sábado, 15 de novembro de 2025

No fundo do baú 22 - Emanuel Lomelino

Já ninguém acode ao “aqui d’el rei” porque quem manda é o umbigo e os aflitos de hoje são mais que as mães.

Já ninguém acredita no “olh’o lobo” porque deixaram de existir cordeiros e todos estão iludidos com a possibilidade de serem predadores.

Já ninguém aceita “descalçar a bota” porque os caminhos são pontiagudos e não há quem se dê ao trabalho de grandes trabalheiras.

Já ninguém quer saber das “pedras no sapato” porque os sapateiros são espécie em vias de extinção e as meias-solas estão fora de moda.

Já ninguém grita “fogo” porque, em vez de bombeiros, os primeiros a chegar são os inúteis alarmes ambulantes pixelizados, que desconhecem a existência de baldes e mangueiras e, tampouco sabem como se abre uma torneira, ou o que é uma boca de incêndio.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 21) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Como estamos a andar descalços, os pés são massajados pelo movimento. Há contato entre a planta do pé e a areia no fundo. Esse contato, durante a caminhada, constitui uma boa massagem. E porque nos pés há pontos de acupunctura de vários meridianos – rins, bexiga, fígado, baço, estômago e vesícula biliar – este contato e esta massagem, melhora a circulação da energia e do sangue, pois estimula esses meridianos.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Contos que nada contam 49 (Um dia de Verão) - Emanuel Lomelino

Um dia de Verão

O dia está soalheiro. Apenas alguns flocos de nuvens esbranquiçadas pontilham o céu azul. Num dos bancos do jardim, alguém folheia o jornal como quem não se surpreende com notícia alguma. Ao seu lado, uma senhora tricota, pachorrentamente, talvez um cachecol para o Outono que aí vem, ou uma manta para o rigor do distante Inverno. Mais adiante, na esplanada, fronteira ao quiosque, onde uma miscelânea de transeuntes se reveza num interesse fingido pelas parangonas, vários casais – com e sem crias – degustam lanches rápidos antes de voltarem aos seus afazeres diários. Junto ao lago, onde são inúmeros os jovens que se banham, há uma miríade de sujeitos (homens e mulheres) em trajes formais, com os olhares vidrados em tudo quanto lhes surge nos ecrãs pixelizados, que mantém presos nas mãos, como se a vida dependesse desses apetrechos, enquanto, de uma coluna portátil, em alto e bom som, saem notas distorcidas e vozes estridentes. Adultos, crianças e várias raças de canídeos, em diferentes ritmos e passadas, partilham um espaço relvado mais amplo e sem árvores, ladeados por uma faixa rubra asfaltada onde se mesclam distintos amantes do exercício físico.

No meio desta azáfama, de um dia de Verão, Fulgêncio, vestido com o seu fato de bombeiro, uma mochila de primeiros socorros suspensa nas costas e a transportar, com a ajuda do seu colega, a maca onde colocaram mais um desafortunado morador de rua, que retiraram do edifício devoluto que estava a ser consumido pelas chamas há, pelo menos, duas horas, perante o desinteresse generalizado, questiona-se se tem o poder da invisibilidade ou é apenas mais uma vítima da indiferença reinante.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

No fundo do baú 21 - Emanuel Lomelino

Não há mal algum em ser-se ambicioso, desde que haja plena consciência das dificuldades e não exista medo de enfrentar qualquer Adamastor que cruze o caminho traçado.

Não há inconveniente algum em ter-se objectivos desde que exista uma vontade férrea e inabalável de ultrapassar todos os obstáculos, por mais árdua que seja a tarefa.

Não há indolência alguma em querer alcançar-se determinadas metas, desde que exista total comprometimento e convicção da utilidade de cada jornada.

Não há arrogância alguma em desejar um aprimoramento pessoal, desde que exista clareza sobre a legitimidade daquilo que se pretende obter.

Só há problema quando não existe tolerância aos pequenos fracassos, boa capacidade de recuperação das inúmeras quedas que sempre acontecem, resistência às dores dos hematomas.

Só há entraves quando não existe ética de trabalho, grau de resiliência necessário para superar a grandeza dos desafios, sobriedade para distinguir as lutas que podem ser travadas.

Só há limites quando não existe espírito de sacrifício, determinação para aceitar os percalços como aprendizado, coragem para transformar as fraquezas em força renovada.

