quinta-feira, 3 de julho de 2025

Epístolas sem retorno 36 - Emanuel Lomelino

Fernando Pessoa
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Prezado Fernando,

A leitura, para além de ser uma actividade lúdica, em que, querendo, se aprende bastante, é um bálsamo que despenteia a preguiça de alguns neurónios adormecidos pelas desventuras das horas-trolhas e regenera as cores que se esbatem na pobreza do dia-a-dia.

Mas nem tudo são flores – pelo menos para mim – porquanto, algumas vezes (talvez demasiadas) dou por mim a barafustar com as páginas de um ensaio ou dissertação pelo uso abusivo de palavras que, apesar de lhes conhecer o significado, me travam a língua e desviam o foco.

Entre outras, porque existem muitas mais, dou como exemplo “exegese” e “procrastinar”, duas palavras que dificilmente escutamos saídas da boca de oradores (incluída a minha), mas usadas com frequência em textos críticos e filosóficos, que têm o condão de prejudicar a fluidez das minhas leituras, pela sequência silábica que encerram.

Nessas alturas, emerge em mim uma vertigem de pensamentos e, para lá da revolta pela consciência do quão fraca a minha dicção pode revelar-se, não consigo evitar lembrar-me de alguns autores, da nossa praça de insignificância, que utilizam palavras semelhantes nos seus textos quando oralmente, mal sabem pronunciar “mortadela”, “candelabro”, “álcool” ou “otorrino”.

Supérfluo

Emanuel Lomelino

O branco e a preta (excerto 1) - Pedro Sequeira de Carvalho

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Estava claro que em São Tomé eu só tinha uma qualidade, que era ser filho do Costa Marques e, talvez, um defeito, por me chamar de Carlos. Pior ainda, o Txóco não me permitia fazer nada. “O senhor não sabe ainda como que se faz isto.” Era a reação dele quando eu tomava alguma iniciativa.

EM - A BRANCO E A PRETA - PEDRO SEQUEIRA DE CARVALHO - IN-FINITA

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Epístolas sem retorno 35 - Emanuel Lomelino

Immanuel Kant
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Caro homónimo com “I”,

Compreendendo a metafísica como ciência que é, existem aspectos mundanos em que a dispenso, por inteiro, ou pelo menos na sua utilidade momentânea, porque nem todos os acontecimentos do dia-a-dia merecem reflexões profundas e detalhadas. Na maioria das vezes só preciso saber o facto, sem me deter nas causas, propósitos ou efeitos e consequências.

Posso sentir o aroma de um limoeiro, desfrutar da beleza natural de um pôr-do-sol ou deliciar-me com o chilrear dos pintassilgos, sem necessitar de justificativas elaboradas sobre os diferentes níveis de prazer. Basta-me o momento. O mesmo é aplicável a uma martelada no dedo, a uma picada de mosquito ou ao som de papel a rasgar.

Quem logra transpor este modo de estar (sem questionamentos) para situações consideradas mais complexas, como o relacionamento com os outros (plural porque são múltiplas as nuances) tem mais possibilidades de evitar dissabores. Mas deve-se ter em atenção que, aos olhos dos demais, este género de atitude nunca é bem-visto, antes é catalogado com os sentidos mais pejorativos dos adjectivos (soberba, altivez, frieza, orgulho, arrogância, egocentrismo…)

E raios partam a metafísica que, até num texto sobre a sua prescindibilidade, faz questão de marcar presença.

Irritado

Emanuel Lomelino

terça-feira, 1 de julho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 36 - Emanuel Lomelino

16-06-2024

Circula entre os homens uma enfermidade mais nefasta do que qualquer vírus (natural ou artificial). A sede de protagonismo acoplada à vaidade de egos exacerbados. É uma espécie de doença crónica que evolui em proporção ao mediatismo que se lhes outorga e que é tremendamente difícil de combater, mais ainda quando os enfermos se fazem rodear de claques profissionais, formadas por aqueles seres que, para temperarem as vidas insonsas com alguma agitação, aplaudem e apupam em troca de “likes” e notificações.

