quinta-feira, 25 de abril de 2024
A fantástica fábrica de rapaduras (excerto 1) - Maria Aliender
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 288 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
288
A passo lento, Rómulo pisa a calçada, ainda húmida do orvalho matinal, como quem tem uma pedra no sapato e as meias encharcadas.
No rosto, carcomido pela insónia, leva estampada uma história de tormentas cosidas a desencontros e linhas tortas. No canto do olho, como em todos os dias amargos, carrega o reflexo de lágrimas por libertar, que nem a cacimba é capaz de disfarçar.
O manto puído dá-lhe o poder da invisibilidade perante a turba que se acumula junto ao semáforo, sem tempo para olhar o mundo tal qual ele se apresenta.
Ao ronco das entranhas, Rómulo responde colocando a sua mão boa – a que tem menos escaras vivas – no que resta do bolso direito. Saca a côdea do desafogo das últimas semanas e, com a prática de um golpe de indicadores, solta duas migalhas que leva à boca salivante.
Olha em redor, como quem anseia ver algum conhecido, e regressa, inexpressivo, ao interior da caixa de frigorífico, onde se abriga nas noites selvagens de Inverno, para mais uma tentativa de hibernação – o sono pode não ser pacífico, no entanto, tem o condão de apaziguar o estômago por mais algumas horas, até à próxima dose de migalhas.
EMANUEL LOMELINO
Lavagem cerebral (excerto 2) - Luís Vasconcelos
terça-feira, 23 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 287 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
287
Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.
Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um violão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.
Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 11) - Geórgia Alves
segunda-feira, 22 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 286 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
286
Como não bastasse a densidade do bosque, com as suas altivas árvores de copas escuras e tão espessas que o sol não as trespassa, ainda se pôs este nevoeiro cerrado que cega o início do olhar.
Apenas ruído. Uma espécie de assombro canalha que gela pedras e raciocínio. Um tilintar indistinto, contudo macabro, fúnebre e tão encantatório como um coro de sereias à caça de náufragos.
O caminho, à margem das vespas e espinheiros, faz-se irregular, qual montanha-russa num parque de diversões devoluto.
Ouve-se o piar de uma coruja-das-torres e um indefinido restolhar, ténue e miúdo, tão rasteiro como uma subcave invisível, mas presente.
Subitamente, num passo de mágica, abre-se uma clareira tão larga quanto negra, como fosse o leito de uma gigantesca fogueira antiga, que oferece três trilhos. Um de seixos brancos e lisos de erosão, outro coberto por um tapete de folhagem calcada, o terceiro enlameado, íngreme e invadido por troncos tombados.
Os dois primeiros reentram no bosque. O último, menos convidativo, circunda a clareira e embica na direcção oposta. Por via das dúvidas, incorpora-se o espírito de Régio e segue-se adiante.
EMANUEL LOMELINO
O dia em que a música acabou (excerto) - Renata Campos
domingo, 21 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 285 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
285
De nada serve abrandar ou ziguezaguear a vida por medo da morte. Fazê-lo é prescindir das cores que a primeira contém, substituindo-as pela beleza daltónica da segunda, sempre em tons esbatidos e duvidosos.
Não adianta colocar pé no travão da existência porque as pétalas do tempo não se comovem com o abrandamento do passo e seguem, flutuantes, rumo à finitude da sua queda.
Não há fontes de água-benta que impeçam o pólen de Hades de espalhar-se entre a humanidade e aumentar a sua colecção de almas.
Mais confortável é aceitar com naturalidade o fim assegurado, deixando-o navegar nos mares da ignorância, como quem espera o sorteio da loteria sabendo que as hipóteses de ganhar são superiores a qualquer outra sorte.
EMANUEL LOMELINO
Teia no jardim - JackMichel
sábado, 20 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 284 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
284
Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.
Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.
Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.
Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.
Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.
E
tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no
turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.
EMANUEL LOMELINO
O poder das ancas (excerto 1) - Monica Rocha
Lagoa dourada (excerto 2) - Maria Aliender
sexta-feira, 19 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 283 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
283
Começam-me a faltar fórmulas para explicar o gosto pela leitura e o prazer de ler livros em catadupa.
