segunda-feira, 7 de março de 2022

O caso do enterro do Liu – TEREZINHA PEREIRA

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Estávamos numa praça, Antônio e eu, quando um senhor passou por lá. Disse um oi para Antônio e continuou andando. – É o Fio. Magro como sempre – comentou Antônio. Hoje está bem vestido, asseado, trabalho fixo. Antes, só bebia. Um dia, quase matou muita gente de susto dentro do cemitério.
Liu, amigo do Fio, vivia da pesca. Fazia sol, chuva, ventania, Liu saía no seu barco. A morte, era o que mais temia. Temia e não temia. Parecia. Demais, ele comia. Pinga e cerveja, todo dia bebia. O Fio? Nem pescava. Bebia.
No barco, sentado, Liu lançava rede, anzóis com isca e comia, que comia. Antes, dois amigos com ele iam. Sucede que o Liu deu para inflar. Ficou cada vez mais largo. A barriga pendia. Os pés, só em chinelos cabiam.  Vivia na paz, tratava a todos com cortesia, com o corpo pouco mexia. Dentro do barco, Liu nada temia. É seguro, motor novo, dos bons. Dizia. Acaba que os amigos outro barco assumiram. Todo dia, então, os dois barcos, para a pesca juntos saíam.
Num domingo, quando o sol fazia vésperas de se pôr, os dois amigos faziam o giro do barco para o retorno. De súbito, não mais viram o barco do Liu. Sumira. Liu, Liu, Liu. Gritavam, repetiam. Seus gritos atraíram pessoas que rogaram os bombeiros, que logo vieram. A noite caía. Nada a fazer naquele vir do escuro, disseram. Só no clarear do novo dia. Um amontoado de gente guardou a noite à beira do rio. Liu, Liu! E foram três dias e três noites de angústia, de agonia. Liu! Até que submergiu um corpo desfigurado, enorme, espantoso.
Como sepultar um corpo tão intumescido? O povo presumia: o portão do cemitério, tão estreito. Passaria? Urgia cavar uma cova especial, fora do comum. Um mundaréu de gente cumpriu o cortejo fúnebre. Passado o caixão pela estreiteza da entrada, a querer entrar de uma vez, o povo se espremia. Não supunham era que, em breve, sairiam dali na correria. Chegaram até próximo da cova. Despejar o caixão, não podiam. Um zunzum de ideias se ouvia. Como? Que peso! Força bruta para tirar o caixão do carro funerário exigia. Nisso, boomp! O caixão despencara ao chão. E despertou quem dormia.
De dentro da cova ao lado, um vulto surgiu. Descabelado, barba desgrenhada, imundo, uma garrafa na mão. Socorro! Poucos sobraram para o sepultamento do Liu. Por sorte, o muro do cemitério era baixo. Afinal, os que lá habitam não querem sair. Eu estava lá e vi tudo – disse Antônio. – O fantasma? Era o Fio, logo o reconheci. Não corri. Sei do Fio há anos −  completou Antônio – Hoje se cuida.  Anda arrumado. Trabalhador. Sempre magro.
O que houve com o barco do Liu e como baixaram o caixão dele na cova, Antônio não soube contar.

EM - VERSO & PROSA - COLECTÃNEA - IN-FINITA

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