Qualquer um consegue identificar os viciados em holofotes. Agem como damas ofendidas quando as luzes se apagam. Têm memória curta e selectiva. Nunca contam a história toda e ocultam os seus telhados de vidro, fazendo passar uma imagem de virgem imaculada às suas plateias contratadas.

E tudo isto porque, vai-se lá saber porquê, todos eles, sem excepção, acreditam serem divinamente merecedores de vénias e adoração, como fossem messias de uma qualquer seita, e quem não se verga é filho do demo, mesmo os que, em algum momento, foram úteis mas recusaram mudar-lhes as fraldas, ou deixaram de pagar dízimo.

Infelizmente, por mais voltas que o mundo dê, parece que o único antídoto para esta maleita é esperar que o tempo resolva este género de crise de meia-idade.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 35 - Emanuel Lomelino

15-06-2024

Não me soprem fábulas aos ouvidos. Não sou vasilhame para guardar o sangue que escorre das vossas línguas bifurcadas. Tampouco serei tanque para lavar roupa suja nem cúmplice para noticiário de pasquins de esquina.

Não me cantem fados do coitadinho. Não sou depósito de letras divorciadas para armazenar os vossos arrufos de vaidade. Tampouco serei prateleira de ninharias frustradas nem varina do diz-que-disse.

Não me recitem sentenças avulsas. Não sou confessionário dos vossos linchamentos de damas ofendidas. Tampouco serei cárcere de lugares-comuns e frases-feitas nem pedra de amolar o veneno dessas facas.

Não me vendam banha-da-cobra. Não sou alguidar para escamar a beligerância fátua pescada no vosso mar de imodéstia. Tampouco serei projector de películas ficcionadas nem amplificador de cortinados virtuais.

Sou apenas um dos alvos da vossa triste existência.

EMANUEL LOMELINO

De todo mal (excerto 4) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Marta não se deu conta de que esquecera de seus próprios remédios. Havia tempo que a gastrite se tornara a menor das dores. O controle que fazia da tireoide perdeu-se no tempo. Sofria com esses distúrbios há muitos anos, mas, para ela, nada mais tinha importância. A vida da filha era sua responsabilidade, e pensou merecer todos os castigos pelo que deixara acontecer com Geórgia.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

domingo, 29 de junho de 2025

Epístolas sem retorno 34 - Emanuel Lomelino

John Steinbeck
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John,

Como podemos justificar que a moral consiga sobrepor-se à revolta interior? Acaso nós, que nos chamamos humanos, temos réstia de santidade suficiente para nos darmos a gestos, atitudes e comportamentos beatíficos, sem que o futuro nos outorgue o remorso? Sinto dificuldade em crer nessa hipótese!

Compreendo que a ambição nascida da responsabilidade possa transformar-se em algo hercúleo, majestoso e superior, no entanto, não consigo entender que, num momento de dor extrema, o sentido ético permaneça inviolável e alguém, com o peito dilacerado pela negritude da perda, consiga resistir à tentação – termo discutível – de mandar as convenções à fava e agir no impulso da raiva; da descrença; do inconformismo; da indignação; da morte espiritual.

Não existem neste tempo – teu, meu, e que virá – os Kinos predispostos a devolver o fruto de incontáveis sacrifícios, de ânimo leve, por mais amarga que tenha sido; seja e venha a ser; a perda. Já não há valores que se sobreponham ao ímpeto da morte.

