sábado, 31 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 55 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

55

As gaivotas estão alinhadas no pontão, à espera do momento certo para agitarem as asas, enquanto os cágados sobem aos solários para aquecerem as carapaças e os patolas dividem pasto com os pombos – oportunistas-mor do parque.

Na outra margem do lago, a avó delicia-se com o espanto infantil que a netinha demonstra ao ver o aspersor regar a relva luxuriosamente verde.

Os bancos de jardim começam a ficar ocupados por gente sem horário, viciados em ecrãs táteis, novos românticos e apreciadores de solidão ao ar livre.

Num canto resguardado, o PT da moda dá instruções gímnicas ao escanzelado que, banhado pelo esforço, tenta transparecer atleticismo para impressionar as loiras saradas que usam o trilho próximo.

Joggers, runners, ciclistas e trotineteiros cruzam-se invisíveis, na pista de alcatrão laranja, com a voluptuosa patinadora quase desnuda, cuja movimentação acelerada provoca alvoroço no pontão. Uma a uma, as gaivotas abrem as asas, levantam voo e grasnam à sua passagem. Os cágados mergulham para arrefecer as carapaças, os patolas refugiam-se sob a água aspergida e só os oportunistas-mor continuam, impávidos e serenos, entregues à rapinagem, numa indiferença pombalina.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 54 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

54

Sonhei que as páginas de um caderno abriam as linhas, como bocas famintas, para se alimentarem das palavras que, devoradas, ficavam caducas na sua essência.

Os verbos perderam força, os adjectivos secaram e os substantivos cortaram os pulsos com as vírgulas afiadas, com medo de ficarem, eles próprios, enfermos de amnésia.

De repente as metáforas deixaram de ser funcionais e os pontos de interrogação tentaram agarrar-se aos rodapés íngremes como penhascos, numa tentativa de protelar a sua extinção.

O apocalipse parecia estar a ganhar vida quando, no momento em que o frémito de todos os vocábulos pegou fogo, as labaredas envolveram o caderno que começou a contorcer-se até transformar-se num monte de cinzas-negras e um sol apareceu no horizonte anunciando renovação.

As palavras sacudiram o pânico dos ombros, deram os braços chamuscados, umas às outras, e prometeram continuar a sua função de retratar por extenso toda a amplitude das línguas de Babel.

EMANUEL LOMELINO

E a maldição (excerto 2) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Entretanto, Marta logo se convenceu de que não haveria paz com a menina naquele lugar. Assustava-se à noite com os barulhos. Ouvia sussurros estranhos pelo lado de fora das portas. Durantes as madrugadas, jogavam pedras em cima do telhado, e ela temia que perfurassem o teto e caíssem sobre suas cabeças. Tentava proteger-se como podia, agarrada à filha. A pressão aumentava. Seus sonhos e planos estavam ameaçados pelo ódio dos que se diziam injustiçados.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Epístolas sem retorno 31 - Emanuel Lomelino

Casimiro de Brito
Imagem retirada da internet

Mestre Casimiro,

Dizem que a morte é eterna, mas creio que este adjectivo não é o mais adequado. Para mim é mais correcto dizer que a morte é definitiva.

Para algo ser eterno é necessário apresentarem-se as provas substantivas dessa eternidade. E, até agora, ninguém foi capaz de nos garantir que a morte é estendida no tempo, para todo o sempre.

Já a condição definitiva prova-se por si mesma porque a prova reside no facto de, da própria morte, ninguém ter vindo refutar a sua irrevogabilidade.

O problema não está na morte, mas sim da adjectivação que se lhe dá. É uma característica humana qualificar e quantificar tudo, e mais alguma coisa, sem levar em consideração a etimologia das palavras.

Posto isto, e porque nada mais tenho a acrescentar sobre gramática fúnebre, resta-me mencionar outra certeza definitiva: tal como na vida, também na morte ninguém conseguiu inventar uma máquina do tempo. Se isso algum dia acontecer, pode ser que alguém nos venha esclarecer sobre o tema central desta missiva.

