sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Pensamentos literários 18 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

18

Ler um bom livro é meio caminho andado para a descoberta e aprendizagem, mas reler algumas obras transcende esse horizonte e, não raras vezes, leva-nos a um entendimento mais amplo e a novas revelações.

Isso acontece por uma razão muito simples, nem sempre presente no nosso consciente… a cada livro lido transformamo-nos em leitores diferentes, porque a informação absorvida é um complemento intelectual que nos ajuda a melhorar a capacidade de raciocínio e percepção.

Se, a este facto, juntarmos a nossa maturação, enquanto indivíduos, fica óbvio que uma releitura será sempre diferente do primeiro contacto com o livro. Da mesma forma que uma terceira leitura produzirá entendimentos distintos. E assim por diante.

Neste contexto, a última releitura que fiz, de um texto estoico, proporcionou-me uma epifania, que me surpreendeu por só agora, nesta fase adiantada da vida, ter percebido – antes tarde que nunca – sobre o quão estreita é a linha que separa a filosofia da psicologia.

Que me perdoem, Freud e Lobo Antunes!

EMANUEL LOMELINO

Mistério no Minho (excerto) - Clarissa Machado

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Tão pequena, a Maria, com seus cabelos negros compridos envoltos no tradicional lenço de algodão cor de ouro, e tão adorável com seu avental de linho xadrez onde se via um enorme Galinho de Barcelos bem no meio. Tão singelinha, essa Maria! Sempre à janela, a estender peças de roupas. Ah, Maria, com seus olhinhos rasos de saudade… Sonhava navios, mares e cheiros de espuma. Histórias da terra e do mar. Fado que não enfada! Saudade, saudade, saudade - palavra mais portuguesa não há!

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - COLETÂNEA - IN-FINITA

Prisioneira em liberdade (excerto 24) - Maria Antonieta Oliveira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

O que havia de fazer um homem que desde os nove anos trabalhava? Fácil, a seguir ao pequeno almoço ia para a loja da D. Fernanda onde estava até hora do almoço e quando chegava a casa já estava bêbado, não chateava ninguém, almoçava, sentava-se no sofá adormecia e acordava quando lhe chegava a fome para o lanche, de seguida, lá ia ele até à loja da D. Fernanda e acontecia o mesmo que tinha feito pela manhã, até ao dia em que entrou em coma, coma alcoólico, foi parar ao Hospital de Santa Maria, a mãe a filha e o genro, foram avisados e foram lá ter.

EM - PRISIONEIRA EM LIBERDADE - MARIA ANTONIETA OLIVEIRA - IN-FINITA

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 27 - Emanuel Lomelino

13-01-2024

É impressionante como a humanidade tende a complicar a sua essência ao mesmo tempo que admite os benefícios do simples.

A toda a hora ouvem-se vozes a reclamar, por tudo e por nada, numa algazarra, por vezes colectiva, contudo parca de sentido ou em sentido contrário ao pensamento lógico.

A todo o momento, há um espírito de contestação que desce sobre alguém e logo todos se transformam em seres iluminados, sem sequer saberem o que contestam.

Cada vez mais abunda o seguidismo bacoco, que nada acrescenta para além de estupidificação.

Há uma cultura de preguiça, que não é compatível com os brados queixosos, mas que emerge como o valor moral mais alto e assertivo.

Há uma inversão na marcha da humanidade e parece que ninguém faz caso. O importante é saber o supérfluo e ter os olhos colados nas telas luminosas dos aparelhos portáteis e que se lixem os outros (inclusive aqueles que estão sentados à mesma mesa).

A humanidade reclama mais humanismo, no entanto, os passos a dar nesse sentido têm de ser dados pelos outros porque cada um está com falta de tempo e com coisas mais importantes em mente.

Qual a lógica disso? Quão cega está a humanidade para não ver o óbvio?

