segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Lomelinices 39 - Emanuel Lomelino

Imagem sojogo

Lomelinices 

39

Por vezes a ansiedade supera a imperativa urgência de resposta imediata e as intensões ficam por cumprir. A mente como que bloqueia e as acções ficam presas na vontade, como se uma força hipnótica tomasse as rédeas da vida.

O primeiro impulso é abraçar a inércia e deixar-se envolver no vazio de ficar sem chão para caminhar. A energia esvai-se como um sopro rápido e o vigor evapora com o calor da perplexidade de ficar de calças na mão.

O corpo quer recolher-se sobre si mesmo e a razão finge não existir por sentir-se culpada e não querer agravar a desfaçatez cruel de um instante de infâmia e desonra.

Com a desorientação encavalitada nos ombros, as costas vergam sob o peso da vergonhosa incapacidade de reverter o destino traçado e, tal como no jogo da glória, mais uma vez, regressa-se à casa de partida – lugar, há muito, indesejado.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 27 de outubro de 2024

Epístolas sem retorno 18 - Emanuel Lomelino

José Saramago
Imagem pinterest

Nobel José,

Apesar da boa memória para datas, não consigo recordar quando li, pela primeira vez, um poema seu. Apenas sei que foi num evento, há mais de uma década, na Casa dos Bicos, e nesse dia decidi que haveria de ler mais poesia de sua lavra.

A verdade é que o tempo passou, no seu ritmo sem perdão, muita água passou por baixo das pontes que atravessei, outras leituras surgiram, não por prioridade, mas sim oportunidade, e ganharam espaço na minha biblioteca, inclusive Memorial do convento, Ensaio sobre a cegueira e A caverna (mencionados pela ordem do meu gosto pessoal, que não por data de aquisição).

No ecleticismo que me define enquanto leitor, e referindo-me apenas à poesia lusa, devorei Pessoa, Camões, Bocage, O’Neill, Torga, Natália, Sophia, Florbela, Eugénio, Negreiros, Junqueiro, Ruy Belo, Vítor Cintra, (mencionados aleatoriamente), e tantos outros, que seria exaustivo enumerá-los todos, sem nunca esquecer o propósito de, a eles, juntar a poesia pré-Lanzarote.

Serve a longa introdução para informá-lo que hoje (primeiro de Outubro de 2024), junto com as antologias de Sebastião da Gama e Pedro Homem de Mello, chegou-me às mãos a sua Poesia Completa.

Tenho a certeza de que a longa espera será recompensada com boa e instrutora leitura.

Com satisfação

Emanuel Lomelino

sábado, 26 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 16 - Emanuel Lomelino

13-08-2023

Farto-me de rir com a preocupação da moda centrada na inteligência artificial. Fala-se do tema e toda a gente fica histérica com a possibilidade de as máquinas substituírem os humanos, e choram, e gritam, e esperneiam, e…

E ninguém atenta que nada disto é novo, tudo começou com a chamada revolução industrial e tem sido a humanidade, geração após geração, a encontrar formas de manter as estruturas sociais convenientes ao seu funcionamento.

E o percurso da humanidade fez-nos chegar a este momento temporal em que aparece a geração Z, que roça a inutilidade por, apesar de ser mais instruída, não ser capaz de entender que a vida é bem mais do que lutar por ideais e combater o sistema.

Porventura, não é esta geração que contesta a “escravidão” horária das profissões modernas? Não são estes génios das causas que querem impor um regime alimentício diferente para que deixemos de ser aquilo que somos por natureza: omnívoros?

Ora, para que tudo isso seja possível, é preciso desprogramar a humanidade e arranjar quem nos substitua nas actividades que só existem porque somos como somos. O mesmo é dizer: venha daí a inteligência artificial.

No entanto, rejubilem, o processo será longo porque ainda não foi encontrada solução para que o nosso sistema digestivo e dentição ganhem a robustez herbívora necessária.

E queiram os deuses que, entretanto, não haja um cataclismo digital. Se tal acontecer estamos tramados porque esta geração vai ter um colapso nervoso e passará a chamar-se geração zombie.

