terça-feira, 23 de julho de 2024

Contos que nada contam 2 (O besouro) - Emanuel Lomelino

O besouro

A vida é um infinito encadeamento de instantes - acções que geram reacções. Por isso, quando um besouro emerge da sua tumba íngreme há pedras que rolam e empurram outras, rumo ao precipício. A minúscula avalanche que se forma assusta o gamo que começa a correr ladeira abaixo e atravessa uma estrada asfaltada, onde, no mesmo instante, passa um veículo que não consegue evitar a colisão. A violência do embate faz com que o condutor da máquina perca o controlo e o carro saia disparado, qual pássaro na primeira tentativa de voo, na ravina que ladeia a estrada. Após quatro mortais e três piruetas, a máquina estatela-se numa bola de fogo que, rapidamente se alastra ao bosque que aí existe. As línguas de fogo lambem, inclementes, toda a vegetação e chamam a atenção do peregrino que está a descansar no miradouro que existe do outro lado. Apesar do choque, essa alma boa mantém o sangue-frio e alerta as equipas de emergência que, imediatamente, ocorrem ao local dos sinistros. Na tentativa de apagar o gigantesco incêndio que se formou, um bombeiro, que nesse dia deveria desfrutar de folga, ficou inconsciente por inalação de fumo, e outro, que veio directamente do tribunal por causa do divórcio, sofreu graves queimaduras por ter tropeçado num pedregulho ocultado pela fumaça espessa. Lá no alto, ao deparar-se com o cadáver do herbívoro a servir de repasto a duas aves necrófagas, um polícia, que na véspera tinha assistido ao nascimento da primeira filha, chega à conclusão que não tem estômago e decide mudar de profissão. Depois de muito esforço para desencarcerar o corpo da viatura sinistrada, o chefe da divisão de trânsito reconhece o pendente e a aliança da vítima e entra em choque, precisando de atendimento médico.

As exéquias são celebradas dois dias depois da ocorrência, no cemitério que existe no topo da montanha. Estão presentes todos os que estiveram no local, com excepção dos dois bombeiros feridos, do recém papá e do chefe da divisão de trânsito que teve de ser internado com um esgotamento nervoso pelo falecimento do filho. Também está presente o peregrino que, coincidentemente, é o padre daquela paróquia e teve de cancelar a peregrinação. Ele assistiu a tudo desde o início e agora, que o corpo da vítima já foi enterrado, imerso em mil pensamentos samaritanos, os seus olhos veem um pequeno besouro que mergulha na terra recentemente revolvida, sem imaginar que tudo o que aconteceu foi apenas o resultado de uma corrente de eventos iniciados por aquele mesmo insecto.

EMANUEL LOMELINO

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