um adjectivo concreto, para expurgar o iodo das sentenças enfermas e, assim, eliminar a linha condutora dos raciocínios exactos que me invadem.

Enquanto autor de incoerências e paradoxos redundantes, mergulho na liquidez de um pensamento firme e dou-lhe características plásticas, como quem mastiga a dor de uma revelação insonsa - de cuja falta de encanto pode germinar a frase mais contundente e acintosa.

Há propósito nos casamentos que imponho às palavras porque de nada servem as solteiras, prenhes de solidão gramatical e mais susceptíveis ao embuste e ao narcisismo.

Acredito na desformatação das fórmulas e no aniquilamento do óbvio (advérbios e derivações!) em detrimento – que não substituição – dos recursos assessórios, que não os simples e básicos, porque essenciais e necessários.

Creio na encriptação metafórica e na irónica exploração dos verbos regulares, como quem personifica uma multitude de gestos comprometedores.

Por isso, todos os meus textos podem ser explicados numa única e definitiva frase, quando não por apenas uma singela palavra.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Lomelinices 30 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

30

Ao contrário de todos os outros sentimentos, acho que o medo ainda me espera no inesperado.

Não tenho medo de répteis, roedores ou gosmas, apenas asco e repugnância. Não tenho medo de agulhas, ou outros instrumentos pontiagudos.

Não tenho medo da solidão porque a procuro. Não tenho medo do vazio porque me preencho. Não tenho medo do escuro porque me atrai. Não tenho medo de gritos porque os ignoro. Não tenho medo de falinhas mansas porque desconfio. Não tenho medo de traições porque as sinto. Não tenho medo da desilusão porque prevejo. Não tenho medo do futuro nem da morte porque os desconheço.

Não tenho medo de monstros, bestas, feitiços, crenças, seitas ou outras criações fantasiosas da humanidade porque também as sei criar.

Tenho vertigens, mas nunca me recuso subir ao penhasco mais alto e íngreme porque sou combativo mesmo sentindo angústia e desconforto.

Dizem que o medo dá arrepios, também a febre. Dizem que o medo faz tremer, também o frio. Dizem que o medo faz suar, também o ginásio. Dizem que o medo deixa a garganta seca, também a sede. Dizem que o medo dá nós no estômago, também a fome. Dizem que o medo gera apreensão, também a pobreza. Dizem que o medo causa ansiedade, também as drogas. Dizem que o medo acorda os sentidos, também o sexo. Dizem que o medo origina desconfiança, também a política. Dizem que o medo provoca lágrimas, também a cebola. Dizem que o medo assusta, também eu.

EMANUEL LOMELINO

Entre mundos (excerto) - Farah Serra

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Acho que até os meus vinte e tantos anos vivi no mundo da magia. Apesar de alguns desajustes, no geral, dancei perfeitamente bem. Superei meus desafios sem esforços mirabolantes, sem nem mesmo me dar conta do tamanho e do peso deles. Talvez pelo meu encantamento, aquele que os jovens carregam no peito, a vida me parecia uma brincadeira, eu apenas aprendia as suas regras e me divertia. A minha existência fluía e eu flutuava.
Até que voei.
Voei longe, resolvi experimentar a bota que ficava lá do outro lado do oceano. Naquela época, no auge dos meus 30 anos, na urgência avertida de ter que conquistar algo, desembarquei no mundo real e iniciei a minha grande jornada em busca do meu complexo, emaranhado, ser.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Lomelinices 29 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

29

O meu modo de criação é distinto e dá-me imenso trabalho, porque sou um autor estranho.

Leio uma frase, escuto uma conversa, oiço uma música, vejo uma imagem, e logo acende-se em mim uma estranha necessidade, impossível de controlar, de desenvolver a ideia.

Estranhamente, chamo os meus vizinhos dicionários, sondo verbos, adjectivos e substantivos, estudo sinónimos e antónimos, examino advérbios e pronomes, pesquiso significados e curiosidades, enfim, faço trabalho de laboratório.  Experimento conceitos, construo frases, burilo daqui, pinto dali, desenho acolá, escrevo e reescrevo até que o texto me informe da sua disponibilidade para ir ao forno, secar a tinta e temperar o aço que o sustenta. E espero…

Espero que o sujeito – meu ortónimo (mais estranho que eu) – decida se deve ou não divulgar o que escrevi. Quando há aval positivo, ele pré-agenda e tudo fica em suspenso, até à data de publicação.