EMANUEL LOMELINO

Sobre ser seu próprio lar (excerto) - Sandra Santos

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Sempre fiquei bem sozinha, porém o temor pela minha saúde e pela saúde das pessoas que amava, somado à incerteza em relação ao futuro, tornaram estas horas amargas e assustadoras. No começo, a incerteza de tudo gerava medo, pânico até. Passado um tempo, a incapacidade de prever o futuro se tornou uma certeza, e ela já não ocupava tanto os meus pensamentos. Até porque, o fato de ter tempo livre me fez olhar para alguém para quem eu não prestava atenção há muito tempo: eu mesma.
Comecei a escutar pensamentos e sentimentos há tempos abafados e eles trouxeram à tona coisas que eu, por anos, procurei soterrar:
...

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Lomelinices 38 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

38

Pobres daqueles que, ao verem a poeira levantada por uma rajada de vento fortuita, creem estar perante uma tempestade de areia.

Não há nada mais nefasto do que viver na agonia de todos os males, desconsiderar que os dias são maiores do que as trevas e as miragens podem desvirtuar os sentidos.

Pobres daqueles que, na preguiça do intelecto, acreditam em todas as palavras proféticas dos arautos da desgraça alheia e, como marionetas sem fios, deixam-se amarrar aos vis conceitos de falsos mensageiros.

Não existe nada mais nocivo do que acreditar em castigos e pragas divinas, desvalorizar a intuição e deixar o próprio destino nas mãos de quem só está presente nos instantes de conflito interno.

Pobres daqueles que evitam encarar a vida, olhos nos olhos, por receio de cair e macerar o corpo vezes sem conta.

Não há nada mais danoso do que viver com medo das sombras e em permanente cobardia.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Contos que nada contam 30 (A mudança) - Emanuel Lomelino

A mudança

Teotónio fechou a porta pela última vez, inspirou profundamente, pousou a caixa que tinha nas mãos e sentou-se no chão. Olhou em redor e pensou com os seus botões, mais para tentar convencer-se, que aquela seria a sua residência definitiva. Estava esgotado. Não por ter passado duas horas a carregar caixas até ao segundo piso, mas por ser a terceira vez, em três anos, que estava a mudar de casa.

Quase automaticamente, os seus pensamentos revisitaram os últimos trinta e seis meses da sua vida sem encontrar motivos que justificassem tão longo período de turbulência e instabilidade.

Tinham sido três anos de encontros e desencontros, altos e baixos, imprevistos repentinos, surpresas desagradáveis, enfim, uma miríade de episódios que se entrelaçaram como novelos emaranhados e que o enredaram de tal forma que o desespero quase levou a melhor.

Mas tudo passa e, pouco a pouco, com mais ou menos dificuldades, e muita resiliência, as pontas deixaram de estar soltas e voltou a sentir-se dono das rédeas da sua vida.

Apesar do cansaço que lhe corroía o âmago, Teotónio levantou-se e, decidido a ocupar a mente com positividade, começou a tarefa de desempacotar os seus bens mais preciosos para colocá-los nos respectivos novos lugares. E assim esteve entretido mais um par de horas, indiferente ao que o destino ainda lhe tinha reservado…

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 5) - Jorge Chichorro Rodrigues

 

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Mas Antão tomava-se por vezes incómodo a bordo, desviava os homens das suas tarefas diárias, das suas responsabilidades mundanas, fazia-os sonhar mais do que o conveniente, e foi assim necessário, quando faltavam poucos dias para se avistar terra, fazê-lo acatar a lei da abstinência verbal. A ordem, dada na forma de suave sugestão, veio do próprio Pedro Álvares Cabral que, embora estimasse muito e até admirasse as veleidades oratórias do «filósofo», considerava que elas tendiam para criar um clima de dispersão a bordo.

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Lomelinices 37 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

37

Pior do que perder a visão é não ter visão de nada, ficar na cegueira da dúvida sem decidir entre os caminhos que se ramificam diante dos olhos.

Pior do que perder a lucidez é abdicar da clareza de ideias e querer viver nas duas margens do mesmo rio, sem encontrar forma de o atravessar.