Expectante

Emanuel Lomelino

Velas perfumadas (excerto 3) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ah, leitor! Você consegue imaginar os olhos do pai saindo das órbitas? E deduzir tudo o que ele podia ter imaginado naquele segundo? Vou deixar por sua conta. O pai tomou fôlego como se fosse um super-herói, olhou para os filhos e usou da psicologia do reforço positivo (melhor chamar o método assim):
— Quem quer comer bolo de brigadeiro no café da manhã?

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Pensamentos literários 26 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

26

Há um fio condutor na disposição de cada palavra nas frases contundentes. O discurso, mesmo irreverente e atribulado, é explícito e não sobram dúvidas por esclarecer. Sente-se a força vital de cada verbo à medida que avançamos na leitura, sem problemas interpretativos. Tudo é cristalino na pureza dos sentidos, sem segundas intenções nem desejos ocultos.

Depois temos a descrição palpável dos cenários e personagens verosímeis até ao tutano, que nos entram corpo adentro, sem pedir licença, provocando-nos espasmos internos a cada reflexo espelhado de nós mesmos.

A trama injeta-se-nos na pele com toda a impetuosidade da sua essência aditiva e ficamos dependentes da curiosidade que nos assola e só conseguimos saciar juntando as peças do puzzle, eliminando as pontas soltas e desvendando todos os ângulos do enredo.

Depois de decifrada a última página, ficamos com a boca seca enquanto os níveis de adrenalina baixam à normalidade e desejamos ardentemente uma sequela ou que a próxima leitura nos faça sentir as mesmas arritmias. Assim são os bons livros. Aqueles que realmente valem a pena.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 27 de maio de 2025

Contos que nada contam 41 (Os tamancos da mãe) - Emanuel Lomelino

Os tamancos da mãe

Consciente de estar a anos-luz de poder ser considerada lerda, Anália sente que, por mais experiente que seja nas coisas da vida, não consegue desfazer-se daquela ínfima parte da sua personalidade que recusa abandonar a ingenuidade.

Embora a provecta idade a tenha feito ganhar um elevado grau de perspicácia, ela precisa sempre de mais do que nanossegundos para captar a totalidade dos intentos contidos em cada gesto, em cada atitude, em cada palavra.

Esta característica nunca a impediu de ver o mundo com as cores certas, apenas não permite que as enxergue no imediato. Mas Anália convive bem com isso e até diz, por graça, que o seu carácter vagabundeia entre a infância e a velhice.

Por conta desse traço de inocência, ela demorou algum tempo para concluir que a sensibilidade mesquinha, os pruridos precoces, os melindres desfasados e a falta de senso-comum não são padecimentos exclusivos das gerações deprimidas deste tempo. Há muitos adultos, alguns tão avançados na idade quanto ela, que foram contaminados pelo espírito afrontoso da futilidade leviana, agem tal qual adolescentes rebeldes em busca de protagonismo e fazem beicinho, ou birras monstruosas, quando as contrariedades da vida se atravessam no caminho.

Depois de chegar a esta conclusão irrefutável, Anália lembra-se, com frequência, dos tamancos da sua saudosa mãe.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 19 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

19

Já fui crédulo nas marés lunares, mas o voo dos pelicanos, em contraluz, revelou-se tão frouxo quanto as ondas que desmaiam nas areias costeiras.

Já acreditei na frescura primaveril, mas todas as migrações deixam um rastro de negritude e as savanas escondem melodias necrófagas.

Já confiei nas brisas refrescantes de verão, mas de todas as luzes nascem sombras que ocultam a natureza dos horizontes mais ambicionados.

Algures, nas inúmeras encruzilhadas percorridas, perdi a chave da candura e, pela primeira vez, enxerguei as verdadeiras cores da cobiça e do embuste.

Por mais que os abutres de ocasião abram as asas com sorrisos luminosos, há sempre notas de rodapé no final de cada página de gentileza.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 25 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 53 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

53

No resumo de mais um dia, sem brilho e vazio de sonhos, sobressaem as novas fissuras nas palmas das mãos e a rugosidade da pele indiferente a hidratações.

O crepúsculo é somente mais um virar de página e a lua apenas ilustra a negritude que paira, como ave de rapina, nesta rotina repetidamente sensaborona.