EMANUEL LOMELINO

A melancolia como característica (excerto) - Flávio Ulhoa Coelho

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Conexões Atlânticas neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Não é novidade a ninguém a impressionante lista de livros que o Thio Therezo publicou ao longo de sua vida e nem a extensão dos assuntos abordados e profundamente estudados por ele.
Há, porém, um livro em particular, chamado “A melancolia como característica”, que se tornou uma referência imprescindível na área de análise dos sentimentos. Esse é definitivamente o livro, aquele que qualquer investigador da área gostaria de ter escrito, além, é claro, de ser o livro preferido do Thio. Tal publicação, no entanto, não fez do Thio um cara rico, como só se poderia esperar dado o volume de vendas, tanto dos livros impressos quanto de e-books. É que ao assinar o famoso “contrato de direitos e deveres” com a editora (direitos dela e deveres dele), nosso tio não se atentou às letrinhas minúsculas que o lesaram de forma definitiva nos seus direitos autorais.
Paciência.

EM - CONEXÕES ATLÂNTICAS IX - COLETÂNEA - IN-FINITA

A dúvida (excerto 18) - Zélia Alves

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Mas quem te disse que quero seguir em frente? Depois do que te fiz, paguei com mau viver com o Feliciano e fiz a vida num inferno à Joana. Ela sempre foi bem formada e meiga que nem tu, e até mesmo isso era uma penalização para mim. Entendi sempre a vossa forma pacifista de estar na vida, como um desinteresse pela minha pessoa. Era como se eu “destoasse” na vossa vida. Espero que tenhas sido feliz com a tua outra companheira. Merecias!

EM - A DÚVIDA - ZÉLIA ALVES - IN-FINITA

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Contos que nada contam 38 (No acampamento sem-abrigo) - Emanuel Lomelino

No acampamento sem-abrigo

Leónidas respirou fundo para aplacar o seu estado de fúria, por ter sido obrigado a faltar ao trabalho, para uma reunião com o diretor de turma do seu filho.

Apesar de ser um aluno exemplar e ter excelentes notas, o professor informou que, há algumas semanas, após as aulas, Lúcio não tomava o caminho de casa e dirigia-se para o acampamento de sem-abrigos, que ficava no outro extremo da cidade. Perante o facto, sentiu-se na obrigação de alertar o progenitor.

Com o intuito de não ser precipitado no julgamento e saciar a curiosidade que aquela revelação havia suscitado, Leónidas decidiu investigar mais a fundo as actividades do filho. Esperou o fim das aulas e seguiu-o. Tal como o professor tinha dito, Lúcio não foi direto para casa e encaminhou-se para o lado oposto.

Chegado ao acampamento, Leónidas viu como algumas crianças maltrapilhas rodearam o seu filho e o acompanharam para o interior de uma tenda, tão miserável quanto eles.

Quando tentou aproximar-se para descobrir o que estava a acontecer, foi interpelado por um sujeito. O vozeirão do homem suou como um alarme e, rapidamente, Leónidas viu-se rodeado por alguns sem-abrigo.

Apesar da fúria, mas em inferioridade, explicou a sua presença naquele local e foi surpreendido por uma clamorosa manifestação de reconhecimento por ser pai de quem era.

Leónidas perdeu o soldo de um dia de trabalho, mas ganhou a consciência de ter um filho que, de forma altruísta, sigilosa e desinteressada, passava uma hora do seu dia a ensinar crianças desfavorecidas que não tinham possibilidades de frequentar a escola.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Lomelinices 91 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

91

Durante anos defendi uma norma de vida que consistia em ouvir o dobro daquilo que falava, usando como argumento o facto de termos dois ouvidos e somente uma boca. O conceito é básico, quase pueril, no entanto, é dotado de uma lógica, quase, irrepreensível.

Por ter uma mente inquisitiva, comecei a pensar numa forma de ultrapassar o problema que o advérbio de modo “quase” colocava. Ele sugere falibilidade e também é lógico, porquanto, numa conversa entre duas pessoas, é impossível que ambas escutem o dobro do que falam.