Só há embaraço quando não existe esperança em superar as próprias limitações, coerência nos passos que devem ser dados, humildade para aceitar voltar ao ponto de partida e recomeçar.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

No fundo do baú 20 - Emanuel Lomelino

Tento dedilhar a guitarra da vida, mas os acordes são disformes e não sou capaz de criar uma harmonia que não me fira os ouvidos. Definitivamente não sou músico.

Tento pintar a tela da vida, mas as pinceladas saem irregulares e não consigo acertar nas tonalidades, sombras e brilhos que contrastam com aquilo que quero retratar. Infelizmente não sou pintor.

Tento esculpir o rochedo da vida, mas os vértices que faço ficam rombos a cada passagem do escopro e a burilagem é tão desgastante que apenas consigo gravar migalhas. Compreensivelmente não sou escultor.

Tento refinar os troncos da vida, mas os sulcos que moldo são incompatíveis com os encaixes que modelo e os entalhes ficam tão amorfos que nem as fogueiras os querem como lenha. Miseravelmente não sou marceneiro.

Tento avigorar o ferro da vida, mas não tenho habilidade para dar à forja o calor suficiente para temperar o metal, que quebra na primeira martelada e o pesado malho trilha-me as mãos mais do que me fortalece. Categoricamente não sou ferreiro.

Perante tão humilhante incompetência, conclui-se que é a vida que me dedilha, pinta, esculpe, refina e avigora, e eu sou simplesmente a obra do seu ofício. 

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 11 de novembro de 2025

No fundo do baú 19 - Emanuel Lomelino

É tão, absurdamente, fácil ficarmos retidos nos muros das dúvidas e esquecermos os malefícios da inércia quando optamos por encontrar uma estrela guia em vez de desbravarmos as heras que cobrem os caminhos.

É tão, insanamente, fácil ficarmos paralisados diante dos rochedos das incertezas e olvidarmos o propósito que nos devia mover quando decidimos encontrar um trilho que nos leve ao topo do obstáculo em vez de procurar contorná-lo.

É tão, ridiculamente, fácil ficarmos parados defronte do oceano de hesitações e ignorarmos os desígnios que levam a prosseguir quando nos fixamos no medo de afogamento em vez de fabricar o remo que falta à embarcação que nos pode levar à outra margem.

É tão, insensatamente, fácil ficarmos iludidos nos jardins do sedentarismo e alegarmos um propositado embargo à nossa missão quando não temos confiança suficiente na alternativa e fingimos que tudo faz parte do plano.

É tão, humanamente, fácil ficarmos abismados nas florestas de indefinições e perdermos o controlo das prioridades quando desviamos o foco dos nossos intentos e nos deixamos enredar pela desproporcionalidade entre o esforço necessário e o prémio que nos espera no final da jornada.

EMANUEL LOMELINO

Queridas mulheres (excerto) - Ana Correia

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Acredito que tenho uma qualidade que todas as mulheres de sucesso têm em comum: a persistência. Se a pessoa tem um único objetivo, que é o fim, ela não evolui ao longo do processo. Quem tem isso claro em mente não desiste, independente dos obstáculos e dificuldades que possam surgir ao longo do percurso.

EM - MULHERES QUE CRUZARAM OCEANOS - COLETÂNEA - IN-FINITA

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

No fundo do baú 18 - Emanuel Lomelino

Sabes Mundo, vive em mim uma empatia pelas lutas que travas na actualidade e revejo-me em muitos dos novos conceitos que agora defendes, porque os considero importantes e revestidos de lógica irrepreensível.

Mas, responde-me Mundo, por que razão a execução das ideias boas vem sempre atrelada a acções que desvirtuam a pureza do que professas? Como justificas a defesa das liberdades com a criação de outros cárceres? Qual a legitimidade de suprimir pensamentos retrógrados com ameaça e perseguição? Em que medida é correcto punir quem deseja validar as filosofias modernas através do diálogo? Porventura, esta atitude de imposição não te faz relembrar os tempos sombrios que viveste? Acaso esqueceste a história que te trouxe até este momento?

Sabes Mundo, um dia inventaste um adágio, mas algures deixaste de acreditar na moral que comporta. E porque “de boas acções está o inferno cheio” acho que decidiste revelar-te como o inferno na terra, em tempo real. É assim tão complicado derrubar muros sem o uso de argumentos e posturas bélicas? É assim tão difícil abdicar de condutas conflituosas? É impossível mudar as coisas sem refregas abertas e permanentes?