Entre tomos de coisa alguma, e outros nadas, sobrevivem rasuras de lucidez revoltosa, mas sobretudo apática.

Este cenário de apocalipse existencial é filho de um conformismo oxigenado pelas batalhas travadas em nome de crenças desfasadas, no tempo e espaço, como um ritual masoquista de louvor a um desenquadramento consciente e impregnado no âmago.

E com a nova alvorada reiniciam-se os passos flagelados e os voos espirais que justificam as ampulhetas.

EMANUEL LOMELINO

E a maldição (excerto 1) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Depois disso, Marta adentrou com uma segunda ação judicial e, desta vez, pretendia recobrar seus direitos e da filha do casal, sobre a casa. Esperava pelo menos a metade do valor da venda. Do contrário, pleitearia a anulação definitiva daquela negociação, realizada sem seu consentimento, e agravada pela adulteração de sua assinatura no recibo da transação anterior, que encontrou depois e fez a prova nos autos.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

sábado, 24 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 18 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

18

Dou por mim a pensar no quão estranho é a ideia de sermos ímpares no universo. De não haver outro lugar com o mesmo género de beleza natural que desfrutamos aqui, neste nosso planeta solar.

Quão bizarro é o conceito de habitarmos o único espaço com as características da Terra, sabendo que o cosmos é composto por uma infinitude de geologias.

As dúvidas e questionamentos atropelam-se na mente e, de hipótese em hipótese, o grau de aleatoriedade chega a parâmetros inenarráveis.

No meio das incertezas brota a esperança de que todo o conceito que envolve a nossa singularidade seja falho e, noutro qualquer ponto de qualquer galáxia, existam mais Terras habitadas, mas com melhor exploração das capacidades intelectuais.

Se for para ser igual nos defeitos, é mil vezes preferível sermos o único aborto cósmico.

EMANUEL LOMELINO

Velas perfumadas (excerto 2) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A mãe não respondeu, cerrou os olhos e os dentes, e o único movimento que fez foi o de aviãozinho até a boca da pequena. O pai compreendeu que, talvez, aquilo fosse um “não”. E, sim, leitor, os pais parecem não captar as mensagens por trás do silêncio, preferem que sejam verbalizadas para não correr o risco de entender errado. Em defesa às mães, entendo o cansaço de proferir qualquer palavra, desejando que o outro adivinhe seu desejo e suas necessidades.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA
 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 52 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

52

Embrulhado no desconforto agudo de mais uma manhã, observo o envelhecimento acelerado das mãos e sinto as correntes enfurecidas dos rios que pulsam em cada uma das veias, como houvesse uma urgência líquida a irrigar os novos desfiladeiros da pele.

Por momentos vejo a geografia dos poros e as contrações dermatológicas são proporcionais à assustadora dilatação obtusa dos dedos – gigantes cansados e doloridos – que gritam sensibilidade e incómodo.

Esfrego os mapas nascidos nas palmas, numa tentativa vã de acender novos focos de resistência, mas o calor emanado simplesmente serve para confirmar a perda de capacidade hermética causada pelas calosidades dos dias e pela erupção vulcânica das escaras que enfurecem à primeira fricção.

Neste processo descubro que as mãos já não servem para guardar segredos nem para fazer truques de magia.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 17 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

17

Dá-me graça assistir, desta poltrona sem foco, à modéstia exibicionista de alguns pseudoautores que, com penas sem tinta e lavras emprestadas, passam por ícones imaculados e assertivos.

A história repete-se, em círculos herméticos, com discursos de ocasião, cheios de frases batidas em castelo e clichês feitos por encomenda.

Por muito penoso que seja, não sobra alternativa que não passe por parabenizar, estes arautos da comunicação, pela ousadia e confiança com que fabricam os seus currículos, repletos de valências nuas de significado e importância, mas que, aos olhos dos beijadores de rabos, chegam como bacharelatos.

Há que dar mérito a quem, apesar dos engodos e falinhas mansas, enchem salas de iludidos e os bolsos de celebridade.

