terça-feira, 25 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 350 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

350

Consciente de estar a anos-luz de poder ser considerada lerda, Anália sente que, por mais experiente que seja nas coisas da vida, não consegue desfazer-se daquela ínfima parte da sua personalidade que recusa abandonar a ingenuidade.

Embora a provecta idade a tenha feito ganhar um elevado grau de perspicácia, ela precisa sempre de mais do que nanossegundos para captar a totalidade dos intentos contidos em cada gesto, em cada atitude, em cada palavra.

Esta característica nunca a impediu de ver o mundo com as cores certas, apenas não permite que as enxergue no imediato. Mas Anália convive bem com isso e até diz, por graça, que o seu carácter vagabundeia entre a infância e a velhice.

Por conta desse traço de inocência, ela demorou algum tempo para concluir que a sensibilidade mesquinha, os pruridos precoces, os melindres desfasados e a falta de senso-comum não são padecimentos exclusivos das gerações deprimidas deste tempo. Há muitos adultos, alguns tão avançados na idade quanto ela, que foram contaminados pelo espírito afrontoso da futilidade leviana, agem tal qual adolescentes rebeldes em busca de protagonismo e fazem beicinho, ou birras monstruosas, quando as contrariedades da vida se atravessam no caminho.

Depois de chegar a esta conclusão irrefutável, Anália lembra-se, com frequência, dos tamancos da sua saudosa mãe.

EMANUEL LOMELINO

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