Ao
pé-da-letra
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Normalmente usamos o chavão “a vida é uma
selva” para demonstrarmos indignação sobre um episódio qualquer. Mas, se
aprofundarmos a ideia, chegamos à conclusão que podemos aplicá-lo a um dia
completo. Vejamos:
De manhã cedo saímos para trabalhar e há
sempre uma coruja ou um bufo, por trás de cortinas baloiçantes, a ver quem
bateu a porta do prédio. Depois surge um babuíno a cravar um cigarro ou um
morcego, que retorna à sua gruta, a perguntar as horas. Na fila do autocarro,
há sempre papagaios a palrear alto coisas sem noção, e alguns ratos que tentam
furar a fila. Durante a viagem, olhando pela janela, vemos imensos burros e
camelos a conduzir e que, volta e meia, são ultrapassados por chitas cheias de
pressa. No acesso ao metropolitano temos sempre algumas lesmas e preguiças a
impedir passagem e há um ou dois hipopótamos com dificuldade em desviar o
corpanzil para deixar passar quem quer entrar na carruagem. No interior da
composição, já sentadas, vão bastantes pavoas emproadas, com os rostos untados
de óleos, pastas, cremes e essências. Aqui e ali avistamos alguns suricatas a
esticar o pescoço – ora para a esquerda, ora para a direita – como tentando
detectar possíveis predadores. Há muitas hienas de gargalhadas estridentes, mas
é só. Nesta arca de Noé sobre carris, também conseguimos ver um número
considerável de pinguins vestidos com os seus fatos de gala. Chegados à estação
pretendida, todos sobem as escadas como fossem gnus a trepar uma encosta
íngreme depois de atravessarem o Nilo infestado de crocodilos.
Durante o dia cruzamo-nos com elefantes
trombudos, gazelas esqueléticas e outros herbívoros a pastar nas esplanadas,
jumentos de portaria, guaxinins a explorar papeleiras, melgas evangélicas,
doninhas fedorentas e, em alguns pontos da cidade, um sem número de espécies
exóticas, borboletas, mariposas, traças, que se misturam com formiguinhas
autóctones, lebres apressadas e alcateias de lobos desocupados.
Isto para não falar dos escorpiões e lacraus
venenosos, serpentes que querem ver alguém morder a maça, anacondas que abraçam
em asfixia, aves de rapina a perscrutar as calçadas em busca de presas, e
necrófagos a sobrevoar algumas carcaças, que já pereceram, mas não foram
avisadas.
Digam lá se a vida diária não é uma selva!
EMANUEL LOMELINO