sábado, 13 de dezembro de 2025

No fundo do baú 47 - Emanuel Lomelino

Farto-me de rir com a preocupação da moda centrada na inteligência artificial. Fala-se do tema e toda a gente fica histérica com a possibilidade de as máquinas substituírem os humanos, e choram, e gritam, e esperneiam, e…

E ninguém atenta que nada disto é novo, tudo começou com a chamada revolução industrial e tem sido a humanidade, geração após geração, a encontrar formas de manter as estruturas sociais convenientes ao seu funcionamento.

E o percurso da humanidade fez-nos chegar a este momento temporal em que aparece a geração Z, que roça a inutilidade por, apesar de ser mais instruída, não ser capaz de entender que a vida é bem mais do que lutar por ideais e combater o sistema.

Porventura, não é esta geração que contesta a “escravidão” horária das profissões modernas? Não são estes génios das causas que querem impor um regime alimentício diferente para que deixemos de ser aquilo que somos por natureza: omnívoros?

Ora, para que tudo isso seja possível, é preciso desprogramar a humanidade e arranjar quem nos substitua nas actividades que só existem porque somos como somos. O mesmo é dizer: venha daí a inteligência artificial.

No entanto, rejubilem, o processo será longo porque ainda não foi encontrada solução para que o nosso sistema digestivo e dentição ganhem a robustez herbívora necessária.

E queiram os deuses que, entretanto, não haja um cataclismo digital. Se tal acontecer estamos tramados porque esta geração vai ter um colapso nervoso e passará a chamar-se geração zombie.

EMANUEL LOMELINO

Do Brasil à Suíça (excerto 3) - Samaritana Pasquier

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Mas, em casa, as coisas não eram sempre um “mar de rosas”. Meus irmãos mais velhos, com uma média de dezessete anos de diferença, achavam que, por isso, tinham toda a autoridade sobre os mais jovens. Eu não aceitava aquela situação, e quanto mais resistia, mais as coisas se tornavam difíceis para mim. Foi assim que, tarde da noite, fui acordada juntamente com minha irmã mais nova, Verônica (temos somente dez meses de diferença). Tiraram-nos das nossas redes para irmos comprar querosene para as lamparinas da casa. Nos anos 70, a eletricidade na periferia ainda era um privilégio, mesmo numa capital. Eram mais de nove horas da noite e deveríamos encontrar um comércio aberto para comprar esse combustível.

EM - DO BRASIL À SUÍÇA - SAMARITANA PASQUIER - IN-FINITA

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

No fundo do baú 46 - Emanuel Lomelino

Carl Jung alertou para as características viciantes do silêncio e para as consequências que essa adição provoca naqueles que enferma. Concordo que o silêncio vicia e que há efeitos visíveis nos que usam o silêncio como uma forma de estar e entender a vida. No entanto, no desenvolvimento da ideia, tenho de manifestar opinião contrária à tese de Jung.

Para começo de conversa, a minha primeira discordância com o psiquiatra suíço está na catalogação deste estado como sendo uma doença. Talvez por não ser psiquiatra, creio ser abusivo classificar todo e qualquer comportamento, lateral aos convencionalismos, como doença. Chamem-lhe desvio, excentricidade, rebeldia, bizarria, mania, exotismo, capricho, ou qualquer outro substantivo, mas não doença.

Na explicação de Jung, os viciados em silêncio ficam tão deslumbrados com a sensação de paz que tendem a perder interesse na interação com os humanos. Neste ponto creio que a análise foi feita em contramão. Os amantes do silêncio não perdem interesse nas interações por sentirem paz, mas sim, sentem paz, quando estão em silêncio, por terem interagido em demasia. O silêncio acaba por transformar-se no único remédio eficaz para alcançar paz e reverter a toxidade das relações com os outros.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

No fundo do baú 45 - Emanuel Lomelino

Há uma tendência mística para qualificar todos os seres. Existem ligações aos elementos da natureza: água, terra, fogo, ar e o éter (clássicos); e aos atómicos: sólido, líquido, gasoso e plasma.

Se fizermos a ligação entre os elementos da natureza e os atómicos vamos encontrar correspondências lógicas: água/líquido, ar/gasoso, terra/sólido, fogo/plasma. E o éter?

Se pensarmos nas características do quinto elemento, os seres de éter são vazios, logo completos pela natureza do nada, do vácuo, de não-matéria.