Sabes Mundo, por vezes dou por mim a pensar na tendência repetitiva que tens revelado ao ferires-te amiúde, como fosses a definição de masoquismo. O meu temor é que, enveredando por este caminho de trevas constantes, acabes por cogitar a possibilidade de mudares a tua dieta e te tornes autofágico.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 20) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Primeiro, antes de começar a caminhar, sugiro que fique parado, de pé, a observar a sua respiração. Se estiver um pouco acelerada, faça três ou mais respirações profundas, inspirando pelo nariz e deite o ar fora pela boca, com um suspiro, deixando sair as tensões. Comece a acalmar a respiração e sinta como o ritmo cardíaco também se acalma e a mente também.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

domingo, 9 de novembro de 2025

No fundo do baú 17 - Emanuel Lomelino

O mundo desembaraçou-se de absolutismos geográficos, ditaduras físicas e embargos cerebrais em nome da evolução da espécie, no entanto, agora erguem-se muros de intolerância, fronteiras de radicalismo, extremismos de carácter.

Saímos de dois milénios de dogmas e estigmas para mergulharmos numa era de paradigmas irracionais e verdades forjadas apenas porque tudo deve ser desmoronado, mesmo o que deveria estar solidificado.

Mudou-se o cimento autoritário pelo despotismo cimentado. Substituiu-se a imposição da força pela força da imposição. Trocou-se a luta por liberdade pela liberdade de lutar. Alterou-se a defesa de valores pelos valores de ataque.

O mundo transformou-se num gigantesco paradoxo em tão ínfimo espaço de tempo que temo estarmos a caminhar para a loucura coletiva.

Tudo isto faz-me lembrar a história verídica daquele que foi diagnosticado com obsessão compulsiva por, a toda a hora, desinfetar-se da cabeça aos pés. Todos o recriminaram e chamaram de louco, e no momento em que saiu do sanatório, terminado o tratamento forçado e dado como recuperado, o mundo passou a esfregar-se com álcool gel.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 8 de novembro de 2025

No fundo do baú 16 - Emanuel Lomelino

Odeio que façam algo em meu lugar, tampouco gosto de adjudicar trabalhos a terceiros, porque os “voluntários” e “solícitos” julgam que qualquer uma das situações faz de nós eternos devedores de um favor que nunca foi pedido, e por vezes até já foi pago.

Odeio as frases feitas porque são sinais de alerta para a presença de alguém que nada de novo tem para acrescentar, por preguiça de formular uma opinião própria.

Odeio as conversas de circunstância que só existem para expressar o quão insonsa é a comunicação entre os envolvidos e servem apenas para matar o tempo até que algo interessante aconteça a um dos intervenientes.

Odeio as perguntas que exigem uma resposta monossilábica, porque demonstram o completo desinteresse do questionador sobre o questionado.

Odeio os exaustivos e enfadonhos discursos, multitemáticos, proferidos na sequência de uma pergunta concreta e objectiva, como se a questão fosse abstrata e abrangente.

Odeio a falsa exacerbação dramática e a exaltação excessiva de regozijo, porque ambas padecem de exagero tão desmedido quanto desnecessário.  

Odeio os elogios fáceis porque são os mesmos que fazem a outros. O elogio devia ser como um cartão de cidadão ou bilhete de identidade: pessoal e intransmissível.

Odeio tantos outros comportamentos de incoerência, mas não tenho tempo para detalhá-los como estivesse a compilar uma tetralogia sobre gente de múltiplas máscaras.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

No fundo do baú 15 - Emanuel Lomelino

Lê-se um texto, uma frase, e algo aciona o elo do código genético responsável pela necessidade criativa.

Ouve-se uma sentença, uma palavra, e algo despoleta a vontade de inventar uma história e contá-la como se de uma verdade absoluta se tratasse.

Escuta-se uma música, um som, e algo faz nascer o desejo de dar ritmo metafórico às palavras.

Sente-se o parto de um pensamento, uma ideia, e algo aponta os caminhos a serem trilhados para a parição do texto.

Sempre que acometido por uma destas singularidades, brota de mim a arte mais absurda de sentido.

Sempre que iluminado pelas forças invisíveis do estro, germina de mim o espírito peregrino de uma conjugação verbal.