Chamem-lhe obsessão, vício, dependência, mania, sede de conhecimento, paixão, até loucura. Aceito todos os epítetos com a mesma naturalidade com que passo de Celan para Agustina, de Tchekov para Sophia, de Quintana para Hatherly, de Camilo para Pasternak, de Orwell para Vergílio, de Márai para Torga, de Eugénio para Gógol, de Pessoa para Steinbeck, enfim, de livro para livro, sem olhar a filosofias, épocas, proveniências ou géneros literários.
Sou um bicho das letras auto enclausurado nas badanas de um mundo paralelo, por onde deambulo em busca de respostas às perguntas que nunca fiz porque, só assim, consigo justificar a esquizofrenia que me abraça e faz-me sentir, bem vincado no âmago, este desenquadramento temporal.
Ler transformou-se numa epopeia lúcida com o objectivo de afastar a angústia de estar onde não pertenço, nem quero estar, e descobrir o espaço e tempo onde poderia encaixar-me como uma peça de puzzle.
EMANUEL LOMELINO
Lavagem cerebral (excerto 1) - Luís Vasconcelos
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 282 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
282
Sabes, Celan, desconheço se a tua ligação emocional com a morte era mais do que revolta por Auschwitz e, por isso, não sei se este nosso não-tabu pode, de alguma forma, ser comparável.
Apesar da liberdade que me dou ao falar amiúde sobre ela, porque morro constantemente, e ao contrário de ti, não é um fascínio mórbido que me move, mas sim a consciência lúcida de uma inevitabilidade.
Posso dizer-te que, da minha parte, a morte nunca vislumbrará medo nos meus olhos ou coração. Não me intimida pelo breu, pela incerteza do que vem depois, nem pela imagética associada.
Mesmo desconhecendo a forma como a definitiva vai reclamar-me à vida, sei que ela espera por mim e está cada vez mais próxima. E quanto mais o relógio avança menos tempo sobra para falar dela.
Espero apenas que os meus discursos, quase tão negros como os teus, não me levem a um final igual. Neste momento prefiro ser abraçado por ela do que abraçá-la.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 10) - Geórgia Alves
quarta-feira, 17 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 281 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
281
Por mais inclusivo e tolerante que se seja aos diferentes pensamentos das múltiplas doutrinas literárias contemporâneas, existem confissões que, ao pregar a boa-nova, espargem paradoxos que só criam raízes nos menos avisados.
Estas facções evangelizadoras da literacia moderna, ao mesmo tempo que se apresentam estratificadas, criam uma auréola classista pela transmissão das suas mensagens.
As liturgias são ocas de coerência estilística, não por definição profética propositada, mas por défice cognitivo inerente. Não existe raciocínio lógico fundamentado na solidez de ideias inovadoras, tampouco incentivo ao arrojo.
As eucaristias são cerimónias de pretensão e ufania mascaradas de certame abrangente, não por crença filosófica, antes pelo engodo pastoral dirigido aos devotos.
Os grã-mestres usam o eruditismo e eloquência das palavras frívolas para magnetizar a crendice dos fiéis simples, num catecismo de verdades e presságios que só a eles se aplica.
Por tudo isto louvo, cada vez mais, o meu entendimento agnóstico, que me impede de ingressar nessas seitas.
EMANUEL LOMELINO
Meditar e respirar (excerto) - Renata Campos
terça-feira, 16 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 280 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
280
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… Claro que conheci o professor Licínio! O sujeito mais louco e estimado da
aldeia. Foi com ele que aprendi a ler, como muitas gerações desde o tempo em
que os meus pais eram crianças.
Transformou
a sua garagem num gigantesco salão de leitura, com as paredes forradas a livros,
que as editoras lhe enviavam continuamente, e a porta sempre aberta para quem
quisesse entrar.
Ele
passava o dia a ensinar as letras, a formar palavras, a construir frases, aos
mais novos, enquanto incentivava os maiores a pensar no que liam e a escreverem
as suas próprias histórias.
Não
era estranho vermos, além de crianças pequenas e adolescentes, o salão pejado
de adultos, que aproveitavam para ler os livros que ali havia e tentavam
cometer a proeza de fazer o professor Licínio sair para a rua, coisa que ele
nunca fez em vida, nem mesmo para comprar bens essenciais, que encomendava, no
início por telefone, depois por internet, porque havia outra porta, ao fundo da
sala, que comunicava com a sua casa e ele tinha jurado que só sairia dali no
dia em que não lesse um livro.
Só o conseguiram retirar daquela casa aquando do seu funeral.
EMANUEL LOMELINO