Como resolver este paradoxo?

A solução parece ainda mais infantil ou rebuscada, mas a própria natureza deu-nos as pistas através da anatomia. As orelhas são laterais e simétricas, e isto significa que o importante não é ouvir em dobro, mas sim escutar de modo harmonioso.

Nesta perspectiva cheguei à conclusão de que o conceito inicial era falho e aquele que passei a usar traduz-se numa palavra aplicável à forma como se ouve (equilíbrio) e outra ao que se fala (temperança). E estes dois substantivos são indissociáveis.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Pensamentos literários 17 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

17

Existem tantos predicados nascidos da leitura que, por mais qualificantes que possamos encontrar, nada adjectiva melhor a leitura do que a palavra “edificar”.

Com maior ou menor grau; com mais ou menos intensidade, cada livro engrandece o leitor a diferentes níveis.

Sim, ler edifica o individuo. E o melhor exemplo dessa realidade incontornável revela-se-nos quando damos conta de estarmos a reflectir sobre o que acabámos de ler.

Essas reflexões, cujo propósito, ou utilidade, nunca devem ser menosprezadas, sintetizam-se numa frase, que Carl Jung usou num outro contexto, mas que se aplica na perfeição:

Quem procura, fora de si, sonha, quem procura, dentro de si, desperta.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 6 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

6

Não importam as estações. Todos os dias, de uma semente-ideia, que rasga a membrana plasmática, germinam palavras, quais rebentos de engenho, com esperança de se transformarem em frutos literários.

Os estágios de crescimento correspondem ao ciclo natural da vida, desde o nascimento até ao amadurecimento.

É um processo normal, contudo, de imensurável aleatoriedade temática. Mesmo assim, não dispensa polonização e terra fértil.

Depois da ceifa, segados os caules mais robustos, peneira-se o trigo do joio e separa-se cada grão para o respectivo recipiente.

Uns vão para a mó, outros para a sequeiro, e os restantes ficam armazenados para que, naqueles momentos de colheita fraca, seja possível manter o estro gordo.

EMANUEL LOMELINO

O Pintor (excerto) - Ester Liñares

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Conexões Atlânticas neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Miguel vivia numa pequena cidade costeira e passava os dias a pintar o mar, a praia, as paisagens ao seu redor, mas, por dentro, sentia-se vazio, incompleto. Sempre acreditara que a verdadeira inspiração vinha do amor, mas nunca o tinha encontrado, apesar das inúmeras amizades que fora tendo ao longo da vida.
Mas um dia, há sempre um dia, ao entardecer, enquanto pintava na praia, viu uma jovem que andava pela areia a apanhar conchas. A maré estava vazia e era uma altura ótima para as apanhar. A luz do sol, que já ia baixando, refletia-se nos cabelos acastanhados, e Miguel reparou nela. Não conseguiu resistir e começou a desenhá-la.
Maria tinha chegado no dia anterior, estava de férias em casa dos avós, como era hábito, e, por curiosidade, parou perto dele. E ficou ali, surpreendida, quando percebeu que era o motivo do quadro.

EM - CONEXÕES ATLÂNTICAS IX - COLETÂNEA - IN-FINITA

Prisioneira em liberdade (excerto 23) - Maria Antonieta Oliveira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Em finais de 2018 é convidada para coordenar colecções de vários autores com livros individuais, de poesia, de prosa, de contos e até de romance. Ora bem, o que lhe pareceu ser muito bom, para ocupar o tempo, para ajudar quem nunca tinha publicado um livro, ou até quem já o tinha feito, mas era mais um. Foi-o até determinado ponto.

EM - PRISIONEIRA EM LIBERDADE - MARIA ANTONIETA OLIVEIRA - IN-FINITA

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Devaneios sarcásticos 12 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

12

Muito por conta do gene mais decisivo do estro e por não conceber criação sem literacia, imponho-me absorver o máximo de conhecimento sobre matérias essenciais, mesmo daquelas em que não me revejo, mas que podem aportar elementos teóricos úteis ao meu ofício, até por oposição.