Pior do que perder a audição é não ouvir a voz da razão e limitar-se a escutar os torpes cantos de sereia que são enredos e tramas que somente conduzem ao engano.

Pior do que perder a consciência é não ter consciência dos actos e, principalmente, de tudo o que pode advir de cada decisão inconsciente.

Pior do que perder os sentidos é perder o sentido das coisas, ficar no limbo do pasmo por não saber identificar o momento certo de colher o que se plantou.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Ao pé-da-letra 6 - Emanuel Lomelino

Ao pé-da-letra 

6

Normalmente usamos o chavão “a vida é uma selva” para demonstrarmos indignação sobre um episódio qualquer. Mas, se aprofundarmos a ideia, chegamos à conclusão que podemos aplicá-lo a um dia completo. Vejamos:

De manhã cedo saímos para trabalhar e há sempre uma coruja ou um bufo, por trás de cortinas baloiçantes, a ver quem bateu a porta do prédio. Depois surge um babuíno a cravar um cigarro ou um morcego, que retorna à sua gruta, a perguntar as horas. Na fila do autocarro, há sempre papagaios a palrear alto coisas sem noção, e alguns ratos que tentam furar a fila. Durante a viagem, olhando pela janela, vemos imensos burros e camelos a conduzir e que, volta e meia, são ultrapassados por chitas cheias de pressa. No acesso ao metropolitano temos sempre algumas lesmas e preguiças a impedir passagem e há um ou dois hipopótamos com dificuldade em desviar o corpanzil para deixar passar quem quer entrar na carruagem. No interior da composição, já sentadas, vão bastantes pavoas emproadas, com os rostos untados de óleos, pastas, cremes e essências. Aqui e ali avistamos alguns suricatas a esticar o pescoço – ora para a esquerda, ora para a direita – como tentando detectar possíveis predadores. Há muitas hienas de gargalhadas estridentes, mas é só. Nesta arca de Noé sobre carris, também conseguimos ver um número considerável de pinguins vestidos com os seus fatos de gala. Chegados à estação pretendida, todos sobem as escadas como fossem gnus a trepar uma encosta íngreme depois de atravessarem o Nilo infestado de crocodilos.

Durante o dia cruzamo-nos com elefantes trombudos, gazelas esqueléticas e outros herbívoros a pastar nas esplanadas, jumentos de portaria, guaxinins a explorar papeleiras, melgas evangélicas, doninhas fedorentas e, em alguns pontos da cidade, um sem número de espécies exóticas, borboletas, mariposas, traças, que se misturam com formiguinhas autóctones, lebres apressadas e alcateias de lobos desocupados.

Isto para não falar dos escorpiões e lacraus venenosos, serpentes que querem ver alguém morder a maça, anacondas que abraçam em asfixia, aves de rapina a perscrutar as calçadas em busca de presas, e necrófagos a sobrevoar algumas carcaças, que já pereceram, mas não foram avisadas.

Digam lá se a vida diária não é uma selva!

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Lomelinices 36 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

36

Quando o tema de conversa é a Vida, existem quase tantas definições aplicáveis como gente no mundo. Para uns é isto, para outros é aquilo, para alguns é aqueloutro, para os demais é assim, para poucos é assado, para os restantes talvez não seja nada disso ou tudo junto.

Um dos aspectos comuns a todas as opiniões, mas sempre esquecido, ou melhor dito, nunca lembrado, é o facto de a Vida também ser uma unidade de tempo variável e os relógios que a medem sermos todos nós, com a particularidade de raramente estarmos no mesmo estágio de medição, porquanto cada um tem a Vida à sua medida.

A maior diferença da Vida para as outras unidades de medida do tempo é a sua perecidade. Enquanto os anos, os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e os segundos serão eternos e existirão para lá da existência de cada um, a Vida, na especificidade aqui explicada, termina com a morte daquele a quem serviu.

Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se aferir que cada Vida é tão única como as impressões digitais.

Assim sendo, à pergunta:

- O que é a Vida?

Pode-se responder:

- A Vida é… pessoal e intransmissível.

