segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Ondas de paz e contentamento (excerto 16) - Maria Helena J. Pereira
domingo, 19 de outubro de 2025
Contos que nada contam 46 (Um ultimo esforço!) - Emanuel Lomelino
Um último esforço!
Durante toda a vida, Afonso dedicou-se ao trabalho como fosse um atleta de alta competição. Estava sempre disponível para umas horas extra, colocando de lado o cansaço, ignorando as mazelas, superando a complexidade das tarefas e a pressão exercida pelas chefias, imaculadas e bem dormidas, que lhe exigiam máxima aplicação e o empenho que não entregavam.
Por mais dedicado, assíduo e competente que Afonso demonstrasse ser, pediam-lhe sempre mais um esforço, mais uma diligência, mais uma cedência, mais um sacrifício, como tivesse nascido para ser apenas um operário sem vida própria.
Durante toda a vida, dedicou-se ao trabalho com esmero e profissionalismo e agora, deitado sobre o solo gelado, sob os olhares estarrecidos dos chefes, que o observavam à distância e em silêncio, Afonso concluiu que, toda a entrega e dedicação, todas as cedências e sacrifícios, nada mais eram do que sinais do quão negligente havia sido com a sua própria vida, e apenas tinham beneficiado aqueles que, mal todos os pedaços do seu corpo quebrado fossem colocados na ambulância, seguiriam para o conforto dos seus lares e aconchego das suas famílias.
Antes de falecer, a caminho do hospital, Afonso ainda teve discernimento para um derradeiro pensamento filosófico: “por mais colectivo que seja o último esforço, ninguém verte o sangue alheio”.
EMANUEL LOMELINO
sábado, 18 de outubro de 2025
Crónicas de escárnio e Manu-dizer 45 - Emanuel Lomelino
11-02-2024
Quando era criança, e estava constantemente a ralar os joelhos ou a esfolar outras partes do corpo, ouvia os mais velhos dizerem que as dores, que então pouco sentia, viriam com a idade. Sempre achei muito estranho esse vaticínio e até o esqueci durante grande parte da vida.
Eis senão quando, chegado ao equador da existência secular, o corpo, qual despertador orgânico, começou a tocar e não há forma de o silenciar.
Dói caminhar, dói sentar, dói mexer, dói ficar estático, dói mover, dói tocar, dói ouvir, dói ver, dói falar, enfim, dói tudo, por tudo e mais alguma coisa, inclusive pensar.
Esta dor, que são várias dores em sequência, faz-me acreditar que, mais do que avisos, aquilo que os mais velhos faziam, quando eu era criança, era dar voz às suas próprias dores, demonstrando empatia pelas dores que hoje sinto e eles bem conheciam.
A diferença entre os dois tempos está no facto de, agora, não existirem crianças a brincar na rua e a ralar joelhos ou a esfolar outras partes do corpo. E, sobre essa dor, que desconheço, eu não sei como demonstrar empatia.
EMANUEL LOMELINO
O branco e a preta (excerto 22) - Pedro Sequeira de Carvalho
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 133 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
133
Oiço o som metálico do trompete, que sai das colunas, e na mente ecoa-me um cenário distante, no tempo e no espaço, como uma lembrança acabada de nascer no improviso de Coltrane. Mas não é jazz, nem memória. É uma imagem vívida de outra era, outra realidade, talvez desejo, quem sabe sonho irrealizado.
Confuso, quedo-me, de olhos fechados, a escutar a sinuosa melodia que flutua indiferente ao impacto que me aplica, e vejo, tão nitidamente como o agora, um episódio de vida que, tenho a certeza, nunca foi meu. Existem dejá vus de momentos jamais vividos?
Abro os olhos pela urgência ofegante de voltar a mim e à realidade que me rodeia. O som dissipou-se, não sem deixar-me o corpo perturbado e trémulo.
As pernas bambas, prestes a colapsar, pedem-me que encontre um lugar para me sentar até que as palpitações regressem à normalidade. Receoso, caminho devagar até ao único banco vazio que vislumbro. Sento-me após uma caminhada eterna e tento colocar as ideias em ordem.
O coração desacelera e a lucidez é-me devolvida. Respiro fundo e, com a maior tranquilidade que o raciocínio me concede, concluo que estive, mais uma vez, à beira de uma síncope.
EMANUEL LOMELINO
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Devaneios sarcásticos 31 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
31
Com o acúmulo de dias pardacentos, que não me transportam a lugar algum, vou-me vestindo de silêncios e indiferença.
Olho em redor e apenas vislumbro números circenses banhados de vulgaridade e executados por carrancas enfadonhas, como se a originalidade moderna fosse uma repetição contínua de carnavais passados, contudo, a preto e branco.