Esta busca por entendimento mais vasto em géneros, estilos e propostas literárias distintas, que deveria ser transversal a todo o universo da escrita, proporciona-me muitos momentos de reflexão interessante.

Neste contexto, e apesar de perceber os conceitos base do concretismo, tenho uma dúvida que só pode ser esclarecida por quem navega neste movimento literário.

Como se conseguem ler textos concretistas a um cego, de forma que os elementos espaciais não sejam omitidos, ou prejudicados por descrições intermediárias?

EMANUEL LOMELINO

Sacrifício - Cecília Dias Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Com sacrifício eu criei meus três (3) filhos, trabalhei anos a fio, do nascer ao pôr do sol!
Com paciência e muitas alegrias, venci o que para muitos seria impossível, na verdade eu venci sozinha.
Com sacrifício lutei tanto, nesta vida, eu hoje chamo-lhe dádiva minha, agradeço a cada segundo, tudo que conquistei, e em nada meto uma vírgula.
Com sacrifício venci doença, e na minha crença sempre consegui.
Com sacrifício levei me a remar, quantas vezes não consegui estar ali ou no seguinte barco apanhar, mal sabia remar, levei onde poderia levar, mas em qualquer porto deixei estar o cartão a picar.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - COLETÂNEA - IN-FINITA

A dúvida (excerto 17) - Zélia Alves

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Se dúvidas tivera, elas desvaneceram-se e foi naquele momento que me arrependi amargamente. Mas compreendi que era tarde demais. Arranjaste a tua roupa e saíste de casa nesse mesmo momento. Perante o meu adultério e tendo percebido o erro em que caíra, cometi um outro maior ainda: Tornei-me uma mulher amarga para com a nossa filha e para com todo o mundo. Foi como se a tua perda não fosse culpa minha e eu quisesse vingar-me em tudo e em todos.

EM - A DÚVIDA - ZÉLIA ALVES - IN-FINITA

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Devaneios sarcásticos 11 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

11

Desde a origem (nascimento), o humano tenta encontrar o seu propósito na vida, porque é absurdo a vida não ter um propósito. No entanto, pensando que todas as vidas fluem para a morte, é um absurdo que o propósito da vida conduza à morte. Mais absurdo é pensar em procurar um propósito para a vida sabendo que, encontrando ou não um propósito, tudo tem o mesmo fim: a morte.

Seguindo essa linha de pensamento, chegamos à conclusão de que o propósito da vida é a própria morte.

Contudo, na discussão deste tema, muitos alegam que o propósito da vida não é a morte, mas sim prolongar a própria vida, através da descendência. De certa forma arranja-se um sentido, mas nesse caso surgem outras questões: Sendo esse o propósito da vida, como se explica a existência de seres incapazes de procriar? Qual o propósito de vida daqueles que não podem criar descendência? A existência de procriadores e não-procriadores não significa, por si só, que o propósito da vida não é prolongar a vida?

Se, independentemente das respostas, deduzirmos que esta segunda linha de raciocínio pode estar correcta, embora seja um absurdo pensar que o propósito de vida só se aplica a alguns, então podemos concluir que o propósito de vida deambula entre o absurdo e o trágico. E, dos dois, não sei qual é pior.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 26 - Emanuel Lomelino

30-12-2023

O conceito de liberdade tem sido discutido, até à exaustão, pelos pensadores mais relevantes, mas estamos bem longe de atingir o consenso.

Há quem defenda que a liberdade existe a partir do momento em que estamos na presença do uso de livre-arbítrio. Outros defendem que a liberdade é uma ilusão porque as nossas decisões são sempre condicionadas por noções de “bem” e “mal”.

O problema é que ambas as ideias também introduzem na discussão o factor ética, que consegue ser um conceito ainda mais divergente.

Partindo do pressuposto que a liberdade de cada um termina no exacto ponto onde começa a liberdade do outro, façamos um exercício.