Talvez paradoxal

Emanuel Lomelino

Hoje não! (excerto 2) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Queria mesmo era reclamar do sol quente, do chefe que só exigia, do trânsito que não saía do lugar, do dia que não acabava, dos filhos que não ficavam quietos, do marido que não colaborava, do dinheiro que nunca sobrava e do despertador que tocava insanamente. Resolveu acordar e, no piscar dos olhos, ainda despertando, pensou: “hoje, eu não quero. Não tô a fim de nada”.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

sábado, 28 de junho de 2025

Epístolas sem retorno 33 - Emanuel Lomelino

Ernest Hemingway
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Ernest,

A obsessão é uma armadilha inodora! Nenhum obcecado lhe sente o cheiro nem as manhas. E são tantos os momentos da vida conduzidos ao sabor das obsessões, que fica difícil negar a sua existência, e o quanto nos aprisiona, em qualquer uma das batalhas que travamos dia-a-dia.

Somos obcecados por seguir apenas um caminho, mas dizemos que somos teimosos. Somos obcecados por agir de uma forma específica, mas dizemos que somos perseverantes. Somos obcecados com alguns procedimentos, mas garantimos que somos coerentes. Somos obcecados por atingir determinados objectivos, mas juramos que somos obstinados. Somos obcecados por manter metas fixas, mas dizemos que somos insistentes. Somos obcecados com o sucesso, mas dizemos que somos ambiciosos.

No final, somadas todas as obsessões e medidas as espinhas que trazemos até ao cais da razão, acabamos por descobrir que, por mais adjectivos que usemos para explicá-las, elas nunca deixarão de ser engodos carcerários.

Obcecadamente

Emanuel Lomelino

A biblioteca da Sofia (excerto 6) - Fátima Santos

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O Unicórnio iria distribuir os bilhetes por todos os meninos do Mundo, sem ser visto, como se fosse o Pai Natal, quando deixa os presentes, na chaminé.
Os bonecos aplaudiram, deram umas cambalhotas, felizes por participarem neste projeto genial. O Unicórnio deu mais uma voltinha pelo céu e regressou a mastigar um pedacinho de nuvem, satisfeito por ter um papel muito importante nesta missão.

EM - A BIBLIOTECA DA SOFIA - FÁTIMA SANTOS - IN-FINITA

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 67 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

67

Há muito deixei de ter tempo de sobra. Tampouco tenho réstias a perder. Cada segundo soma-se, e some-se, na urgência dos passos contados, e cantados, como salmos nas procissões de finados.

Entre idas e vindas laboriosas, entretenho-me a esgaçar os ponteiros dos dias, à procura de respostas para as perguntas que me assaltam e sobressaltam, sem abrandar nas encruzilhas para tentar adivinhar o melhor caminho.  Sigo em frente, sem hesitar e elas (perguntas e respostas) que me acompanhem, se tiverem pernas folgadas.

Os anos acumularam-se nos ombros, o sal já escasseia, o sol ainda aquece, a chuva molha, o vento sopra, as ondas desmaiam nas areias da praia, e nada prende mais do que um par de algemas indecisas.

Não tenho tempo a perder, nem quando estou inerte, a tentar descobrir se as cigarras são mesmo preguiçosas ou se o canto que ouvimos provém dos sopradores de folhas que elas usam para limpar os galhos das árvores.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 66 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

66

Acho graça aos amoques que determinadas personagens, com a mania das grandezas e acreditando serem detentoras das verdades absolutas, têm amiúde, por dá cá aquela palha, porque sim e porque não, como se a histeria dos seus gritos mudos e absurdos atemorizassem os demais, fazendo-os enfileirar como carneirinhos conduzidos por pastores caninos.

Dá-me graça, e vontade de rir, quando vejo essas matrafonas carnavalescas, trasvestidas de autoridade suprema, a arrotarem postas de pescada, com vozes estridentes, feito varinas a depilarem-se com lâminas rombas, como se a razão as assistisse e sem perceberem o quão ridículos são os motivos da peixeirada.

