sábado, 6 de dezembro de 2025

No fundo do baú 40 - Emanuel Lomelino

Quantos degraus devem ser escalados para se atingir o patamar superior?

Quantos obstáculos devem ser ultrapassados para se conquistar a meta?

Quantos tombos devem ser dados para se levantar mais forte?

Quantas traições devem ser sentidas para se provar a lealdade?

Quantas feridas devem ser abertas para se chegar ao limite da dor?

Quantas perguntas devem ser feitas para se alcançar a resposta definitiva?

Quantas derrotas devem ser sofridas para se lograr a vitória final?

Quantas batalhas devem ser travadas para se vencer uma guerra?

Com quantos paus de faz uma canoa?

A resposta a todas estas perguntas é só uma: as que forem necessárias!

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

No fundo do baú 39 - Emanuel Lomelino

A vós, escritores consagrados pelos pensamentos imortais que nos legaram, expresso o meu lamento pelo desleixo daqueles que hoje descredibilizam o raciocínio.

A vós, desafortunados autores com letra maiúscula, declaro o meu desconforto pelo narcisismo daqueles que agora tentam dourar os seus nomes com a fama imediatista, apesar de não passarem de escrivães desalfabetizados e sem noção.

A vós, excelsos literatos que vivestes somente em miséria, manifesto o meu desencanto pelo pedantismo daqueles que vos parafraseiam erradamente para justificar os seus equívocos.

A vós, humildes redatores de sabedoria ancestral, exponho a minha incredulidade pelo enciclopédico desaforo daqueles que nada mais escrevem do que ondas de incoerência e marés de pensamento algum.

EMANUEL LOMELINO

Outono - Adriana Mayrinck

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

As folhas secas douradas dançavam como memórias esquecidas pelas calçadas de paralelepípedos da Grand-Place, enquanto Mariana caminhava em silêncio, envolta em um sobretudo bege e um cachecol cor de vinho. O vento sussurrava segredos entre as ruas antigas, escondendo o sol atrás de um véu espesso de nuvens cinzentas. Havia algo de melancólico e sagrado naquele fim de tarde.

Ela parou diante de uma pequena vitrine de chocolates artesanais, no centro histórico de Bruxelas. Sorriu discretamente ao ver o reflexo do próprio rosto no vidro e a lembrança da mensagem recebida que a inquietava.

"Saudade não cabe aqui dentro. Diz que ainda pensa em mim?"

Mariana respirou fundo, fechou os olhos por um instante e lembrou do calor do Brasil. Mais especificamente, do calor que não vinha do sol, mas do abraço de Marcos.

Havia mais de um ano desde a última vez que o vira.

EM - IDÍLIO EM FRAGMENTOS - ADRIANA MAYRINCK - IN-FINITA

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

No fundo do baú 38 - Emanuel Lomelino

Não quero louvores porque os epítetos, que outrora significavam admiração e reverência, perderam o fulgor e tornaram-se adjectivos vulgares expelidos com interesses ocultos.

Não quero aplausos porque as salvas, que outrora significavam encanto e respeito, perderam o brilho e tornaram-se estampidos comuns musicados com intensões obscuras.

Não quero premiações porque as medalhas, que outrora significavam reconhecimento e cortesia, perderam o valor e tornaram-se insígnias outorgadas com conotações escarnecidas.

Prefiro as miradas silenciosas porque através dos olhares consigo ver a diferença entre as vénias sinceras e os galardões aparentes.

Prefiro os sinais discretos porque através dos gestos consigo ver a diferença entre as anuências puras e os falsos elogios.

EMANUEL LOMELINO

O paraíso são as memórias (excerto 1) - Tita Tavares

 

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Pensei como seria bom poder fazer tudo aquilo de que mais gostava e que, ao longo da vida, vinha sendo sucessivamente adiado. Havia a hipótese da reforma antecipada e, a verificar-se a curto prazo, proporcionar-me-ia a realização de tantos projectos arrecadados na gaveta clamando por liberdade. Ir ao ginásio, conviver mais, dedicar alguma atenção à cozinha, assistir a espectáculos, viajar, eram coisas que me entusiasmavam.

EM - O PARAÍSO SÃO AS MEMÓRIAS - TITA TAVARES - IN-FINITA

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

No fundo do baú 37 - Emanuel Lomelino

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

EMANUEL LOMELINO

Do Brasil à Suíça (excerto 1) - Samaritana Pasquier

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Dessa viagem, eu me lembro de dois jumentos que nos levavam pela estrada afora, numa espécie de um grande cofo de palha. Dois irmãos já haviam partido de casa, e minhas três irmãs mais velhas estavam repartidas em casa de famílias. Essa prática ainda é muito frequente no meio desfavorecido, onde as meninas acabam servindo como uma forma de “empregada doméstica”. Em contrapartida, elas têm um telhado, comida, e, com um pouco de sorte, podem até estudar à noite.

