domingo, 30 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 355 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

355

A leitura, para além de ser uma actividade lúdica, em que, querendo, se aprende bastante, é um bálsamo que despenteia a preguiça de alguns neurónios adormecidos pelas desventuras das horas-trolhas e regenera as cores que se esbatem na pobreza do dia-a-dia.

Mas nem tudo são flores – pelo menos para mim – porquanto, algumas vezes (talvez demasiadas) dou por mim a barafustar com as páginas de um ensaio ou dissertação pelo uso abusivo de palavras que, apesar de lhes conhecer o significado, me travam a língua e desviam o foco.

Entre outras, porque existem muitas mais, dou como exemplo “exegese” e “procrastinar”, duas palavras que dificilmente escutamos saídas da boca de oradores (incluída a minha), mas usadas com frequência em textos críticos e filosóficos, que têm o condão de prejudicar a fluidez das minhas leituras, pela sequência silábica que encerram.

Nessas alturas, emerge em mim uma vertigem de pensamentos e, para lá da revolta pela consciência do quão fraca a minha dicção pode revelar-se, não consigo evitar lembrar-me de alguns autores, da nossa praça de insignificância, que utilizam palavras semelhantes nos seus textos quando oralmente, mal sabem pronunciar “mortadela”, “candelabro”, “álcool” ou “otorrino”.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 29 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 354 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

354

Compreendendo a metafísica como ciência que é, existem aspectos mundanos em que a dispenso, por inteiro, ou pelo menos na sua utilidade momentânea, porque nem todos os acontecimentos do dia-a-dia merecem reflexões profundas e detalhadas. Na maioria das vezes só preciso saber o facto, sem me deter nas causas, propósitos ou efeitos e consequências.

Posso sentir o aroma de um limoeiro, desfrutar da beleza natural de um pôr-do-sol ou deliciar-me com o chilrear dos pintassilgos, sem necessitar de justificativas elaboradas sobre os diferentes níveis de prazer. Basta-me o momento. O mesmo é aplicável a uma martelada no dedo, a uma picada de mosquito ou ao som de papel a rasgar.

Quem logra transpor este modo de estar (sem questionamentos) para situações consideradas mais complexas, como o relacionamento com os outros (plural porque são múltiplas as nuances) tem mais possibilidades de evitar dissabores. Mas deve-se ter em atenção que, aos olhos dos demais, este género de atitude nunca é bem-visto, antes é catalogado com os sentidos mais pejorativos dos adjectivos (soberba, altivez, frieza, orgulho, arrogância, egocentrismo…)

E raios partam a metafísica que, até num texto sobre a sua prescindibilidade, faz questão de marcar presença.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 353 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

353

Circula entre os homens uma enfermidade mais nefasta do que qualquer vírus (natural ou artificial). A sede de protagonismo acoplada à vaidade de egos exacerbados. É uma espécie de doença crónica que evolui em proporção ao mediatismo que se lhes outorga e que é tremendamente difícil de combater, mais ainda quando os enfermos se fazem rodear de claques profissionais, formadas por aqueles seres que, para temperarem as vidas insonsas com alguma agitação, aplaudem e apupam em troca de “likes” e notificações.

Qualquer um consegue identificar os viciados em holofotes. Agem como damas ofendidas quando as luzes se apagam. Têm memória curta e selectiva. Nunca contam a história toda e ocultam os seus telhados de vidro, fazendo passar uma imagem de virgem imaculada às suas plateias contratadas.

E tudo isto porque, vai-se lá saber porquê, todos eles, sem excepção, acreditam serem divinamente merecedores de vénias e adoração, como fossem messias de uma qualquer seita, e quem não se verga é filho do demo, mesmo os que, em algum momento, foram úteis mas recusaram mudar-lhes as fraldas, ou deixaram de pagar dízimo.

Infelizmente, por mais voltas que o mundo dê, parece que o único antídoto para esta maleita é esperar que o tempo resolva este género de crise de meia-idade.

EMANUEL LOMELINO

A qualquer hora da noite (excerto 24) - Geórgia Alves

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A brisa cheira a pedra e sal. O vento sopra sem pedir licença às narinas feridas. O nariz chorou noite adentro. A mudança de ares começaria a fazer efeito? Não levou os costumeiros cigarros. Apenas com o que cobrir as partes íntimas e as mãos livres, afinal dadas a quem conhecia há apenas um par de meses. Foram ao lugar onde o vai e vem oco das ondas embala o sono, onde os mortos jaziam à beira-mar, e Simão, vizinho deles, cozinha para si mesmo. Filmado, o pescador continuou trançando as palhas, com único luxo: o fogão a lenha onde as brasas queimam sobre as ruínas da Igreja de Pedras Ternas. Há anos não mais de pé, tombadas por trás do cemitério. 