O processo faz com que exista uma grande distância temporal entre o dia que vê nascer o texto e o momento em que lhe é dado sentir a luz da visibilidade.

Este texto, escrito hoje, certamente só terá leitores daqui a um mês, ou mais. Ou devo dizer: este texto que escrevi há um mês, ou mais, só está a ser lido hoje.

Seja qual for a forma correcta de expressar a ideia, de uma coisa tenho certeza: por causa do pré-agendamento, dependendo do ritmo de criação, só saberão da nossa morte – minha e do ortónimo obsessivo-compulsivo – meses depois de acontecer. E isso será um estranho prolongamento da nossa vida. Uma espécie de imortalidade temporária.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 13 - Emanuel Lomelino

30-07-2023

O útero foi fecundado, num ato de amor casto e inocente, com a esperança de ser a génese de uma nova realidade, plena, lúcida, feliz.

Mas os conceitos embrionários não têm correspondência nas atitudes progenitoras.  Todas as regras criadas são apenas para enfeitar. Os princípios morais não são para seguir. Os novos hábitos e comportamentos são meras figuras de retórica. As imposições jamais se cumprem. O respeito exigido não se dá. E a cegueira do obstetra de serviço impede que se diagnostique uma gravidez de risco.

Quando o parto acontece, todos aplaudem e celebram o rebento. Ninguém duvida da paternidade, mas também não reconhecem os traços da ascendência. Instala-se um silêncio inquisitivo e uma ânsia contempladora, mas há felicidade nos rostos.

A inocência infantojuvenil depressa se transforma em arrogância e prepotência, de forma tão natural quanto previsível. Dizem que é sinal dos novos tempos e, com o contágio da cegueira obstetra, vai-se alimentando as bizarrices do pequeno adulto.

Agora multiplique-se por toda uma geração e, pasme-se quem quiser, temos o sucessor do homo sapiens. Um inútil, sem interesse no passado, dependente e sem rumo, criado na ilusão dos novos tempos, em que todos são vencedores e os reis são aqueles com cabelo cor de açafrão ou colorau, maquilhados com filtros virtuais. donos de canais de TikTok e que questionam a utilidade de se ter inventado a gravidade.

Não escrevo mais nada porque ainda me cancelam.

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 2) - Jorge Chichorro Rodrigues

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ao redor do vibrante orador, que gostava de explanar diferentes temas filosóficos, reuniam-se homens irmanados pela curiosidade, pela vontade de ouvir alguém especular sobre o grande mistério do mundo. O oceano em volta, mostrando a real dimensão do Homem, inspirava elevados pensamentos e sublimes ideias, que, contudo, não deixavam de ser relativizadas pelo orador. «As ideias são como as pessoas», dizia, «se as valorizamos excessivamente tendem a querer dominar-nos, a tornar-nos menores que elas... Devemos ter em relação a elas o suficiente espaço crítico para que jamais elas nos seduzam ao ponto de nos fazerem perder a lucidez...

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Lomelinices 28 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

28

Em certos dias, mais incertos do que a dúvida existencial, derrama-se sobre mim um desejo de não ter necessidade de extravasar, nas palavras que de mim se manifestam, a síntese de tudo o que esta mente, insaciavelmente, cria e inventa.

No cansaço dos dias modorrentos, e de outros mais fugidios, verte-se-me uma vontade de não precisar juntar verbos aos complementos; sujeitos aos predicados; advérbios às conjunções, que se formam, como hera incómoda e selvagem, e não consigo conter nas margens do anonimato.

Na fadiga das horas morrentes, e outras mais cheias, espalha-se sobre mim uma ânsia de dizimar este imperativo clamor de expelir as histórias que despontam a cada olhar, a cada som, a cada angústia, a cada pensamento, como quem sangra as debilidades do que não controla.

Nesses dias de lassidão e pouca pachorra, inundo-me de repulsa pelo assombro e inconveniência das palavras que germinam em mim e não sei como deixar aprisionadas nas prateleiras do descaso, como quem se renega três vezes diante da morte anunciada.

Na inabilidade de mim, em frustrar a criação, aborta-se-me sobre os ombros a força e querer de abdicar deste estro que não pedi e alguns juram que tenho.