EM - DO BRASIL À SUÍÇA - SAMARITANA PASQUIER - IN-FINITA

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

No fundo do baú 36 - Emanuel Lomelino

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num ciclo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

No fundo do baú 35 - Emanuel Lomelino

Hoje, a palavra escrita é a representação gráfica de alguns gritos presos na garganta; de alguns impropérios que não podem ser proferidos porque ainda há crianças acordadas; de algumas imprecações lamechas que não combinam com a linguística socialmente aceite.

Hoje, a palavra escrita é uma fuga silenciosa aos fantasmas que teimam em assombrar os ingénuos; aos enfadonhos oradores que não sabem a diferença entre os sinónimos poéticos de festa e plenário; aos inúmeros arrolhadores das plataformas digitais.

Hoje, a palavra escrita é a excessiva glorificação do silêncio; é a exaltação dos pensamentos mais mundanos e vulgares; é o elogio à criação narcisista – dispensável como a maionese numa salada de frutas.

Hoje, a palavra escrita não é um exercício catártico; uma purificação de alma e espírito; um exorcismo de angústias, desilusões, desesperos.

Amanhã, a palavra escrita simbolizará outras coisas – ainda bem – porque também os dias são todos diferentes e merecem ser descritos com as palavras que melhor se adequam à sua singularidade.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 30 de novembro de 2025

No fundo do baú 34 - Emanuel Lomelino

Nesta loucura de mim, reflexo das piscadelas de olho dos meus (apurados?) sentidos, cravo todos os verbos auxiliares de memória e construo uma história sem futuro, mas intemporal.

Como criador que sou (e me sinto?) abro o kamasutra de possibilidades ilimitadas do estro (se o tenho!) e desenho a inconveniente postura de um adjectivo concreto, para expurgar o iodo das sentenças enfermas e, assim, eliminar a linha condutora dos raciocínios exactos que me invadem.

Enquanto autor de incoerências e paradoxos redundantes, mergulho na liquidez de um pensamento firme e dou-lhe características plásticas, como quem mastiga a dor de uma revelação insonsa - de cuja falta de encanto pode germinar a frase mais contundente e acintosa.

Há propósito nos casamentos que imponho às palavras porque de nada servem as solteiras, prenhes de solidão gramatical e mais susceptíveis ao embuste e ao narcisismo.

Acredito na desformatação das fórmulas e no aniquilamento do óbvio (advérbios e derivações!) em detrimento – que não substituição – dos recursos assessórios, que não os simples e básicos, porque essenciais e necessários.

Creio na encriptação metafórica e na irónica exploração dos verbos regulares, como quem personifica uma multitude de gestos comprometedores.

Por isso, todos os meus textos podem ser explicados numa única e definitiva frase, quando não por apenas uma singela palavra.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 24) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

É reconfortante. Num desses dias, na ilha da Fuseta, quando já me deslocava para apanhar o barco de regresso, vi uma nuvem em forma de castelo, linda, de um branco resplandecente. Enquanto peguei no telemóvel, que estava na mochila, para tirar uma foto, o castelo já estava a desmoronar.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

sábado, 29 de novembro de 2025

Contos que nada contam 50 (Natureza absurda) - Emanuel Lomelino

Natureza absurda

Deambulando pelos trilhos da irrealidade, onde os céus alaranjados são rasgados pelas asas de criaturas fantásticas, mas nada aladas, as pedras sussurram peregrinações e as flores espirram alergias a cada gota de orvalho.

Os caminhos são percorridos em marcha lenta, quando não em ré, tal como as águas dos rios que fogem das tropelias dos oceanos grávidos e se infiltram nas margens salgadas pelo suor de sargaços em crise de identidade.

As árvores dos pomares têm os ramos entrelaçados e os abelhões de barro esculpem castanhas piladas no coração das trepadeiras para que as formigas de barriga vazia encham o bandulho antes que a orquestra de cigarras, grilos e pirilampos inicie mais uma demonstração psicadélica de artes conjuntas sem fins lucrativos.

Assistindo a toda esta cornucópia de absurdos, como uma criança a olhar um caleidoscópio, está um homem, armado até aos dentes, que se perdeu quando tentava encontrar uma espingardaria para se abastecer de munições a tempo do início da próxima guerra.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

No fundo do baú 33 - Emanuel Lomelino

Ao contrário de todos os outros sentimentos, acho que o medo ainda me espera no inesperado.