EM - A QUALQUER HORA DA NOITE - GEÓRGIA ALVES - IN-FINITA

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 352 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

352

Não sei dizer quantas vezes na vida deixei que a comoção tomasse conta dos meus olhos porque só consigo identificar três momentos, sendo que o último foi tão recente que ainda está pintado de fresco.

Um dia, assistindo ao noticiário, comovi-me com a imagem da criança a segurar o choro de dor, após cair num buraco, à noite, na selva, para não alertar os milicianos que andavam a exterminar o povo timorense.

Uma vez por ano, por saudades particulares, deixo-me comover pela música “Te voglio bene assai”, seja na voz de Pavarotti ou Lucio Dalla.

Há algumas semanas comovi-me ao pegar na recém-nascida sobrinha-neta e ter regressado quarenta e seis anos no tempo, quando tive nos braços a recém-nascida avó dela.

Em tudo o resto sou frio, gélido, glacial, uma pedra de gelo, um verdadeiro icebergue. Acho que sou assim porque nunca fecho a janela do quarto, nem mesmo no inverno mais rigoroso.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 351 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

351

Não me soprem fábulas aos ouvidos. Não sou vasilhame para guardar o sangue que escorre das vossas línguas bifurcadas. Tampouco serei tanque para lavar roupa suja nem cúmplice para noticiário de pasquins de esquina.

Não me cantem fados do coitadinho. Não sou depósito de letras divorciadas para armazenar os vossos arrufos de vaidade. Tampouco serei prateleira de ninharias frustradas nem varina do diz-que-disse.

Não me recitem sentenças avulsas. Não sou confessionário dos vossos linchamentos de damas ofendidas. Tampouco serei cárcere de lugares-comuns e frases-feitas nem pedra de amolar o veneno dessas facas.

Não me vendam banha-da-cobra. Não sou alguidar para escamar a beligerância fátua pescada no vosso mar de imodéstia. Tampouco serei projector de películas ficcionadas nem amplificador de cortinados virtuais.

Sou apenas um dos alvos da vossa triste existência.

EMANUEL LOMELINO

Término das galerias (excerto) - JackMichel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Madame Aranha foi andando... foi andando... foi andando... sem parar até que parou num instante e começou a falar: “Nôrzinha, cara Nôrzinha... esta é a Galeria Rosa Antigo! Onde minhas aranhas-licoristas inventam licores surrealistas!”. “Puxa, Madame... quanta disposição! As aranhas-licoristas devem dar asas à sua imaginação!”. “Dão... dão... sim, cara Nôrzinha! Com muitos licores delicados, de aroma e sabor requintados, misturados a valer... em açúcar tão branco e fino que só aranhas podem entender!” Nôrzinha ia olhando para tudo, procurando compreender... até que, súbito, parou e perguntou: “Madame, seria um grande favor... se eu pedisse às aranhas-licoristas um cálice de licor?”. “Cara Nôrzinha, não são só os adultos que sentem sede: nos infantes, a sede pode causar dissabor... por isso, pode pedir a elas o seu cálice de licor!”

EM - NA CORTE DE MADAME ARANHA - JACKMICHEL - IN-FINITA

terça-feira, 25 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 350 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

350

Consciente de estar a anos-luz de poder ser considerada lerda, Anália sente que, por mais experiente que seja nas coisas da vida, não consegue desfazer-se daquela ínfima parte da sua personalidade que recusa abandonar a ingenuidade.

Embora a provecta idade a tenha feito ganhar um elevado grau de perspicácia, ela precisa sempre de mais do que nanossegundos para captar a totalidade dos intentos contidos em cada gesto, em cada atitude, em cada palavra.

Esta característica nunca a impediu de ver o mundo com as cores certas, apenas não permite que as enxergue no imediato. Mas Anália convive bem com isso e até diz, por graça, que o seu carácter vagabundeia entre a infância e a velhice.