Esta matização básica, insonsa de significado ou propósito, inflige-me dotes de frivolidade e frieza, como se todo o meu ser físico fosse constituído por blocos de gelo oxigenado pelas insignificantes aragens polares.
Mas desenganem-se aqueles que veem nesta insensibilidade austera um temperamento acomodado e cego. A mudez, além de boa conselheira, permite observar a transparência de todas as matizes e intenções.
Silêncio não é sinónimo de apatia, inércia, passividade ou alheamento.
EMANUEL LOMELINO
Transformar é verbo (excerto 2) - Milena Pedrosa
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 132 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
132
Hoje as sombras estão mais presentes que nunca. A escuridão estende os braços frios sobre cada esquina, beco e viela, tentando envolver no seu manto de breu tudo o que intenta luzir.
Há um sopro de mau agoiro personificado num uivo felino, rouco, contudo, tão monocórdico quanto arrepiante, intercalado com o som metálico de uma goteira ritmada e o ronco de uma árvore chacoalhada pelo Zéfiro persistente.
À distância de um receio fundado escuta-se o embate de saltos com os paralelepípedos da calçada, numa corrida acelerada, quase em duplo desespero.
No céu ribombam trovões em sequência, como elos de uma corrente interminável. Mas dos raios luminosos, que normalmente se seguem, nem sinal. Só som e escuridão.
Esta noite as sombras estão mais presentes que nunca.
EMANUEL LOMELINO
Ondas de paz e contentamento (excerto 15) - Maria Helena J. Pereira
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 131 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
131
Apesar do grau de exigência que me coloco, adoro a minha falibilidade. É certo que me irrito com todos os passos mal medidos, com todas as derrapagens, com todos os deslizes, no entanto, entendo que as falhas fazem parte do processo e a melhor forma de as combater é admitir o erro e seguir adiante.
A parte confusa de tudo isto está na primeira afirmação que fiz neste texto: “… adoro a minha falibilidade”. Como pode alguém, que se diz exigente, ficar satisfeito com o facto de ser falível? A resposta é tão simples quanto óbvia.
Se refletirmos um pouco, facilmente entendemos que existe uma relação de causa-efeito a unir os dois conceitos. A exigência só faz sentido havendo imperfeição e esta é impulsionadora do carácter exigente.
No fundo, aquilo que advogo é a conscientização de que a génese da minha personalidade está umbilicalmente associada ao facto de ser, ad aeternum, um Ser imperfeito. Logo, se não fosse falível também não seria exigente.
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 13 de outubro de 2025
Crónicas de escárnio e Manu-dizer 44 - Emanuel Lomelino
04-02-2024
Já perdi a conta às vezes que metaforizei este paradoxo que existe em mim.
Por um lado, sou espírito eremitão, com sede de deserto e vontade de ficar em contínua meditação, abraçar os silêncios mais profundos, sentir a sangue pulsar nas veias, enxergar a passagem de cada segundo e alcançar o máximo de epifanias que o conhecimento possa outorgar.
Noutro prisma, sou o eterno amante do sedentarismo conformista; recluso num tempo que não me pertence, aonde me sinto desenquadrado, sem desejo de mudança – por revolta ou rebeldia – existindo apenas.
Por outro lado, sinto-me um nómada sem endereço certo nem rumo concreto, sedento por encontrar o lugar perfeito para instalar esta carcaça envelhecida e criar um entreposto de isolamento premeditado. Sou um beduíno, sempre irrequieto, em busca de um espaço para assentar arraiais, longe deste outro espaço que me restringe, aprisiona e bestializa.
Depois, enquanto me debato com esta triplicidade esquizofrénica, olho em redor e vejo inúmeras caravanas de camelos que circulam nos mesmos desertos que eu, com a diferença a residir nos holofotes que os acompanham. Então multiplica-se a necessidade visceral de metaforizar este labirinto temporal aonde me sinto enclausurado e de onde tenho ânsias de libertar-me.
EMANUEL LOMELINO
O branco e a preta (excerto 21) - Pedro Sequeira de Carvalho
domingo, 12 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 130 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
130
Por vezes fico a ponderar nesta minha apetência, cada vez maior, para procurar momentos de isolamento. Dizer-me apreciador da reflexão acaba por ser redutor porque também é possível pensar estando rodeado de gente.
Ficar entregue aos pensamentos é uma forma de autoconhecimento. Fazê-lo cercado por outros pode ser comunhão, quando há partilha de ideias.
O problema está na questão do grupo. É difícil partilhar os pensamentos mais elaborados quando do outro lado só existe interesse no banal, no frívolo, no insonso, e há grande resistência à evolução das conversas.
Neste contexto sou obrigado a confessar as saudades que tenho de algumas pessoas. Daquelas que, além de saberem transmitir conhecimento em assuntos diversos, tinham a capacidade de fazer evoluir os diálogos transformando as conversas em meros convívios apaixonantes.