EMANUEL LOMELINO

Rezo vivo (excerto) - Mara Kalantia

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Durante a minha pré-adolescência e adolescência, aferrando-me àquela força masculina, que mesmo fisicamente ausente ainda era tão viva para mim, despertei a Estrangeira-Guerreira-Ferida, que encontrou seu desafogo no meu eu artista e buscador.
Na cruzada da minha vida adulta, ainda vejo as marcas da minha infância. Por vezes as revisito, mas por mais difíceis que sejam de se compreender, agora elas me envolvem de maneira diferente, sinto que são as molas propulsoras que ressaltam a mulher-estrangeira que me torno.

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domingo, 20 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 15 - Emanuel Lomelino

26-09-2024

Apesar de não ser saudosista, às vezes vejo-me confrontado com situações que fazem com que o sangue ferva nas veias e nasce-me no âmago uma espécie de conservadorismo (que não é coisa geracional, mas sim de bom-senso, estilo e honradez).

Poderia socorrer-me da famosa frase proverbial “eu sou do tempo…” mas, porque o agora também é o meu tempo, terei de escrever “longe vão os tempos” em que, até os calhordas, demonstravam coerência nos discursos.

Longe vão os tempos em que as pessoas pintavam-se com as suas próprias cores e jamais abdicavam delas nem se camuflavam ao sabor das correntes ou de interesses ocultos.

Hoje, o engodo é o pão nosso de cada dia, e ninguém se incomoda com o espírito do “vale tudo”. Bem pelo contrário, até aplaudem.

Hoje há uma cultura farsante, que passa despercebida aos menos atentos e desavisados, como o caso do fulano B – que conheço mas omito o nome para não ficar gravado na história – figura sempre presente na primeira fila das manifestações anticapitalismo, sendo proprietário de vários imóveis, que arrenda a preços inflacionados, e tendo uma frota de, pelo menos, quatro veículos topo de gama, nos quais se faz transportar até às imediações das arruadas.

E, mais uma vez, lá o vi, nos ecrãs da televisão, com o seu lenço palestino, a gritar pelos direitos à habitação e contra o perverso capitalismo. Desta vez não foi entrevistado, mas só a imagem e a ideia da existência de mais dissimulados como ele, é suficiente para fazer-me ferver o sangue.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 19 de outubro de 2024

Contos que nada contam 29 (O faroleiro) - Emanuel Lomelino

O faroleiro

Franclim sentiu ter encontrado a profissão ideal para as características mais óbvias do seu feitio.

Sempre gostou de ficar num canto com os seus pensamentos, longe do conflitos e arrelias permanentes de um escritório. Sempre desejou entrelaçar responsabilidades e lazer sem horas marcadas para coisa alguma. Enfim, organizar o tempo a seu bel-prazer, dividi-lo entre obrigações e o que lhe desse na gana, e envelhecer ao ritmo da vida, com paz e tranquilidade.

Aquele trabalho, de faroleiro, encaixava como uma luva nas suas pretensões.

O que Franclim não sabia, e descobriu com o tempo, é que nem os espíritos livres, por mais independentes que sejam, são compatíveis com a agressividade do sal ou a corrosão das lágrimas.

Hoje, passados trinta anos a iluminar as noites dos navegadores, Franclim não reconhece a face que o espelho reflete. A pele ressequida pela salinidade das marés tem rugas, em forma de desfiladeiros, por onde correm, amiúde, as saudades da família, que só vê uma semana em cada três meses.

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 4) - Jorge Chichorro Rodrigues

 

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Toda a hierarquia de bordo se diluía ali, a fraternidade impunha-se como uma força da natureza, o mistério do universo descia sobre o navio que balouçava igual a um menino. Os embalos vinham da voz doce e ondulada do orador ou das leves vagas que embatiam no navio? Mal o sabiam os homens de bordo... Mas algo parecia insinuar-se nas suas mentes: o mar era o berço da vida, o princípio de tudo, e a voz pausada do companheiro de viagem confundia-se com a própria música das ondas, benignas e temas a virem beijar de leve a expedição que levava no velame a cruz de Cristo.