Por conta desse traço de inocência, ela demorou algum tempo para concluir que a sensibilidade mesquinha, os pruridos precoces, os melindres desfasados e a falta de senso-comum não são padecimentos exclusivos das gerações deprimidas deste tempo. Há muitos adultos, alguns tão avançados na idade quanto ela, que foram contaminados pelo espírito afrontoso da futilidade leviana, agem tal qual adolescentes rebeldes em busca de protagonismo e fazem beicinho, ou birras monstruosas, quando as contrariedades da vida se atravessam no caminho.

Depois de chegar a esta conclusão irrefutável, Anália lembra-se, com frequência, dos tamancos da sua saudosa mãe.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 349 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

349

Há muito deixei de ter tempo de sobra. Tampouco tenho réstias a perder. Cada segundo soma-se, e some-se, na urgência dos passos contados, e cantados, como salmos nas procissões de finados.

Entre idas e vindas laboriosas, entretenho-me a esgaçar os ponteiros dos dias, à procura de respostas para as perguntas que me assaltam e sobressaltam, sem abrandar nas encruzilhas para tentar adivinhar o melhor caminho. Sigo em frente, sem hesitar e elas (perguntas e respostas) que me acompanhem, se tiverem pernas folgadas.

Os anos acumularam-se nos ombros, o sal já escasseia, o sol ainda aquece, a chuva molha, o vento sopra, as ondas desmaiam nas areias da praia, e nada prende mais do que um par de algemas indecisas.

Não tenho tempo a perder, nem quando estou inerte, a tentar descobrir se as cigarras são mesmo preguiçosas ou se o canto que ouvimos provém dos sopradores de folhas que elas usam para limpar os galhos das árvores.

EMANUEL LOMELINO

Um cravo em troca de um cigarro (excerto) - Celeste Pereira

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Numa quinta-feira primaveril, a manhã acordava após uma agitada madrugada, sem percebermos ao certo o que se passava. As rádios tinham sido ocupadas por militares. Na Rádio Clube Português ouvia-se a canção do Zeca Afonso, “Grândola Vila Morena” e “Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho. Esta última foi a senha escolhida para dar início à Revolução. Chegara a hora da mudança. Anunciava-se um Golpe de Estado, levado a cabo pelos audazes capitães do dia 25 de Abril de 1974, hoje, também conhecida pela Revolução dos Cravos. Nas ruas pulsavam corações. Gente que se abraçava, chorava, ria, ou alegremente passavam a palavra; – O governo vai cair, há uma Revolução!

EM - LIBERDADE - COLETÂNEA - IN-FINITA

domingo, 23 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 348 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

348

Acho graça aos amoques que determinadas personagens, com a mania das grandezas e acreditando serem detentoras das verdades absolutas, têm amiúde, por dá cá aquela palha, porque sim e porque não, como se a histeria dos seus gritos mudos e absurdos atemorizassem os demais, fazendo-os enfileirar como carneirinhos conduzidos por pastores caninos.

Dá-me graça, e vontade de rir, quando vejo essas matrafonas carnavalescas, trasvestidas de autoridade suprema, a arrotarem postas de pescada, com vozes estridentes, feito varinas a depilarem-se com lâminas rombas, como se a razão as assistisse e sem perceberem o quão ridículos são os motivos da peixeirada.

Dá-me graça, mas sinto pena, dessas vedetas mediáticas que andam sob holofotes, como quem usa chapéu-de-chuva em todas as condições climatéricas, na esperança de serem notadas para não serem esquecidas, conduzidas por egos tão inflados como provincianos barrocos.

Dá-me graça, sobretudo por saber, de cor e salteado, os reais propósitos desses falsos achaques, que nada mais são do que chamarizes para papalvos, distraídos e pombos-correio.

Dá-me graça a vulgaridade de quem se vende excepcional.

EMANUEL LOMELINO

A qualquer hora da noite (excerto 23) - Geórgia Alves

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Acha aquilo a melhor bebida em toda sua vida. Dó da cozinheira, esta era farta da comida da vila, com tanta água salgada tudo que vinha do mar perdera o gosto e a graça. Na boca e no colo dela. Heleno tinha alegria que brota dos cachos. Era padrinho de Nino. E sempre começava o dia dando de comer às bichinhas, desmanchado em lágrima, feito menino, feliz e bobo.

EM - A QUALQUER HORA DA NOITE - GEÓRGIA ALVES - IN-FINITA

sábado, 22 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 347 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

347

Por estes dias li um texto sobre a “teoria da regressão” (belíssima dissertação sobre a hipocrisia consciente da humanidade) e dei por mim a pensar nos passos atrás que se dão, quando o intuito seria continuar a evoluir.

O domínio do fogo foi evolução. A invenção da roda foi evolução. A sedentarização foi evolução. A escrita foi evolução. Todas as civilizações foram evolução. A revolução industrial foi evolução. A revolução tecnológica é evolução.

O problema, de todos os acontecimentos que permitiram evoluir, é o seu denominador comum – o homem. Um ser que, apesar de ser fruto de um longo processo evolutivo e ter toda a experiência outorgada pela evolução, não só da espécie, mas, sobretudo, do seu próprio mundo, consegue chegar a este momento da existência e permitir-se regredir na essência.

Uns por ganância. Outros por comodismo. Todos por já não poderem ser chamados humanos porque perderam a razão e a humanidade.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 346 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

346

Carl Jung alertou para as características viciantes do silêncio e para as consequências que essa adição provoca naqueles que enferma. Concordo que o silêncio vicia e que há efeitos visíveis nos que usam o silêncio como uma forma de estar e entender a vida. No entanto, no desenvolvimento da ideia, tenho de manifestar opinião contrária à tese de Jung.

Para começo de conversa, a minha primeira discordância com o psiquiatra suíço está na catalogação deste estado como sendo uma doença. Talvez por não ser psiquiatra, creio ser abusivo classificar todo e qualquer comportamento, lateral aos convencionalismos, como doença. Chamem-lhe desvio, excentricidade, rebeldia, bizarria, mania, exotismo, capricho, ou qualquer outro substantivo, mas não doença.

Na explicação de Jung, os viciados em silêncio ficam tão deslumbrados com a sensação de paz que tendem a perder interesse na interação com os humanos. Neste ponto creio que a análise foi feita em contramão. Os amantes do silêncio não perdem interesse nas interações por sentirem paz, mas sim, sentem paz, quando estão em silêncio, por terem interagido em demasia. O silêncio acaba por transformar-se no único remédio eficaz para alcançar paz e reverter a toxidade das relações com os outros.

EMANUEL LOMELINO

Galerias e pedidos (excerto) - JackMichel

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Assim, a aranha foi mostrando tudo... tudo... à menininha que, de olhinhos arregalados, via aqui e acolá... até que deram bem de frente, com a Galeria Verde Mar! 
“Nôrzinha, cara Nôrzinha... esta é a Galeria Verde Mar! Onde minhas aranhas-confeiteiras preparam mil besteiras!”. 
“Puxa, Madame... que delícia! As aranhas-confeiteiras devem fazer tudo com perícia!”. 
“Fazem... fazem... sim, cara Nôrzinha! Muitos bombons recheados, com licores temperados, adocicados a valer... em papéis tão bem embrulhados, que só aranhas podem entender!”

EM - NA CORTE DE MADAME ARANHA - JACKMICHEL - IN-FINITA

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 345 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

345

Mirro-me nesta sensação de estar, invariavelmente, a ser sugado até ao tutano, por forças ocultas, que apenas sobrevivem porque lhes resisto, ao não lhes reconhecer mérito nem importância.

É como se o peito centrifugasse o sangue, em brasa, em espirais tresloucadas pela estreiteza das veias, ao mesmo tempo que os pulmões reprimem o ar que quer libertar-se num grito de ferocidade guerreira.

Em simultâneo, a pele enruga-se ao máximo da sua elasticidade, como estivesse a fundir todas as células num único organismo bélico, pronto para explodir sem olhar aos danos colaterais.

As mãos entrelaçam-se no estalar de cada dedo, até que uma dor câmbrica formigue imparável entre as falangetas e os cotovelos.

O suor escorre, tal qual uma enxurrada, por todo o corpo. Acordo. Espirro. Nada demais. Apenas uma constipação por ter este hábito de dormir com a janela aberta.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 344 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

344

Os abutres não deixam de pairar sobre as cabeças insufladas de modernismo. Fazem voos rasantes, com a desenvoltura de quem confia no anonimato que as suas sombras protegem, e não temem as vozes esclarecidas porque, essas, são minoria.

As ideias passaram a ser raros oásis num deserto, de areias ociosas, cada vez mais extenso e repleto de tendas ocupadas por neodepressivos que ficaram enfermos por escutarem demasiados nãos, e pensam que os pixéis dos ecrãs táteis são ingredientes de medicina alternativa probiótica.

Por este andar, ainda um dia, haveremos de encontrar embalagens de alucinogénios e pachorra-diet nas prateleiras dos supermercados, ao preço de uva-mijona e com a possibilidade de ser paga em suaves prestações de bitcoins, via transferência telepática e sem prescrição médica.

Valha-nos a Santa Imaculada Paciência de origem mandarim. Digo deste modo porque especificar a nacionalidade seria propalar um estereótipo (sentimento que apenas um caucasiano privilegiado, como eu, é capaz de expressar).

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 18 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 343 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

343

Ser adicto à leitura só se revela problemático se não existir a disciplina comportamental necessária, principalmente quando, após um livro, sentimos aquele impulso compulsivo de aprofundar uma temática ou contrapor ideias.

Nesses momentos de euforia literária, é preciso usar toda a força da resolução, e autocontrolo, para impedir-nos de correr à primeira livraria e comprar uma montanha de tomos relacionados com o original.

O mesmo acontece quando ficamos deslumbrados com a escrita de determinado autor e somos impelidos a adquirir, de supetão, todas as suas obras.

Aqueles que sofrem desta enfermidade cultural sabem o quão difícil é resistir aos ímpetos insaciáveis do conhecimento. A melhor forma de combater os sintomas é reler cada obra, pois a releitura sempre nos mostra algo que nos passou despercebido e pode responder a algumas questões, sem ser preciso ler outras abordagens. Outra forma de antídoto consumista é, sempre que possível, procurar antologias, colectâneas ou resumos biográficos, onde possamos estar em contacto com as obras de modo mais superficial, contudo, mais abrangente, porque, no final das contas, não precisamos saber todas as respostas. Muitas vezes basta conhecermos alguns fragmentos para alcançarmos, por nós mesmos, a ideia global.

Tirando isto, a leitura só traz benefícios.

EMANUEL LOMELINO

A qualquer hora da noite (excerto 22) - Geórgia Alves

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Confirmando veredicto. Para engravidar, e manter a gravidez até o final seriam necessários esforços. A começar pela comida. Guada, desde menina, conhecia bem Heleno, dono de admirável galinheiro, com centena de bichinhas de raça, pura estirpe. Galinhas vermelhas, como a avó de Guadalupe, Ludmila.
 Ruivas e recém-nascidas das primeiras galináceas americanas, batizadas New Hampshire. Com ovos e carne branca, fácil resistir às carnes vermelhas. Ainda o bom humor do compadre Heleno. Homem gentil, bem dado. Guadalupe flutua ao lado dele.

EM - A QUALQUER HORA DA NOITE - GEÓRGIA ALVES - IN-FINITA

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 342 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

342

A questão é polémica, apenas e só, porque se transforma facilmente num argumento usado por cabeças ocas ou com intensões malévolas.

É propalada em discursos políticos demagogos e, dependendo do orador (e dos seguidores não-pensantes) pode frutificar nas massas, bastando para isso associá-la a outros assuntos, sobre os quais pouco ou nada se diz e faz.

Portugal é um país racista?

Os de direita são… com os imigrantes pobres. Os de esquerda são… com os imigrantes ricos. Os ricos são… porque empregam imigrantes pobres. Os pobres são… porque trabalham em empresas de imigrantes ricos. Os ricos são… apesar de fornecerem produtos às lojas dos imigrantes. Os pobres são… apesar de se abastecerem nas lojas dos imigrantes.

Sim, Portugal é um país de tradição racista, como demonstra o facto de a Dona Rosa (octogenária caucasiana minhota e analfabeta), que anda sempre com as palavras “preto”, “lelo”, “chinoca” e “monhé” na ponta da língua, ser a mais querida do bairro, por brasileiros, romenos, moldavos, africanos e asiáticos, que sempre lhe oferecem alguma coisa, ou o facto de duas crianças de colo, uma bengali e outra paquistanesa, quando a veem quererem logo ir para os seus braços.

Aos ouvidos de algumas “damas ofendidas”, os comportamentos linguísticos da Dona Rosa são demonstração de racismo. Aos olhos dos imigrantes, que com ela interagem, as suas atitudes inclusivas, de acolhimento e afecto, são a mais pura prova de que, quando não existem interesses para além de humanidade, as diferenças não existem.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 16 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 341 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

341

Mais uma tarde pardacenta a atravessar-se no meu caminho, como se a minha percepção das coisas fosse uma contínua divergência. O sol e a lua nunca deixaram de revezar-se e as nuvens são transição.