Muitas dessas pessoas já não estão neste plano e, tal como eu, os que ainda por aqui andam também passaram a preferir a reflexão isolada.
EMANUEL LOMELINO
sábado, 11 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 129 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
129
Olho o mundo com os olhos de quem tem fome de transformar sonhos impossíveis em realidades presentes e palpáveis. Deixo que o olhar se espraia nos horizontes da vontade e voe livremente sobre as ilusões, ignorando dogmas e utopias, na demanda dos sonhos que dão sentido à vida. Quero para mim todo o conforto da realização pessoal mesmo que os espinhos se cravem na minha carne, dilacerem o meu corpo e as cicatrizes demorem uma eternidade a sarar. Desejo para mim mais do que os meus braços alcançam, mais do que o destino me outorga, apenas e só porque mereço o inatingível. Mais não seja pela perseverança ou teimosia que desde sempre está enraizada em mim. E quando a morte chegar e beijar este meu rosto arrefecido, pode depositar tudo o que alcancei na vida, com sangue, suor e oceanos de lágrimas, na sua sala de troféus na condição de indicar a sua proveniência. A ti, ceifadora, sugiro que uses este chavão: "Aqui jazem as conquistas de um eterno sonhador".
EMANUEL LOMELINO
Transformar é verbo (excerto 1) - Milena Pedrosa
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 128 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
128
Durante anos defendi uma norma de vida que consistia em ouvir o dobro daquilo que falava, usando como argumento o facto de termos dois ouvidos e somente uma boca. O conceito é básico, quase pueril, no entanto, é dotado de uma lógica, quase, irrepreensível.
Por ter uma mente inquisitiva, comecei a pensar numa forma de ultrapassar o problema que o advérbio de modo “quase” colocava. Ele sugere falibilidade e também é lógico, porquanto, numa conversa entre duas pessoas, é impossível que ambas escutem o dobro do que falam.
Como resolver este paradoxo?
A solução parece ainda mais infantil ou rebuscada, mas a própria natureza deu-nos as pistas através da anatomia. As orelhas são laterais e simétricas, e isto significa que o importante não é ouvir em dobro, mas sim escutar de modo harmonioso.
Nesta perspectiva cheguei à conclusão de que o conceito inicial era falho e aquele que passei a usar traduz-se numa palavra aplicável à forma como se ouve (equilíbrio) e outra ao que se fala (temperança). E estes dois substantivos são indissociáveis.
EMANUEL LOMELINO
Ondas de paz e contentamento (excerto 14) - Maria Helena J. Pereira
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Prosas de tédio e fastio 127 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
127
Passam os dias (sempre iguais) e cada um é uma vertigem de tempo que me afasta do mundo que nunca foi meu.
Eu, o único ser mutável nesta história, enfermo de saber-me deslocado, ora abraço ou rechaço a esquizofrenia lúcida que guia todos os meus passos, todos os meus pensamentos, todas as minhas angústias, que são nada quando comparadas com o mal maior.
O sol nasce todas as manhãs sem remorso nem infelicidade por ser o mesmo que já foi e igual ao que será. Já eu, que sei o meu amanhã, mesmo sem data precisa, jamais saberei o que fui – ou poderia ter sido – no tempo que me correspondia.
Esta dúvida, que deriva de uma certeza cada vez mais sentida como absoluta, é a bagagem que carregarei até ao final dos dias (sempre iguais), composta por baús de frustração, conformismo e desconsolo.
Pior do que estar encerrado num espírito esquizofrénico é ter consciência dessa fatalidade.
EMANUEL LOMELINO
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Crónicas de escárnio e Manu-dizer 43 - Emanuel Lomelino
21-12-2024
Por natureza, e porque procuro desenvolver ideias próprias sobre várias temáticas, sou crítico dos radicalismos modernos, que só existem por falta de validade argumentativa e preguiça intelectual.
Reflectir deve ser sempre o primeiro passo para a existência de discussões construtivas e é através das divergências que se podem alcançar consensos e encontrar as melhores soluções para cada problema.
Neste contexto, e porque há assuntos que merecem debates amplos e sérios, congratulo-me pelo crescente interesse na problemática da saúde mental.
Apesar da questão ter sido levantada, recentemente, por figuras de relevo do universo desportivo, este problema não é novo, é mais abrangente e deve preocupar cada um de nós.
Sem retirar importância ao debate sobre as origens, motivos ou soluções, creio que a prioridade deve ser a consciencialização colectiva de estarmos perante uma situação grave que requer o máximo de sensibilidade nas abordagens e, por isso, são dispensáveis as ideias pré-concebidas e preconceituosas do passado.
As sociedades só evoluem quando os pensamentos acompanham.
EMANUEL LOMELINO