Tudo o resto é rodapé de outras prosas sem holofotes.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 51 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

51

As palavras soam a pombas brancas quando flutuam no encanto do olhar lacrimejante. Um arco-íris espalha a magia colorida do sentimento fervente. Soltam-se odes melodiosas, qual sinfonia celestial. O tempo desacelera. O entorno deixa de existir. Os raios de sol ocultam-se. O mundo para.

As preces vagueiam entre o pedido de absolvição e a necessidade de bênção, como se o clamor das frases feitas tivesse o poder de apagar memórias, escaras e elos quebrados. Nas sombras, há um desfilar de dedos e teias de aranha. A presença obscura de arrelias, vacuidade e déjà vu são parcelas de uma equação com resultado previsível. Há o afloramento de histórias caducas que ressuscitam futilidades e destapam embalagens vazias. Depois temos as fábulas de um só sentido – sem sentido – com moral desenquadrada da realidade.

O céu fica cinzento e verte, gota a gota, cada nota de um fado enviesado e sem remorso, como fosse conduzido na plenitude de uma embriaguez vadia. Calam-se as guitarras. Mutam-se as vozes. Silencia-se a vontade.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 20 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 50 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

50

Somos seres de humores e, por isso, cada momento é irrepetível, porque específico. Por mais que se recriem ambientes e condições, dificilmente conseguimos repetir sensações.

À partida, esta constatação parece inabalável pelas verdades que encerra. No entanto, prestando atenção, verificamos que no seu conteúdo esconde-se um paradoxo.

Se, por um lado, é muito difícil que as nossas acções resultem sempre da mesma forma, levando-nos a vivenciar o mesmo grau de euforia, por outro, como se explica que a insistência numa determinada atitude resulte sempre na mesma insatisfação?

Tendo refletido neste paradoxo, cheguei a uma única conclusão: a tese da irrepetibilidade só é aplicável às boas sensações. Nas nefastas, a repetição resultará sempre em algo negativo. O mesmo é dizer que as boas sensações são uma paleta muita vasta e variável, enquanto um mau momento será sempre um mau momento.

EMANUEL LOMELINO

A criação (excerto 4) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Se não a segurassem, desabaria ali mesmo, em cima dos vasos enfileirados. Por um momento, contou cinco ou seis plantinhas nas bacias e, de repente, se multiplicavam em quase cem.
Realmente não estava bem, se convenceu ao perceber que a esposa do comprador é quem segurava a filha. Pensou ter desmaiado, e por isso socorreram a menina. Achou melhor aguardar o sangue esfriar, tomar mais um copo com água, e aceitar o café, como aconselhavam os moradores.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 49 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

49

Apesar dos queixumes – porque os gritos, mesmo em silêncio, têm o condão de aliviar a carga negativa que transportamos nos ombros – descubro-me imune aos contratempos da vida.

A apatia, a inércia, o modo impassível, que me outorgam, como etiquetas tatuadas, revelam o quão falsos são os diagnósticos quando sou analisado com critérios que nunca forma meus e pelos quais nunca me regi.

A vida ensinou-me a não criar expectativas sobre ela própria e a seguir sempre em frente, independentemente das circunstâncias e das consequências, com a cabeça erguida e sem olhar para o que foi, o que teria sido, o que podia ser, ou, para aquilo que será.

A lição maior é simples de entender. A vida jamais será uma conjugação verbal e deve ser vivida, apenas e só, pelo que é.

EMANUEL LOMELINO

Velas perfumadas (excerto 1) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O pai chegou e viu a mãe de camisola, com as pernas à mostra, mas se sentiu duvidoso se tinha entendido o sinal correto: camisola, pernas, pescoço convidando-o para algo a mais em oposição aos cabelos assanhados, olheiras e uma expressão cansada. Talvez você, leitor, se pergunte como é possível alguma conexão sexual quando se tem dois filhos pequenos imparáveis, detentores de toda energia dos pais…

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

domingo, 18 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 48 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

48

É triste viver num mundo que nos pinta com a tinta de deturpação, dando à essência de cada um tonalidades disformes fora de contexto.