Sempre que desafiado pela obsessão criativa, floresce de mim a dissertação mais fluída e natural.

Sempre que invadido pelo interruptor do entendimento, jorra de mim o conceito mais aleatório da razão que me alimenta.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

No fundo do baú 14 - Emanuel Lomelino

Na dúvida do que está por vir e enquanto não surge a certeza do futuro, embrenho-me na escrita, tal qual a penso e sinto, mas sempre na esperança de que cada mote se justifique por si mesmo, sem me explicar.

Não falo de mim nem me denuncio, porque sou abstrato, livre e obcecado pela minha privacidade. Antes crio meadas que teço com os fios velhos que reaproveito. Antes burilo gemas sem brilho que encontro nos troços que percorro. Antes cultivo as sementes do raciocínio, que é comum ao mais comum dos mortais. Antes cinzelo ideias universais com a perícia de quem desconhece tudo, mas suspeita. Antes refino o carvão dos sentidos e dou corpo de diamante às palavras que uso. Antes lavro pensamentos vulgares com fitas coloridas e enfeitadas de verdades.

Depois sou engolido pela noção errada das interpretações que me fazem por ser avaliado pelo que escrevo, como se isso, de alguma forma imperativa, pudesse definir o meu mais recôndito, misterioso e oculto interior.

O homem existe, somente, na intimidade de mim e para conhecimento de quem está próximo. O que está além disso é apenas sombra e o instrumento que dá corpo ao autor. 

Esse sim, encontra-se, em toda a plenitude e substância, regido pelo devaneio de dar a conhecer a sua capacidade instintiva de criar a partir do zero. Esse sim, tal qual um heterónimo, merece interpretação, nunca pelo que é, mas pelo que constrói com o estro vulgar que detém e trabalha.

EMANUEL LOMELINO

Kuala Lumpur: Coragem (excerto) - Rafaela Graf

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Quando me formei, estava vivendo o que muitos consideravam um sonho. Trabalhava em uma das startups mais renomadas da cidade, meu trabalho era constantemente elogiado e, no final da graduação, ganhei o prêmio de melhor monografia. Mas, apesar disso, havia sempre uma voz dentro de mim dizendo que eu não merecia tudo aquilo.

EM - MULHERES QUE CRUZARAM OCEANOS - COLETÂNEA - IN-FINITA

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

No fundo do baú 13 - Emanuel Lomelino

Há um contragosto fatigado e dorido que fere a vontade de mudança rumo ao júbilo.

Existe uma feroz tristeza, que é real e inibe o ambicioso desejo de subir, degrau após degrau, até patamares mais ousados.

Permanece a inoportuna febre que restringe as passadas necessárias para que o arrojo triunfe.

Há um fúnebre cansaço que pesa no corpo como quem proíbe uma progressão legítima e impede o regozijo da glória.

Permanece uma indolente escravidão, sem grilhões, mas bem mais carcerária que as celas de Alcatraz, que dificulta a mais insignificante conquista.

Há uma fragilidade prenhe de restrições que prende os movimentos suaves e singelos, como quem maniata os avanços mais naturais e precisos.

Existe um melancólico acanhamento do ânimo que, pouco a pouco, desfalece por inércia imposta pelas punitivas circunstâncias de todos os dias.

Permanece o insucesso do querer por imposição de um dever odiado, mas crucial para que as metas sejam cruzadas.

Há, existe e permanece um temor ofegante de que todo o esforço despendido seja inócuo e em vão.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 19) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Depois de assentar completamente no chão o pé da perna que avançou é a vez de, conscientemente, dar um passo em frente com a outra perna seguindo os mesmos princípios, isto é apercebendo-me dos músculos e articulações envolvidos e sensações associadas.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Epístolas sem retorno 45 - Emanuel Lomelino

Agatha Christie
Imagem pinterest

Digníssima Agatha,

Neste mundo cibernético ou, como ousa dizer-se comummente, neste mundo digital, passado que está o período de novidade, constata-se que, entre benefícios e prejuízos, o maior impacto reflete-se na fusão entre a realidade e o virtual.

Por mais que ouçamos vozes da razão, cheias de legítimas intenções e, sobretudo, boas pretensões, essas não passam de murmúrios sussurrados porque, na prática, ninguém quer ser visto, neste novo paradigma de anonimato selvagem, como cordeiro.