Deste modo, e enquanto os cientistas continuam à procura de provas irrefutáveis que confirmem a existência do éter, talvez distinto dos conceitos divinos consagrados pelos filósofos, podemos concluir que os seres etéreos não existem ou, quanto muito, são confundidos na essência e, identificar alguém como ser de éter, é uma presunção descabida que roça a imbecilidade. E imbecis existem, tal como os buracos negros.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

No fundo do baú 44 - Emanuel Lomelino

O maior inimigo de quem escreve é o ócio; aquilo que alguns chamam como falta de inspiração, mas eu prefiro apelidar de preguiça criativa.

Aqueles que se dedicam, de alma e coração, à escrita, desenvolvem técnicas e hábitos que deixam a mente sempre pronta para desenvolver um texto.

Aqueles que consagram o acto de escrever, fazem uso de diversos exercícios que fortalecem a espontaneidade de ordenar palavras, com desenvoltura e em qualquer circunstância.

Aqueles que, de forma regular, dão vida e utilidade aos seus raciocínios, sabem que anotar os pensamentos ajuda a criar memória e fluência na criação.

Aqueles que doam o seu tempo às palavras, sabem que nem tudo o que se escreve tem valor para ser público, mas não ignoram a importância dos textos deficitários no desenvolvimento criativo.

Aqueles que souberam criar hábitos regulares de escrita, treinaram a mente, exercitaram géneros e conceitos, guardaram rascunhos e textos medíocres, nunca são acometidos pela preguiça criativa, bem pelo contrário, até escrevem sobre o “nada” da mesma forma fluída como fazem quando escrevem sobre “tudo”.

EMANUEL LOMELINO

Primavera - Adriana Mayrinck

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Marcos estava sentado à beira da praia no Arpoador. O sol primaveril mergulhava no oceano, tingindo o céu de laranja e rosa. A brisa trazia o cheiro de maresia e promessas não cumpridas. O mar cantava sua canção, enquanto uma roda de samba ao longe ecoava como batimentos do coração.

Ele segurava a câmara no colo, mas não fotografava. Olhava para o nada, esperando que o vento desenhasse o rosto dela entre as nuvens. Mariana. Seu nome soava como poesia soprada ao entardecer. Relutante, digitou uma mensagem. 

"Saudade não cabe aqui dentro. Diz que ainda pensa em mim?"

Parou por uns instantes. Respirou fundo. Apertou o botão. Enviar.

Marcos sabia que seu coração morava em Bruxelas, embora seus pés estivessem presos no Rio. E cada pôr do sol parecia sussurrar seu nome.

EM - IDÍLIO EM FRAGMENTOS - ADRIANA MAYRINCK - IN-FINITA

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

No fundo do baú 43 - Emanuel Lomelino

Quando o tema de conversa é a Vida, existem quase tantas definições aplicáveis como gente no mundo. Para uns é isto, para outros é aquilo, para alguns é aqueloutro, para os demais é assim, para poucos é assado, para os restantes talvez não seja nada disso ou tudo junto.

Um dos aspectos comuns a todas as opiniões, mas sempre esquecido, ou melhor dito, nunca lembrado, é o facto de a Vida também ser uma unidade de tempo variável e os relógios que a medem sermos todos nós, com a particularidade de raramente estarmos no mesmo estágio de medição, porquanto cada um tem a Vida à sua medida.

A maior diferença da Vida para as outras unidades de medida do tempo é a sua perecidade. Enquanto os anos, os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e os segundos serão eternos e existirão para lá da existência de cada um, a Vida, na especificidade aqui explicada, termina com a morte daquele a quem serviu.

Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se aferir que cada Vida é tão única como as impressões digitais.

Assim sendo, à pergunta:

- O que é a Vida?

Pode-se responder:

- A Vida é… pessoal e intransmissível.

EMANUEL LOMELINO

O paraíso são as memórias (excerto 2) - Tita Tavares

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Olhei-me novamente ao espelho. Nos malares, salientes, ressaltavam as olheiras fundas, e o olhar baço buscava nas linhas pálidas do tempo que me cingiam o semblante a frescura espargida por vales e serras, em ruelas imbricadas, calçadas e quelhas, marcadas pelas corrimaças e esfalfamentos do jogo das escondidas e da pela, do ringue e da macaca.

EM - O PARAÍSO SÃO AS MEMÓRIAS - TITA TAVARES - IN-FINITA

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

No fundo do baú 42 - Emanuel Lomelino

Nesta bruma cerrada escondem-se os limites das sombras que nos fogem ao olhar e os enganos vestem-se camuflados de farol.