Quem for organizado é taxado de obsessivo, quem não for é desleixado. Aqueles que meditam e refletem antes de agirem são perversos ou desconfiados, já quem age por impulso é irresponsável. Os que dão uso à disciplina vivem presos na rotina, os que prescindem dela são rebeldes. Os assíduos e pontuais são chamados de rígidos ou severos, quem falta ou chega atrasado é libertino negligente. Os introvertidos são vistos como antissociais, os extrovertidos são chamados de loucos.

Mas o mais inquietante é ver que a maioria não consegue viver a sua essência e tem os armários repletos de máscaras para usar de acordo com as circunstâncias.

Depois estranham aqueles que se afastam e viram eremitas!

EMANUEL LOMELINO

sábado, 17 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 47 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

47

A praia esvazia-se de olhos postos nas pranchas que deslizam na ondulação costeira, enquanto, na barra, as traineiras são preparadas para a faina, assim que terminar o pôr-do-sol.

As mulheres de negro aglomeram-se no pontão para sacudir os lenços brancos, na angústia dos céus carregados, na incerteza eterna dos ventos e na esperança do retorno breve.

O farol ilumina a liquidez da noite, mas o horizonte fica escondido entre a penumbra e a maresia. O ambiente sepulcral só não é total porque as águas martelam a vulnerabilidade das embarcações ao ritmo das preces afãs.

Às ondas do mar pouco importa se os grãos de areia fina já foram, um dia, seixos lisos ou se as gaivotas poisam para palitar os bicos nas conchas abandonadas. Tampouco querem saber se as estrelas-do-mar são incendiárias jurássicas a preparar terreno para outras espécies ou se, nessa noite, as redes serão capazes de expulsar a fome.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 46 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

46

Passa mais um dia de vento no estendal e os pombos, quais pintores alucinados, pincelam a roupa lavada de fresco com as suas incontinências tão pérfidas quanto certeiras.

Olho o resultado Van Goghiano e penso estar diante de uma metáfora pulsante e tridimensional da existência – talvez a minha, talvez a de muita outra gente.

Recolho aquelas artes abstratas sem saber se devo reciclar o asseio pós-lavagem ou emoldurar tudo para fazer uma exposição, como aquela que vi, na minha adolescência, num jardim de Óbidos, e reclamar para mim a autoria. Não são muito diferentes.

Mas a dúvida é um fragmento temporal que se extingue quando penso no que iria gastar nos caixilhos. Prefiro a exorbitância do detergente – como está caro! – e desafiar a sorte reiniciando o programa de limpeza.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 45 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

45

Tudo começou com o trovejar dos bombos seguido de um choro colectivo dos violinos, primeiro sussurrado, depois bradado. Só depois o clarinete buzinou uma passagem de nível e as colinas deixaram-se florir numa sinfonia de cores exóticas.

Houve uma vertigem zumbida que polinizou um dente-de-leão e as glicínias olharam o céu em prece pedindo, aos deuses florais, permissão para o regresso dos colibris.

A mariposa sacudiu a transparência das asas para receber a simpatia da brisa e serpentear entre as peónias bailarinas.

As campainhas tocaram triângulos a compasso e o salgueiro-chorão aproximou-se do rio para ver, mais próximo, a família de carpas-dragão que manchava a serenidade cristalina das águas.

O pica-pau trauteou morse no tronco rijo de uma laranjeira e a orquestra edílica deu lugar ao silêncio absoluto porque apareceu uma mochila a empurrar um ser bípede que estava noutra sintonia e decapitava margaridas.

EMANUEL LOMELINO

A criação (excerto 3) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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No calor da paixão e na espera do rebento, René também se apressou em arrumar algum dinheiro e negociou, com ela, uma casa em construção, rebocada, sobre um lote de terras. Compraram a preço comum para aquele bairro distante e recém-formado por invasões. Adquiriram a posse, e Marta projetou primeiro o quarto da criança, que chegaria nos próximos meses.
Comprou uma banheira de plástico, pacotes de fraldas, e outros produtos de promoção na seção de bebê. Ganhou um quadro azul com imagem de querubins, e, das suas irmãs, algumas peças de seus recém-nascidos, seminovas.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA