terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Inácio – MARIA APARECIDA SILVA RIBEIRO

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Inácio era um sujeito fácil. Difícil contornar a obviedade da rima e inútil buscar precisão maior em palavra outra que descrevesse Inácio, o extrema e incomodamente fácil. Gostava de se expressar em termos simples e tão clara sua argumentação que os colegas de Departamento o taxavam su.per.fi.ci.al. Mas Inácio tinha um dom, desconhecido da maioria dos que com ele conviviam: as coisas e pessoas se lhe projetavam com uma nitidez de doer nas vistas. Enxergava através da mais opaca das camadas de dissimulação humana. Farejava o falseio das formas a quilômetros de distância. Talvez, por isso, nunca estivera feliz por mais de trinta minutos.
Em um dia de muita solidão e desassossego, Inácio conheceu Manu. Já preparado para a desilusão habitual, não lhe dirigiu mais do que um olhar atravessado. Mas a nesga que contemplou da imagem longilínea de Manu fez Inácio estremecer. E embalado pelo sibilar de suas consoantes mornas, desejou – pela primeira vez na vida – não enxergar nada. Só ouvir e sucumbir. Deleite de sereia. Sentimento estúpido. Inácio adotou venda nos olhos como traje obrigatório nos encontros com Manu.
Fêmea única de uma família de machos, Manuela tinha no nome o Manuel que todos, sabedores do gênero prevalente, esperavam e, de antemão, batizaram. Caçulinha de longos cílios e pernas fortes, não tivera da vida os mimos que eram de se supor. Cedo aprendera que, para sobreviver entre homens, tinha de fazer brotar na cabeça o pênis que lhe faltava entre pernas. Manuela se virava. Do amor não conheceu mais que carícias roubadas, o apalpar compulsório dos velhos da família. As vertigens de curta duração. Um ou outro garoto na escola, mais aprendizes que. Manuela não era romântica. Tampouco tempo havia para o ser. Determinada a ganhar logo a vida, não iria dar de graça o que a natureza lhe cobrava exorbitâncias. Recendendo a mulher faminta, saiu de casa deixando à mostra: joelhos e contraltos.
No parque úmido de fim de tarde, Manu tomou assento no banco de pedra, o mesmo em que o funcionário público costumava pastar sozinho o sanduíche frio. Há tempos, já decidira: o salário certo e sabido daquele moço feio, de calças puídas e alimentação frugal, nas bem calculadas mãos de Manu, dava e sobrava para suas despesas mais regulares. Para todas as outras, golpes na hora inventados. Não seria difícil apossar-se de um coração mal nutrido, cujo dono perdia tanto tempo contemplando um improvável estado de felicidade íntima. Manuela viraria a Manu de seus sonhos míopes, mostrando-lhe apenas dotes correspondentes aos apetites inconfessos do moço. Os próximos meses estando, assim, garantidos. Ou, pelo menos, até que sua vida se estabilizasse, de fato; depois de abandonar aquela corja consanguínea que a natureza lhe resolvera dar por família.
Pouco tempo passado e as palavras de Inácio já ganhavam rebuscamento vazio, abundância lírica. Seu discurso já não fazia sentido. Ou, sentidos múltiplos, jazia entre o nada insatisfeito e o pleno de tudo. Inácio gozava e agonizava. Era o fim do sujeito fácil. Manu, senhora dos sortilégios, tirara de Inácio a única possibilidade de uma vida sem sustos.

EM - VERSO & PROSA - COLECTÃNEA - IN-FINITA

1 comentário:

Toca a falar disso