Imaginemos que estamos num autocarro e entra alguém a escutar música em alto som. Todos os passageiros têm o direito de não serem incomodados, no entanto, aquele que houve música tem o direito de fazê-lo.

Perante este cenário, e baseando-nos nas duas ideias expressas anteriormente, as perguntas imediatas são:

1 – Onde está o limite do livre-arbítrio de cada um?

2 – Que valor ético é aplicável neste caso e quem o determina?

3 – Que solução podemos encontrar para que, no exemplo dado, sejam respeitadas as liberdades de todos?

Confesso que não sei a resposta a nenhuma das questões.

Aquilo que sei é que, enquanto não se chegar a um consenso generalizado, continuaremos a ver a liberdade ser confundida com libertinagem.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Devaneios sarcásticos 10 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

10

As guerras têm, por génese, motivações que, ao contrário do, publicamente, apregoado, são sempre de interesse particular e nunca colectivo. Foi assim no passado, é assim no presente, e será assim no futuro. Perante conflitos armados, as sociedades manifestam-se ruidosamente, durante algum tempo para, pouco a pouco, deixarem esmorecer a indignação até ficarem conformadas e, por fim, indiferentes, desde que seja longe das suas fronteiras.

Mas tudo poderia ser diferente se, em vez de solidariedade em garrafas de água e mantas quentes, aproveitássemos para, satisfazendo o apetite moderno pelos “reality shows” e com as ferramentas que a internet dispõe, criar uma superliga de combates, corpo a corpo, entre os líderes mundiais em beligerância. Vendiam-se os direitos de transmissão para as plataformas de “streaming”, faziam-se contratos de patrocínio com as maiores marcas desportivas e automóveis, e com as casas de apostas, criava-se todo um novo negócio em torno dos eventos e, cereja no topo do bolo, conseguia-se que os níveis de abstenção, nas eleições, diminuíssem drasticamente. Bem vistas as coisas, quem não iria, de bom grado, escolher o representante do seu país para essa competição?

EMANUEL LOMELINO

Já ninguém escreve cartas (excerto) - Carmo Marques

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Antigamente, as cartas eram uma das formas mais usuais para manter as relações entre pessoas, enganar saudades, namorar, tratar de negócios, acordos ou quaisquer outros assuntos. O carteiro, seu portador, palmilhava estradas, ruas, becos e travessas, carregando ao ombro o enorme malão de couro duro, onde, ao balanço do ritmo dos seus passos, embalava as boas e más notícias. Dialogando com cães ou fugindo deles, à chuva e ao sol, caminhava até aos lugarejos mais recônditos, onde restavam apenas algumas casinhas modestas, mas cujos moradores ele bem conhecia.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - COLETÂNEA - IN-FINITA

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Lomelinices 90 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

90

Passam os dias (sempre iguais) e cada um é uma vertigem de tempo que me afasta do mundo que nunca foi meu.

Eu, o único ser mutável nesta história, enfermo de saber-me deslocado, ora abraço ou rechaço a esquizofrenia lúcida que guia todos os meus passos, todos os meus pensamentos, todas as minhas angústias, que são nada quando comparadas com o mal maior.

O sol nasce todas as manhãs sem remorso nem infelicidade por ser o mesmo que já foi e igual ao que será. Já eu, que sei o meu amanhã, mesmo sem data precisa, jamais saberei o que fui – ou poderia ter sido – no tempo que me correspondia.

Esta dúvida, que deriva de uma certeza cada vez mais sentida como absoluta, é a bagagem que carregarei até ao final dos dias (sempre iguais), composta por baús de frustração, conformismo e desconsolo.

Pior do que estar encerrado num espírito esquizofrénico é ter consciência dessa fatalidade.