Nesta neblina fechada escondem-se os finais de tarde que, nem os mais furtivos raios de sol conseguem iluminar.

Nesta névoa trancada escondem-se as margens vampirescas que se mascaram de anjos para levar-nos ao precipício.

Neste nevoeiro selado escondem-se as barreiras da ilusão com o simples e matreiro propósito de nos ocultar os embustes.

Nesta cortina de fumo espesso escondem-se as armadilhas sedentas de sangue, de quem, com esperança e boa-fé, se deixa guiar.

Os véus do engodo aproveitam-se da cegueira dos tolos e inocentes, como se o prejuízo dos desavisados fosse a única e suprema via para matar a fome da cobiça desmedida e cobarde. 

EMANUEL LOMELINO

Do Brasil à Suíça (excerto 2) - Samaritana Pasquier

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Muitas vezes vivi nessas famílias, mas era conhecida por ter um espírito rebelde. Pegava meus pertences, algumas roupas (eram bem poucas), colocava-as numa sacola e voltava para casa. Minha mãe me dava ordem para retornar à família pelo mesmo caminho que tinha seguido para chegar até ela. Naquela época, me sentia em revolta face a essa situação. “Por que não tinha o direito de viver com minha mãe, como as outras crianças?”

EM - DO BRASIL À SUÍÇA - SAMARITANA PASQUIER - IN-FINITA

domingo, 7 de dezembro de 2025

No fundo do baú 41 - Emanuel Lomelino

Pesa-me mais o cansaço dos passos dados em vão do que os quilos de horas que se acumulam nas pernas. Nesses intermináveis momentos de fadiga, o corpo dorido implora pelo mergulho na calmaria do sentir e pede para ser anestesiado por uma qualquer chuva de verão fora de época.

Ofegante é o desejo de permanecer imóvel, sem obrigação de estender os braços aos céus em preces de mudança. Há um pedido mudo que se revela uma necessidade imperativa de ver o voo das pombas brancas, mas o mundo continua a girar inclemente.

O crepúsculo já não é de paz e serenidade porque paira no ar uma cãibra que ignora a urgência de sossego e vazio. As madrugadas são lençóis de lava e as noites prolongam as vigílias inoportunas. O sono é picotado por cada som dos megafones motorizados que fazem derrapagens tão imprudentes quanto estridentes.

Então vem a alvorada com marcas no rosto porque o sol que nasce não é novo, mas sim o pleonasmo do anterior – mais passos em vão e horas acumuladas nas pernas.

Assim passam os dias que enrugam a pele e gritam a monotonia cruel costurada nos caminhos. Uns chamam-lhe destino, outros creem ser fado. Isto é apenas o desassossego da vida e há mortes mais dramáticas.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 6 de dezembro de 2025

No fundo do baú 40 - Emanuel Lomelino

Quantos degraus devem ser escalados para se atingir o patamar superior?

Quantos obstáculos devem ser ultrapassados para se conquistar a meta?

Quantos tombos devem ser dados para se levantar mais forte?

Quantas traições devem ser sentidas para se provar a lealdade?

Quantas feridas devem ser abertas para se chegar ao limite da dor?

Quantas perguntas devem ser feitas para se alcançar a resposta definitiva?

Quantas derrotas devem ser sofridas para se lograr a vitória final?

Quantas batalhas devem ser travadas para se vencer uma guerra?

Com quantos paus de faz uma canoa?

A resposta a todas estas perguntas é só uma: as que forem necessárias!

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

No fundo do baú 39 - Emanuel Lomelino

A vós, escritores consagrados pelos pensamentos imortais que nos legaram, expresso o meu lamento pelo desleixo daqueles que hoje descredibilizam o raciocínio.

A vós, desafortunados autores com letra maiúscula, declaro o meu desconforto pelo narcisismo daqueles que agora tentam dourar os seus nomes com a fama imediatista, apesar de não passarem de escrivães desalfabetizados e sem noção.

A vós, excelsos literatos que vivestes somente em miséria, manifesto o meu desencanto pelo pedantismo daqueles que vos parafraseiam erradamente para justificar os seus equívocos.

A vós, humildes redatores de sabedoria ancestral, exponho a minha incredulidade pelo enciclopédico desaforo daqueles que nada mais escrevem do que ondas de incoerência e marés de pensamento algum.