Os espelhos não refletem novidades, além de uma ou outra ruga mais acentuada, fruto dos carinhos do tempo e da labuta, e os pintarroxos insistem em ser tema de conversa, tantas vezes quantas eu escrevi sobre a perfeita sensibilidade do nenúfar preferido.

O pão não deixa de ser vida, os iogurtes de frutos vermelhos têm pedaços de morango e amoras, os golfinhos sempre serão mamíferos e a Rosa é mãe de três, avó de quatro, trisavó de outra tripla (por ora), e tem um gato oportunista como um político em campanha eleitoral (depois de satisfeito o seu pedido, vira costas e não quer saber de ninguém).

As horas correm, as tarefas executam-se, as refeições confortam, os cigarros matam, as dores sentem-se, os pensamentos fluem, a mente viaja, e a campainha toca (devem ser os dois livros, da Graça Pires, que encomendei).

Volto já!

EMANUEL LOMELINO

Entre galerias (excerto) - JackMichel

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Totalmente deslumbrada a menininha continuava divisando um mundo que, para ela, era um tesouro... e num instante, a aranha já lhe mostrava a Galeria Amarelo Ouro! 
“Nôrzinha, esta é a Galeria Amarelo Ouro! Onde minhas aranhas-sapateiras fabricam sapatos de teias-couro!”. 
“Puxa, Madame... quanta atividade! As aranhas- -sapateiras devem criar tudo, com exclusividade!”. “Criam... criam... sim, cara Nôrzinha! Muitos sapatos enlinhados, em teias-couro amarrados, enovelados a valer... em laços tão bem enlaçados que só aranhas podem entender!”. 
A pequenina a tudo olhou e, depois, perguntou: 
“Madame, seria um desdouro... se eu pedisse às aranhas-sapateiras uns sapatinhos de teias-couro?”. “Nôrzinha, tolices não cabem neste lugar... por isso, peça a elas todos os sapatos que desejar!”.

EM - NA CORTE DE MADAME ARANHA - JACKMICHEL - IN-FINITA

sábado, 15 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 340 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

340

Farto de ser avaliado pelos hipotéticos feitos que lhe eram imputados, por um extenso leque de catedráticos de cortinado (seres alcoviteiros e com pouco sal nas próprias existências), Genuíno apoderou-se das rédeas da vida e deu-lhe outro rumo, sem importar-se com as reacções que essa decisão suscitaria.

Romper com hábitos adquiridos não foi tarefa fácil, no entanto, ele estava disposto a abdicar, mesmo que temporariamente, de situações que lhe eram prazerosas, consciente de que, por vezes, são necessários sacrifícios para se atingir um bem maior.

Embora nunca tenha expressado o sentimento, essa mudança de postura - mais circunspeta, fechado sobre ele mesmo – revelou-se acertada e trouxe-lhe uma paz de espírito inigualável, que passou a ser imprescindível para manter um elevado nível de serenidade e conforto mental.

Hoje, apesar de ter mais dúvidas do que certezas, Genuíno sente-se um homem seguro, com total domínio sobre a sua vida e, acima de tudo, confortável quando tem de cortar algum mal pela raiz.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 339 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

339

Este não é um texto de saudosismo, mas tempos houve em que as cores do dia-a-dia eram mais vívidas, mais aconchegantes.

Os rios refletiam o brilho dos céus; as searas ondulavam a cor do sol; os pomares eram arco-íris de pêssegos, laranjas e maçãs, os jardins eram viveiros de rosas, margaridas, jacintos e tulipas, que cresciam entre ilhas de carvalhos, azinheiras, rododendros, glicínias e, por vezes, jacarandás.

O amarelo era alegria; o verde era esperança; o azul era tranquilidade; o conforto era castanho, a paixão era vermelha; o romantismo era rosa; a jovialidade era laranja; o respeito era preto; a paz era branca.

Hoje, sempre que vemos algo semelhante ao descrito, dizemos estar perante uma visão paradisíaca porque tudo ficou pálido, genérico, demasiado pastel e acelerado, e ficamos sem saber em que momento perdemos as cores e nos entregámos ao cinzentismo moderno.

EMANUEL LOMELINO