EMANUEL LOMELINO

Prisioneira em liberdade (excerto 22) - Maria Antonieta Oliveira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Neste mesmo ano e com a sua carrinha Citroen Jumper de caixa alta, ela e o marido, sempre, ela e o marido, fizeram a primeira semana de férias com um dos netos, o outro ainda era muito pequenino, numa praia já conhecida deles, Vila Nova de Milfontes. Em 2014 repetiram a dose, uma semaninha em Vila Nova de Milfontes com o neto mais velho. Ele desde bebé que estava habituado a estar com os avós, portanto, era fácil tanto para ele como para com os avós as férias juntos sem os pais.

EM - PRISIONEIRA EM LIBERDADE - MARIA ANTONIETA OLIVEIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 5 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

5

Quem estudou ciências humanas, ou humanidades como se dizia nos anos oitenta, deve lembrar-se, certamente, que a maior dificuldade dos professores era fazer com que os alunos conseguissem interpretar textos e identificar os elementos estilísticos incluídos. Eram aulas e aulas dedicadas a esta matéria e, na globalidade, os resultados não eram dos melhores e ficavam aquém do razoável, porque na cabeça de alguns alunos pairava a eterna questão: mas isto serve para quê?

Ao contrário do que manda a regra, a esta pergunta, feita no presente do indicativo, a resposta mais lata tem de ser dada no pretérito imperfeito: isso serviria para que existisse maior compreensão das mensagens, não acontecessem erros de avaliação, mal-entendidos e, cerrem-se os dentes, não proliferasse uma pobreza franciscana ao nível da criação literária.

Observando, com olhos de ver, o universo da escrita (mas não só), fica claro que essa dificuldade docente nunca foi ultrapassada, tal a profusão de equívocos linguísticos e interpretativos.

Essa incapacidade de entendimento e identificação de figuras de linguagem, sejam semânticas, sintáticas, ou outras, é tão perceptível quanto triste e, sem o risco de incorrer em exageros, até faz corar as resmas de papel rasurado.

Posto isto, garanto que são menos aqueles que repararam no litote que precedeu o eufemismo, lá atrás, no primeiro parágrafo, do que quem atentou na personificação usada no anterior, ou em outros recursos distribuídos entre ambos.

À pergunta: isto serve para quê? A minha resposta concisa é: para eu fazer um exercício de escrita usando o maior número possível de figuras de estilo e ultrapassar, por grande margem, o limite de espaço previsto para este texto.

EMANUEL LOMELINO

A dúvida (excerto 16) - Zélia Alves

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Desculpa estar a trazer-te à memória flashes que te poderão trazer, de novo, o sofrimento, mas preciso limpar ou tentar limpar a minha Alma. O teu olhar quando nos viste na cama é uma reação que guardarei para sempre na minha memória. Naquele momento, ainda que não tenhas dito nada, vi no teu olhar o quanto me amavas e o quanto eu tinha sido injusta para contigo e me tinha tornado indigna para com a tua pessoa.

EM - A DÚVIDA - ZÉLIA ALVES - IN-FINITA

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 4 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

4

Quer queira ou não, para executar os desafios de escrita que me coloco, primeiro tenho de encontrar um tema e, por isso, algumas vezes, parece que estou a repetir discursos, ou a reforçar um ponto de vista.

A bem da verdade, fica difícil separar uma coisa da outra e não vejo razão que me impeça de, através destes treinos de criação, dissertar sobre os meus conceitos e ideias, ou fazer críticas e reparos ao que me aprouver.

De certa forma, fazê-lo é aumentar o desafio, criando uma espécie de “dois em um”, com a adição de novos problemas a pedirem solução. Neste caso, ser fiel e coerente em cada assunto abordado, defender todas as opiniões com o máximo de clareza sem correr o risco de ferir a lógica de uma ideia, e chegar ao final de um texto com a sensação de dever cumprido e agradado com o resultado.

Usando este texto como exemplo, dissertei sobre juntar o útil, dos desafios, ao agradável, de escrever sobre a forma como os executo, mantendo o foco num propósito concreto: não usar palavras com mais de nove letras.

EMANUEL LOMELINO