domingo, 15 de agosto de 2021

As Duas - ANA CRISTINA HENRIQUE SILVA

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As duas olhavam o barco na linha do horizonte. Ele atravessa vagaroso as ondas em direção ao cais. A pequena segura pela mão materna. Enquanto a filha se distraia vendo o barco crescer à sua frente, a mãe tinha os olhos atentos.
Elas esperavam. Pés fincados no píer. Dali caminhariam de volta para casa. Antes, porém, parada obrigatória no carrinho do algodão doce. A criança se deliciaria com a nuvem colorida, esquecida da espera. A mãe por sua vez seria só lembranças.
O ritual se repetia todas as tardes de domingo. As duas caminhando até o cais. Na mãe, o desejo da chegada. Na filha, a alegria por dividir aqueles momentos ao lado dela.
Bom sentir-se segura por aquelas mãos. O silêncio compartilhado, o cheiro do mar e o vento brincando de bagunçar os cabelos.
Quando o barco aportava, o olhar da mãe buscava aflito o rosto daquele que um dia lhe jurara amor. A pequena olhava por olhar, há muito esquecera aquele rosto. Buscava pela mente algum registro: olhos, boca, voz... Nada. Vez ou outra a mente lhe presenteava com flashes: Uma imagem de uma mão máscula segurando a sua, o som de um sorriso alto, um cheiro, um sentimento doce. Os flashes vinham e iam tão rápido que ela não conseguia deter. E por mais que se esforçasse, o rosto do homem não mais existia para ela. Para não magoar a mãe, cumpria o ritual fingindo procurá-lo entre os que desembarcavam.
Somente quando o último passageiro saia do barco, a mãe suspirava, apertava com mais força a mão da menina. Depois, aguardava a partida do barco, levando uns poucos passageiros. E enquanto o barco desaparecia no horizonte, a mãe fazia sua prece silenciosa. A pequena só pensava no retorno para casa, a boca já preparada para saborear o pedaço do céu prometido no caminho de volta.
Na cabeça da pequena a felicidade era simples: o vento brincalhão, a guloseima doce e a mão frágil da mãe segurando a sua.
Somente as duas. E para a menina nada mais lhe faltava.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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