Dá-me graça, mas sinto pena, dessas vedetas mediáticas que andam sob holofotes, como quem usa chapéu-de-chuva em todas as condições climatéricas, na esperança de serem notadas para não serem esquecidas, conduzidas por egos tão inflados como provincianos barrocos.

Dá-me graça, sobretudo por saber, de cor e salteado, os reais propósitos desses falsos achaques, que nada mais são do que chamarizes para papalvos, distraídos e pombos-correio.

Dá-me graça a vulgaridade de quem se vende excepcional.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 65 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

65

Carl Jung alertou para as características viciantes do silêncio e para as consequências que essa adição provoca naqueles que enferma. Concordo que o silêncio vicia e que há efeitos visíveis nos que usam o silêncio como uma forma de estar e entender a vida. No entanto, no desenvolvimento da ideia, tenho de manifestar opinião contrária à tese de Jung.

Para começo de conversa, a minha primeira discordância com o psiquiatra suíço está na catalogação deste estado como sendo uma doença. Talvez por não ser psiquiatra, creio ser abusivo classificar todo e qualquer comportamento, lateral aos convencionalismos, como doença. Chamem-lhe desvio, excentricidade, rebeldia, bizarria, mania, exotismo, capricho, ou qualquer outro substantivo, mas não doença.

Na explicação de Jung, os viciados em silêncio ficam tão deslumbrados com a sensação de paz que tendem a perder interesse na interação com os humanos. Neste ponto creio que a análise foi feita em contramão. Os amantes do silêncio não perdem interesse nas interações por sentirem paz, mas sim, sentem paz, quando estão em silêncio, por terem interagido em demasia. O silêncio acaba por transformar-se no único remédio eficaz para alcançar paz e reverter a toxidade das relações com os outros.

EMANUEL LOMELINO

De todo mal (excerto 3) - Rose Pereira

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No outro dia, Geórgia amanheceu bem pior, febre alta, calafrios, e, para surpresa de Marta, precisou ficar internada daquela vez. Não eram mais novidades as fragilidades na saúde da filha, contudo estava ficando cada vez pior.
Por causa da reincidente pneumonia, ficou mais dias no hospital, sem que houvesse uma regressão considerável de seu quadro.
As febres, fraqueza e a anemia persistentes de Geórgia começaram a intrigar os pediatras que acompanhavam o caso.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

terça-feira, 24 de junho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 34 - Emanuel Lomelino

12-06-2024

Por estes dias li um texto sobre a “teoria da regressão” (belíssima dissertação sobre a hipocrisia consciente da humanidade) e dei por mim a pensar nos passos atrás que se dão, quando o intuito seria continuar a evoluir.

O domínio do fogo foi evolução. A invenção da roda foi evolução. A sedentarização foi evolução. A escrita foi evolução. Todas as civilizações foram evolução. A revolução industrial foi evolução. A revolução tecnológica é evolução.

O problema, de todos os acontecimentos que permitiram evoluir, é o seu denominador comum – o homem. Um ser que, apesar de ser fruto de um longo processo evolutivo e ter toda a experiência outorgada pela evolução, não só da espécie, mas, sobretudo, do seu próprio mundo, consegue chegar a este momento da existência e permitir-se regredir na essência.

Uns por ganância. Outros por comodismo. Todos por já não poderem ser chamados humanos porque perderam a razão e a humanidade.

EMANUEL LOMELINO

Hoje não! (excerto 1) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Amanheceu. A luz delicada do sol entrou no quarto quase pedindo licença para aquecer os sonhos daquela mãe que despertava cheia de vitalidade e gratidão. A magia deste começo, no entanto, para por aqui. A mãe desejava um pouco de poesia na vida dela? Férias? Sol na praia? Claro que sim. Quem não? Mas, já que não havia isso para hoje, desejou pelo menos sair do automático.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Prosas de tédio e fastio 64 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

64

Mirro-me nesta sensação de estar, invariavelmente, a ser sugado até ao tutano, por forças ocultas, que apenas sobrevivem porque lhes resisto, ao não lhes reconhecer mérito nem importância.