E tudo isto porque, por mais absurdo que possa soar e parecer, mesmo sendo eu o criador, o que crio não me define e eu não me escrevo.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 12 - Emanuel Lomelino

18-02-2024

Esqueçam tudo o que vos ensinaram sobre a diferença entre os humanos e os outros animais. Por muitas características diferenciadoras que encontrem, há uma que sobressai, mas ninguém a menciona porque nos é desfavorável.

Como tenho uma página inteira para preencher, vou dar algumas pistas antes da grande “revelação”.

Algum de vocês imagina uma leoa decidir, mesmo que apenas por um dia, não caçar?

Algum de vocês concebe a ideia de um salmão recusar nadar contra corrente até ao local de origem?

Algum de vocês consegue vislumbrar uma ave de rapina ignorar uma presa avistada a um quilómetro de distância?

Algum de vocês julga possível uma abelha postergar a recolha de pólen?

Algum de vocês acha viável o cancelamento da migração das orcas, dos gnus, ou dos pelicanos?

Eu podia continuar a fazer questionamentos semelhantes, mas a página está a ficar sem espaço e é chegada a hora de revelar a maior diferença entre humanos e outros animais.

A humanidade é a única espécie que dá uso à preguiça.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 6 de outubro de 2024

Contos que nada contam 27 (O salto) - Emanuel Lomelino

O salto

O sangue ferve, rubro como só ele, em torrentes pulsantes de entusiasmo. A adrenalina inunda cada célula como uma onda de energia atómica, provocando um estremecimento cutâneo difícil de descrever, apesar de o sentir em toda a sua intensidade e plenitude.

Flaviano conhece bem a origem de tamanha comoção e sabe que nada pode fazer para combater a longevidade do desconforto. Suporta-o com galhardia, limitando-se a olhar o horizonte que se espraia, diante dos seus olhos, na vertigem dos sentidos.

O sentimento não é novo, contudo, Flaviano sente-o sempre de forma distinta. Essa particularidade, que o intrigou durante as primeiras experiências, deixou de fazer parte dos seus pensamentos mais inquisitivos e, também por isso, cada treino é uma nova história que se escreve.

A única coisa que se mantém inalterável é a sequência de acções que tem de executar, com o máximo rigor, para continuar a alimentar o seu vício e ter a possibilidade de usufruir das sensações que o próximo salto de paraquedas lhe pode proporcionar.

EMANUEL LOMELINO

Reencontro (excerto) - Claudia Egas

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Nunca pensei que em um determinado dia minha vida mudaria completamente. Uma vez li que escorpião é um “fixed sign”, ou seja, um signo que não gosta de mudanças. O que demorei muito para aceitar, mas que aprendi ao longo dos anos, é que a única coisa constante na vida é que tudo muda.
Vou para cama uma noite e acordo aterrorizada, sem ar, com o coração apertado e uma dor que me parecia intrínseca a minha alma, ao meu ser. Perguntas roubaram meu sono, como se algo muito ruim estivesse acontecendo. “O que faço agora?”; “O que quero daqui para frente?”; “Aplico para posições em outros bancos?”

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sábado, 5 de outubro de 2024

Epístolas sem retorno 17 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

Aos mestres,

Sabes Fernando, tal como tu, eu também tenho uma divergência com o mundo porque o vejo com cores diferentes daquelas que ele diz estar pintado.

Até aceito que digas – Alberto – que o problema está nos meus olhos tristes e cansados, e que os tons pastel que observo são do desapontamento que a vida ostenta como medalhas.

Até admito que tu – Álvaro – por seres mais sábio e avisado nas multiplicidades terrenas, vejas nos meus olhos alguma cegueira febril e impostora, e o mundo continue a ser uma criança inocente.

Até reconheço que tu – Ricardo –, por seres poeta da prudência, tens legitimidade para me acusares de heresia e apontares os pecados que a minha visão perpetua em desfavor da terra que pisamos.

Até estimo que tu – Bernardo – tenhas uma opinião para cada entendimento que pulula a minha mente, e matéria suficiente para escreveres uma tese sobre este desassossego.

Não sei qual dos dois – eu ou o mundo – tem a razão do seu lado, no entanto, os esparsos momentos de observação lerda levam-me a acreditar na impostura luminosa do mundo.

Sabes Fernando, nem tudo o que luz é ouro e o brilho dele – o mundo – é terceirizado e engana.

Apreensivo

Emanuel Lomelino

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Lomelinices 27 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

27

Sou tão paradoxo como o Fernando. Só não dei nomes às minhas esquizofrenias, como ele, genialmente, fez, porque decidi assumir os meus delírios de personalidade e concentrá-los num só indivíduo. Assim, só se enferma e destrói um corpo.