EMANUEL LOMELINO

Outono - Adriana Mayrinck

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As folhas secas douradas dançavam como memórias esquecidas pelas calçadas de paralelepípedos da Grand-Place, enquanto Mariana caminhava em silêncio, envolta em um sobretudo bege e um cachecol cor de vinho. O vento sussurrava segredos entre as ruas antigas, escondendo o sol atrás de um véu espesso de nuvens cinzentas. Havia algo de melancólico e sagrado naquele fim de tarde.

Ela parou diante de uma pequena vitrine de chocolates artesanais, no centro histórico de Bruxelas. Sorriu discretamente ao ver o reflexo do próprio rosto no vidro e a lembrança da mensagem recebida que a inquietava.

"Saudade não cabe aqui dentro. Diz que ainda pensa em mim?"

Mariana respirou fundo, fechou os olhos por um instante e lembrou do calor do Brasil. Mais especificamente, do calor que não vinha do sol, mas do abraço de Marcos.

Havia mais de um ano desde a última vez que o vira.

EM - IDÍLIO EM FRAGMENTOS - ADRIANA MAYRINCK - IN-FINITA

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

No fundo do baú 38 - Emanuel Lomelino

Não quero louvores porque os epítetos, que outrora significavam admiração e reverência, perderam o fulgor e tornaram-se adjectivos vulgares expelidos com interesses ocultos.

Não quero aplausos porque as salvas, que outrora significavam encanto e respeito, perderam o brilho e tornaram-se estampidos comuns musicados com intensões obscuras.

Não quero premiações porque as medalhas, que outrora significavam reconhecimento e cortesia, perderam o valor e tornaram-se insígnias outorgadas com conotações escarnecidas.

Prefiro as miradas silenciosas porque através dos olhares consigo ver a diferença entre as vénias sinceras e os galardões aparentes.

Prefiro os sinais discretos porque através dos gestos consigo ver a diferença entre as anuências puras e os falsos elogios.

EMANUEL LOMELINO

O paraíso são as memórias (excerto 1) - Tita Tavares

 

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Pensei como seria bom poder fazer tudo aquilo de que mais gostava e que, ao longo da vida, vinha sendo sucessivamente adiado. Havia a hipótese da reforma antecipada e, a verificar-se a curto prazo, proporcionar-me-ia a realização de tantos projectos arrecadados na gaveta clamando por liberdade. Ir ao ginásio, conviver mais, dedicar alguma atenção à cozinha, assistir a espectáculos, viajar, eram coisas que me entusiasmavam.

EM - O PARAÍSO SÃO AS MEMÓRIAS - TITA TAVARES - IN-FINITA

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

No fundo do baú 37 - Emanuel Lomelino

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

EMANUEL LOMELINO

Do Brasil à Suíça (excerto 1) - Samaritana Pasquier

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Dessa viagem, eu me lembro de dois jumentos que nos levavam pela estrada afora, numa espécie de um grande cofo de palha. Dois irmãos já haviam partido de casa, e minhas três irmãs mais velhas estavam repartidas em casa de famílias. Essa prática ainda é muito frequente no meio desfavorecido, onde as meninas acabam servindo como uma forma de “empregada doméstica”. Em contrapartida, elas têm um telhado, comida, e, com um pouco de sorte, podem até estudar à noite.

EM - DO BRASIL À SUÍÇA - SAMARITANA PASQUIER - IN-FINITA

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

No fundo do baú 36 - Emanuel Lomelino

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num ciclo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

No fundo do baú 35 - Emanuel Lomelino

Hoje, a palavra escrita é a representação gráfica de alguns gritos presos na garganta; de alguns impropérios que não podem ser proferidos porque ainda há crianças acordadas; de algumas imprecações lamechas que não combinam com a linguística socialmente aceite.

Hoje, a palavra escrita é uma fuga silenciosa aos fantasmas que teimam em assombrar os ingénuos; aos enfadonhos oradores que não sabem a diferença entre os sinónimos poéticos de festa e plenário; aos inúmeros arrolhadores das plataformas digitais.

Hoje, a palavra escrita é a excessiva glorificação do silêncio; é a exaltação dos pensamentos mais mundanos e vulgares; é o elogio à criação narcisista – dispensável como a maionese numa salada de frutas.

Hoje, a palavra escrita não é um exercício catártico; uma purificação de alma e espírito; um exorcismo de angústias, desilusões, desesperos.

Amanhã, a palavra escrita simbolizará outras coisas – ainda bem – porque também os dias são todos diferentes e merecem ser descritos com as palavras que melhor se adequam à sua singularidade.

EMANUEL LOMELINO