É como se o peito centrifugasse o sangue, em brasa, em espirais tresloucadas pela estreiteza das veias, ao mesmo tempo que os pulmões reprimem o ar que quer libertar-se num grito de ferocidade guerreira.

Em simultâneo, a pele enruga-se ao máximo da sua elasticidade, como estivesse a fundir todas as células num único organismo bélico, pronto para explodir sem olhar aos danos colaterais.

As mãos entrelaçam-se no estalar de cada dedo, até que uma dor câmbrica formigue imparável entre as falangetas e os cotovelos.

O suor escorre, tal qual uma enxurrada, por todo o corpo. Acordo. Espirro. Nada demais. Apenas uma constipação por ter este hábito de dormir com a janela aberta.

EMANUEL LOMELINO

A biblioteca da Sofia (excerto 5) - Fátima Santos

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Sentou-se de pernas cruzadas e começou por explicar aos seus ouvintes que a bibliotecária lhe tinha ensinado que os unicórnios são seres imaginários, que já faziam parte de outras histórias muito antigas e mostrou a capa do livro onde estava um bonito cavalo branco que, no centro da cabeça, tinha um pequeno chifre.

EM - A BIBLIOTECA DA SOFIA - FÁTIMA SANTOS - IN-FINITA

domingo, 22 de junho de 2025

Pensamentos literários 34 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

34

Ser adicto à leitura só se revela problemático se não existir a disciplina comportamental necessária, principalmente quando, após um livro, sentimos aquele impulso compulsivo de aprofundar uma temática ou contrapor ideias.

Nesses momentos de euforia literária, é preciso usar toda a força da resolução, e autocontrolo, para impedir-nos de correr à primeira livraria e comprar uma montanha de tomos relacionados com o original.

O mesmo acontece quando ficamos deslumbrados com a escrita de determinado autor e somos impelidos a adquirir, de supetão, todas as suas obras.

Aqueles que sofrem desta enfermidade cultural sabem o quão difícil é resistir aos ímpetos insaciáveis do conhecimento. A melhor forma de combater os sintomas é reler cada obra, pois a releitura sempre nos mostra algo que nos passou despercebido e pode responder a algumas questões, sem ser preciso ler outras abordagens. Outra forma de antídoto consumista é, sempre que possível, procurar antologias, colectâneas ou resumos biográficos, onde possamos estar em contacto com as obras de modo mais superficial, contudo, mais abrangente, porque, no final das contas, não precisamos saber todas as respostas. Muitas vezes basta conhecermos alguns fragmentos para alcançarmos, por nós mesmos, a ideia global.

Tirando isto, a leitura só traz benefícios.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 21 de junho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 33 - Emanuel Lomelino

10-06-2024

Os abutres não deixam de pairar sobre as cabeças insufladas de modernismo. Fazem voos rasantes, com a desenvoltura de quem confia no anonimato que as suas sombras protegem, e não temem as vozes esclarecidas porque, essas, são minoria.

As ideias passaram a ser raros oásis num deserto, de areias ociosas, cada vez mais extenso e repleto de tendas ocupadas por neodepressivos que ficaram enfermos por escutarem demasiados nãos, e pensam que os pixéis dos ecrãs táteis são ingredientes de medicina alternativa probiótica.

Por este andar, ainda um dia, haveremos de encontrar embalagens de alucinogénios e pachorra-diet nas prateleiras dos supermercados, ao preço de uva-mijona e com a possibilidade de ser paga em suaves prestações de bitcoins, via transferência telepática e sem prescrição médica.

Valha-nos a Santa Imaculada Paciência de origem mandarim. Digo deste modo porque especificar a nacionalidade seria propalar um estereótipo (sentimento que apenas um caucasiano privilegiado, como eu, é capaz de expressar).

EMANUEL LOMELINO