Não tenho medo de répteis, roedores ou gosmas, apenas asco e repugnância. Não tenho medo de agulhas, ou outros instrumentos pontiagudos.

Não tenho medo da solidão porque a procuro. Não tenho medo do vazio porque me preencho. Não tenho medo do escuro porque me atrai. Não tenho medo de gritos porque os ignoro. Não tenho medo de falinhas mansas porque desconfio. Não tenho medo de traições porque as sinto. Não tenho medo da desilusão porque prevejo. Não tenho medo do futuro nem da morte porque os desconheço.

Não tenho medo de monstros, bestas, feitiços, crenças, seitas ou outras criações fantasiosas da humanidade porque também as sei criar.

Tenho vertigens, mas nunca me recuso subir ao penhasco mais alto e íngreme porque sou combativo mesmo sentindo angústia e desconforto.

Dizem que o medo dá arrepios, também a febre. Dizem que o medo faz tremer, também o frio. Dizem que o medo faz suar, também o ginásio. Dizem que o medo deixa a garganta seca, também a sede. Dizem que o medo dá nós no estômago, também a fome. Dizem que o medo gera apreensão, também a pobreza. Dizem que o medo causa ansiedade, também as drogas. Dizem que o medo acorda os sentidos, também o sexo. Dizem que o medo origina desconfiança, também a política. Dizem que o medo provoca lágrimas, também a cebola. Dizem que o medo assusta, também eu.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

No fundo do baú 32 - Emanuel Lomelino

O útero foi fecundado, num ato de amor casto e inocente, com a esperança de ser a génese de uma nova realidade, plena, lúcida, feliz.

Mas os conceitos embrionários não têm correspondência nas atitudes progenitoras.  Todas as regras criadas são apenas para enfeitar. Os princípios morais não são para seguir. Os novos hábitos e comportamentos são meras figuras de retórica. As imposições jamais se cumprem. O respeito exigido não se dá. E a cegueira do obstetra de serviço impede que se diagnostique uma gravidez de risco.

Quando o parto acontece, todos aplaudem e celebram o rebento. Ninguém duvida da paternidade, mas também não reconhecem os traços da ascendência. Instala-se um silêncio inquisitivo e uma ânsia contempladora, mas há felicidade nos rostos.

A inocência infantojuvenil depressa se transforma em arrogância e prepotência, de forma tão natural quanto previsível. Dizem que é sinal dos novos tempos e, com o contágio da cegueira obstetra, vai-se alimentando as bizarrices do pequeno adulto.

Agora multiplique-se por toda uma geração e, pasme-se quem quiser, temos o sucessor do homo sapiens. Um inútil, sem interesse no passado, dependente e sem rumo, criado na ilusão dos novos tempos, em que todos são vencedores e os reis são aqueles com cabelo cor de açafrão ou colorau, maquilhados com filtros virtuais. donos de canais de TikTok e que questionam a utilidade de se ter inventado a gravidade.

Não escrevo mais nada porque ainda me cancelam.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

No fundo do baú 31 - Emanuel Lomelino

Sabes Fernando, tal como tu, eu também tenho uma divergência com o mundo porque o vejo com cores diferentes daquelas que ele diz estar pintado.

Até aceito que digas – Alberto – que o problema está nos meus olhos tristes e cansados, e que os tons pastel que observo são do desapontamento que a vida ostenta como medalhas.

Até admito que tu – Álvaro – por seres mais sábio e avisado nas multiplicidades terrenas, vejas nos meus olhos alguma cegueira febril e impostora, e o mundo continue a ser uma criança inocente.

Até reconheço que tu – Ricardo –, por seres poeta da prudência, tens legitimidade para me acusares de heresia e apontares os pecados que a minha visão perpetua em desfavor da terra que pisamos.

Até estimo que tu – Bernardo – tenhas uma opinião para cada entendimento que pulula a minha mente, e matéria suficiente para escreveres uma tese sobre este desassossego.

Não sei qual dos dois – eu ou o mundo – tem a razão do seu lado, no entanto, os esparsos momentos de observação lerda levam-me a acreditar na impostura luminosa do mundo.

Sabes Fernando, nem tudo o que luz é ouro e o brilho dele – o mundo – é terceirizado e engana.

EMANUEL LOMELINO

Portugal: Transformação (excerto) - Rafaela Graf

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Trabalhamos com muito carinho e dedicação mas, apesar de todo o nosso esforço, percebemos que a empresa não estava crescendo na velocidade necessária e tivemos que tomar a difícil decisão de encerrar a operação. Naquele momento, senti todo o peso do fracasso sobre mim.