Tal como ele – o Fernando – também escrevi sobre tudo e em vários registos, no entanto, heteronimizar os meus devaneios seria demasiado penoso e confuso, pela exigência de criar – além da criação que partilhamos – outros que, sendo eu, não passariam de pedaços minúsculos, pequenos fragmentos residuais, logo, sinopses perfeitas de redundância, e eu prefiro ser personagem ortónimo, por isso único, independente e lacónico.

Neste quesito, sou como o outro Pessoa – o Joaquim – que, quando questionado sobre as razões de, em determinado momento do seu excelso percurso, escrever num estilo e não noutros, respondeu que a sua escrita já tinha passado por todos os registos possíveis e não tinha de provar mais nada.

Adoptei este conceito – do Joaquim - e uso-o para justificar a descontinuidade de alguns temas na minha paleta criativa. Já provei que sei escrever sobre eles, ponto final.

E dou graças aos céus por não ter um heterónimo associado a essas temáticas arquivadas, no tempo que já foi, porque isso implicaria ter de inventar uma morte fictícia para um pleonasmo ambulante irreal.

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 1) - Jorge Chichorro Rodrigues

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Quantos princípios há no universo? Muitos, infinitos princípios, mas existe um princípio maior do que todos os outros, um princípio primordial, o Grande Princípio, Pai e Mãe de todas as coisas que existem no universo… A cada momento está a nascer um novo universo, por cada ser humano que nasce, por cada cultura e civilização que ganham vida... Interrogo-me muitas vezes: o Génesis não se renova constantemente, em diferentes particulares? Além de um Grande Princípio universal não haverá um Grande Princípio particular? Não viverá cada um de nós, ser humano, cultura ou civilização, a seu modo, o Grande Princípio universal?

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lomelinices 26 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

26

Cada nova alvorada é um renascimento de oportunidades: uma proposta de ar respirável; um atestado de continuidade; uma declaração de intenções; uma moção de confiança; e uma promessa por cumprir.

A cada amanhecer, nasce-me a vontade de roubar a linearidade dos dias e construir outro tempo, menos volúvel e frívolo. Cresce-me o desejo de eliminar as súplicas do corpo cansado, abrir as asas ao horizonte e estender a toalha dos sonhos por concretizar.

A cada aurora, rejuvenesce-me o apetite de seduzir os raios de sol, como quem se prostra à beleza sagrada – porque perfeita – e cegar os caóticos medos que deambulam na mente, transformando-os em memórias esquecidas. Renova-se-me a sede de enfeitiçar o voo das aves, recolher o mel das cores vívidas e abraçar o arco-íris, como quem espanta os males por vir.

A cada madrugada, brota-me, dos olhos, um sorriso de confiança estoica no correto dedilhar de mais um instante de vida. Jorra-me um concerto de esperanças e fantasias por realizar, como estrela que guia os meus passos mais trémulos e imprecisos, rumo ao apogeu de mim.

E nos dias em que não me cumpro, morro-me ao pôr-do-sol.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Lomelinices 25 - Emanuel Lomelino

Lomelinices

25

Paira sobre mim, como auréola cintilante, uma angústia arrítmica que sinto, mas não vejo nem identifico. Sei que acompanha todos os meus passos e preenche todos os meus pensamentos, desde a alvorada bocejante até ao crepúsculo soporífero.

Para agravar a situação, sinto crescer-me nas costas duas asas de preocupação, que não conseguirão levitar-me – inúteis.

Tento decifrar a origem do sentimento para afastar de mim esta permanente vertigem, entre o desconforto e o vazio, que rouba o foco e a energia.

Olho em redor, como quem grita aos ventos pelo consolo de uma resposta que tarda em chegar, e nada vejo que sossegue a ânsia de outros ares, outros espaços, outros tempos.

Nos ouvidos sinto a pressão de um zumbido surdo e vago que inunda a mente de silêncio, como fosse um mar sem ondas nem rebentação.

Para impedir que eu descubra as razões deste incómodo e obrigar-me a voltar ao início de tudo, eis que tenho uma pedra no sapato, e preciso livrar-me dela. Oxalá que ao atirá-la para longe a angústia a acompanhe e, em mim, o alívio tome o seu lugar.

EMANUEL LOMELINO