terça-feira, 25 de julho de 2023

Diário do absurdo e aleatório 14 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

14

Na rua do olvido existe um velho casario, de madeira retorcida e pintada com as cores do esquecimento, cercado por rebanhos de urze seca de tão idosa.

Ultrapassado o portão de ferro forjado por artesãos rudes, abre-se um caminho de pedra vestida de musgo escorregadio, cor-de-azeitona moída, que nos dificulta os passos em direcção à porta torta e tosca que range de dor ao ser empurrada para revelar o interior bafiento da moradia.

A ampla entrada marmoreada com a sujidade do tempo antecede uma escadaria obliqua, que esconde as paredes forradas com retratos fantasmagóricos de figuras que agora são espectros vigilantes.

Numa das molduras, revestidas com tecido aracnídeo, adivinha-se o rosto sombrio de uma velha cortesã de longos cabelos negros transformados em tranças imberbes, presas no cocuruto, como que arrumadas no sótão do corpo.

Ao lado, um rosto masculino, de bigode labiríntico, cavanhaque juvenil e suíças exageradas, trajado de militar de enfeite – com direito a pluma na aba do ridículo chapéu fora de moda.

O resto da casa fica por descrever porque, nestas coisas da memória, existem assuntos que podem ser falados enquanto outros são de foro pessoal e intransmissíveis.

EMANUEL LOMELINO

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