EM - MULHERES QUE CRUZARAM OCEANOS - COLETÂNEA - IN-FINITA

terça-feira, 25 de novembro de 2025

No fundo do baú 30 - Emanuel Lomelino

Esqueçam tudo o que vos ensinaram sobre a diferença entre os humanos e os outros animais. Por muitas características diferenciadoras que encontrem, há uma que sobressai, mas ninguém a menciona porque nos é desfavorável.

Como tenho uma página inteira para preencher, vou dar algumas pistas antes da grande “revelação”.

Algum de vocês imagina uma leoa decidir, mesmo que apenas por um dia, não caçar?

Algum de vocês concebe a ideia de um salmão recusar nadar contra corrente até ao local de origem?

Algum de vocês consegue vislumbrar uma ave de rapina ignorar uma presa avistada a um quilómetro de distância?

Algum de vocês julga possível uma abelha postergar a recolha de pólen?

Algum de vocês acha viável o cancelamento da migração das orcas, dos gnus, ou dos pelicanos?

Eu podia continuar a fazer questionamentos semelhantes, mas a página está a ficar sem espaço e é chegada a hora de revelar a maior diferença entre humanos e outros animais.

A humanidade é a única espécie que dá uso à preguiça.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 23) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Enquanto as emoções negativas, tais como medo, ansiedade, insegurança (emoções associadas ao stress) provocam um ritmo cardíaco desordenado, as emoções positivas, como apreço, carinho, gratidão, compaixão produzem ritmos cardíacos, ordenados, harmoniosos, suaves.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

No fundo do baú 29 - Emanuel Lomelino

Sou tão paradoxo como o Fernando. Só não dei nomes às minhas esquizofrenias, como ele, genialmente, fez, porque decidi assumir os meus delírios de personalidade e concentrá-los num só indivíduo. Assim, só se enferma e destrói um corpo.

Tal como ele – o Fernando – também escrevi sobre tudo e em vários registos, no entanto, heteronimizar os meus devaneios seria demasiado penoso e confuso, pela exigência de criar – além da criação que partilhamos – outros que, sendo eu, não passariam de pedaços minúsculos, pequenos fragmentos residuais, logo, sinopses perfeitas de redundância, e eu prefiro ser personagem ortónimo, por isso único, independente e lacónico.

Neste quesito, sou como o outro Pessoa – o Joaquim – que, quando questionado sobre as razões de, em determinado momento do seu excelso percurso, escrever num estilo e não noutros, respondeu que a sua escrita já tinha passado por todos os registos possíveis e não tinha de provar mais nada.

Adoptei este conceito – do Joaquim - e uso-o para justificar a descontinuidade de alguns temas na minha paleta criativa. Já provei que sei escrever sobre eles, ponto final.

E dou graças aos céus por não ter um heterónimo associado a essas temáticas arquivadas, no tempo que já foi, porque isso implicaria ter de inventar uma morte fictícia para um pleonasmo ambulante irreal.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 23 de novembro de 2025

No fundo do baú 28 - Emanuel Lomelino

Em certos dias, mais incertos do que a dúvida existencial, derrama-se sobre mim um desejo de não ter necessidade de extravasar, nas palavras que de mim se manifestam, a síntese de tudo o que a minha mente, insaciavelmente, cria e inventa.

No cansaço dos dias modorrentos, e de outros mais fugidios, verte-se sobre mim uma vontade de não precisar juntar verbos aos complementos; sujeitos aos predicados; advérbios às conjunções, que em mim se formam, como hera incómoda e selvagem, e não consigo conter nas margens do anonimato.

Na fadiga das horas morrentes, e outras mais cheias, espalha-se sobre mim uma ânsia de dizimar este imperativo clamor de expelir as histórias que despontam a cada olhar, a cada som, a cada angústia, a cada pensamento, como quem sangra as debilidades do que não controla.

Nesses dias de lassidão e pouca pachorra, inundo-me de repulsa pelo assombro e inconveniência das palavras que germinam em mim e não sei como deixar aprisionadas nas prateleiras do descaso, como quem se renega três vezes diante da morte anunciada.

Na inabilidade de mim, em frustrar a criação, aborta-se sobre os meus ombros a força e querer, de abdicar deste estro que não pedi e alguns juram que tenho.

E tudo isto porque, por mais absurdo que possa soar e parecer, mesmo sendo eu o criador, o que crio não me define e eu não me escrevo.

EMANUEL LOMELINO