Cultivou-se um género de necessidade básica de pertencer a uma horda opinativa, seja qual for a opinião defendida – que não defensável –, como de pão para a boca, porque a fome de visibilidade é insaciável.

O que ninguém ou muito poucos percebem é que o ciberespaço, tal como se apresenta e é usado, ao contrário da obra de Machado de Assis, é coisa que não edifica mas destrói.

Agatha, dissertar sobre este assunto é um exercício fastidioso por natureza, contudo, imagino como seria a sua vida se a internet coexistisse com a sua obra. Só não sei quantos energúmenos, ao ler trechos dos seus livros, apresentariam queixas formais às autoridades por suspeitarem que, por tanto escrever de roubos, assaltos e mortes, estaria envolvida no crime organizado. Tampouco sei quantos encheriam as suas caixas de comentários e mensagens com vernáculo ofensivo, apenas porque a horda funciona desse jeito.

Curioso

Emanuel Lomelino

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

No fundo do baú 12 - Emanuel Lomelino

Nasce-se para se morrer, independentemente daquilo que se fizer no intervalo.

Já nasci e morri tantas vezes que a cronologia natural desses feitos deixou de fazer sentido.

Todas as mortes foram diferentes, enquanto os nascimentos foram tremendamente dolorosos para mim, com excepção do primeiro, cujas dores nem recordo.

Nasci e morri de tantas formas distintas que, em algumas delas, senti-me um personagem de Lovecraft.

Foram tantos os partos que nem deu tempo para fazer certidões de nascimento, porque as mortes estavam ao virar da esquina.

Foram tantos os óbitos que nem a necrologia conseguiu acompanhar e ninguém foi notificado.

Morri e renasci tantas vezes que já nem gato sou.

Com tantas parições e falecimentos foi-me permitido confirmar que, por mais que se faça tudo certinho em cada vida, de múltiplas e diferentes formas possíveis, nunca seremos capazes de impedir o desfecho final. E essa circunstância implica que no final das contas, o número de nascimentos será sempre igual ao de mortes.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 2 de novembro de 2025

No fundo do baú 11 - Emanuel Lomelino

É preciso abrir os olhos, para lá dos limites da fisionomia, para avistarmos tudo aquilo que, pintado com as cores da nossa inocência, nada mais é que engodo e simulação.

É preciso ver além do alcance da vista para entendermos como estes espectros furtivos, que nos iludem na invisibilidade das intensões, são seres de carácter pérfido, dissimulado, vil.

É preciso atenção microscópica e redobrada para entendermos quão elásticas (como interesseiras) são as aproximações que nos fazem, dependendo da utilidade, ou falta dela, que nos outorgam.

É preciso dar uso a toda a prudência, que a natureza nos emprestou, para sabermos quando sugam o ar que nos mantém ou sopram o veneno que nos intoxica, como insecticida.

É preciso reparar que, quase sempre, os benefícios de um ombro, que vislumbramos como gesto puro e sincero, são maças armadilhadas de gentileza encantatória e enganadora.

É preciso enxergar para lá do horizonte mais próximo e observar a distância mais remota para vermos com clareza o quão camufladas são as pretensões daqueles que, com vozes sussurradas, nos entoam aos ouvidos cantos de sereia.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 1 de novembro de 2025

No fundo do baú 10 - Emanuel Lomelino

O ar não é respirado em uníssono e as palavras deixaram de ser comuns. Contudo, mesmo que os olhos pouco, ou nada, se cruzem ainda temos os corações que batem do mesmo jeito – arfantes, porque arrítmicos.

Os gestos não são sincronizados e os passos são dados em direcções opostas. No entanto, mesmo com as esperanças reduzidas a novas realidades, ainda temos o sentimento vivo – pulsante, porque presente.

As vontades não são conjuntas e os objectivos distanciaram-se no espaço. Todavia, mesmo com os sorrisos pálidos e tristes, ainda existe forte conexão – elo, porque une.

Os abraços são esporádicos e os beijos são doces memórias de outrora. Porém, mesmo sabendo que, tal como dizia Mia Couto, com outras palavras, “nos acendemos uns nos outros”, ainda ardem em nós as labaredas – fogo, porque ardente.

As mãos não estão entrelaçadas e as vidas voltaram a ser independentes. Apesar disso, mesmo sabendo que o futuro passou a ser dois, ainda temos a história que será sempre nossa – eterna, porque imortal.

EMANUEL LOMELINO