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Lomelinices 35 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

35

Pesa-me mais o cansaço dos passos dados em vão do que os quilos de horas que se acumulam nas pernas. Nesses intermináveis momentos de fadiga, o corpo dorido implora pelo mergulho na calmaria do sentir e pede para ser anestesiado por uma qualquer chuva de verão fora de época.

Ofegante é o desejo de permanecer imóvel, sem obrigação de estender os braços aos céus em preces de mudança. Há um pedido mudo que se revela uma necessidade imperativa de ver o voo das pombas brancas, mas o mundo continua a girar inclemente.

O crepúsculo já não é de paz e serenidade porque paira no ar uma cãibra que ignora a urgência de sossego e vazio. As madrugadas são lençóis de lava e as noites prolongam as vigílias inoportunas. O sono é picotado por cada som dos megafones motorizados que fazem derrapagens tão imprudentes quanto estridentes.

Então vem a alvorada com marcas no rosto porque o sol que nasce não é novo, mas sim o pleonasmo do anterior – mais passos em vão e horas acumuladas nas pernas.

Assim passam os dias que enrugam a pele e gritam a monotonia cruel costurada nos caminhos. Uns chamam-lhe destino, outros creem ser fado. Isto é apenas o desassossego da vida e há mortes mais dramáticas.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Lomelinices 34 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

34

Nesta bruma cerrada escondem-se os limites das sombras que nos fogem ao olhar e os enganos vestem-se camuflados de farol.

Nesta neblina fechada escondem-se os finais de tarde que, nem os mais furtivos raios de sol conseguem iluminar.

Nesta névoa trancada escondem-se as margens vampirescas que se mascaram de anjos para levar-nos ao precipício.

Neste nevoeiro selado escondem-se as barreiras da ilusão com o simples e matreiro propósito de nos ocultar os embustes.

Nesta cortina de fumo espesso escondem-se as armadilhas sedentas de sangue, de quem, com esperança e boa-fé, se deixa guiar.

Os véus do engodo aproveitam-se da cegueira dos tolos e inocentes, como se o prejuízo dos desavisados fosse a única e suprema via para matar a fome da cobiça desmedida e cobarde.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 14 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

10-09-2024

Desconheço o modelo educativo utilizado na formação dos novos jornalistas, mas desconfio que, ao contrário do que era ensinado, em tempos que vão longe, os princípios base da profissão devem ter sido colocados de lado e informar sobre os factos deixou de ser a sua principal e imperativa função.

Este paradigma do jornalismo, que não é novo, faz com que os noticiários e as colunas de jornal nada mais sejam do que enxurradas de hiperbólica adjectivação sobre coisa nenhuma, avalanches de especulação barata, aniquilamento do bom-senso e apologia de imediatismo, que resulta na estupidificação maciça.

Longe vão os tempos em que ler jornais e assistir a um espaço noticioso televisivo ou radiofónico, para além do aspecto informativo, enriquecia-nos linguisticamente, através de espessas doses de textos com qualidade literária.

Infelizmente, nestes dias de selvático consumismo descartável e sedentarismo mental, somos encharcados por meros rascunhos lamacentos, cheios de estrangeirismos bacocos, fraca dicção e ausência completa de ética e valores deontológicos.

Não posso negar que a era digital trouxe coisas boas mas, para mal dos nossos pecados, o que mais se destaca é a preguiça intelectual, como fica provado pelo miserável jornalismo que nos inunda os sentidos.

EMANUEL LOMELINO

Cordão umbilical (excerto) - Julia Seraphim

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Tem épocas em que a minha curiosidade em relação àqueles que me geraram se aguça. Tanto que, há alguns anos, procurei uma radiestesista para saber mais a respeito. Descobri que tenho um irmão que igualmente foi entregue, pela mesma falta de condições dos nossos progenitores. Curioso é que todas as minhas dúvidas poderiam ser sanadas com uma boa conversa com a minha mãe adotiva. O problema é que simplesmente não conseguimos dialogar sobre temas profundos, minha mãe e eu temos uma relação de difícil proximidade.

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terça-feira, 15 de outubro de 2024

Lomelinices 33 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

33

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Lomelinices 32 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

32

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num círculo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir...

EMANUEL LOMELINO