sábado, 23 de agosto de 2025
O branco e a preta (excerto 11) - Pedro Sequeira de Carvalho
sexta-feira, 22 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 97 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
97
Neste dia de faxina nos destroços de mim, entre passagens de espanador nas prateleiras da revolta e borrifos desinfectantes nos espelhos do conformismo, encontro o tapete das memórias puídas sobreposto às lembranças dolorosas de uma realidade que eu próprio ocultei.
Neste dia de limpar os escombros de mim, desengorduro a loiça dos gestos impensados, vejo o meu reflexo envelhecido nos talheres curvados pela dureza dos dias e redescubro os fios rombos das facas que apunhalaram os desejos que eu próprio descartei.
Neste dia de higienizar os entulhos de mim, purifico os lençóis de lágrimas nunca vertidas, lavo as fronhas tecidas com linhas de insónia e emendo os cobertores da inércia com retalhos da sujeição que eu próprio alimentei.
Neste dia de limpeza e expurgação de mim, vejo no brilho dos espelhos reciclados a verdade nua e crua: há muito que vagueio somente pelas margens da vida.
EMANUEL LOMELINO
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 96 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
96
Por vezes a ansiedade supera a imperativa urgência de resposta imediata e as intensões ficam por cumprir. A mente como que bloqueia e as acções ficam presas na vontade, como se uma força hipnótica tomasse as rédeas da vida.
O primeiro impulso é abraçar a inércia e deixar-se envolver no vazio de ficar sem chão para caminhar. A energia esvai-se como um sopro rápido e o vigor evapora com o calor da perplexidade de ficar de calças na mão.
O corpo quer recolher-se sobre si mesmo e a razão finge não existir por sentir-se culpada e não querer agravar a desfaçatez cruel de um instante de infâmia e desonra.
Com a desorientação encavalitada nos ombros, as costas vergam sob o peso da vergonhosa incapacidade de reverter o destino traçado e, tal como no jogo da glória, mais uma vez, regressa-se à casa de partida – lugar, há muito, indesejado.
EMANUEL LOMELINO
Cruzando Oceanos: A Vida que Eu Escolhi (excerto) - Gê Morais
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
Contos que nada contam 43 (O pasteleiro-florista) - Emanuel Lomelino
O pasteleiro-florista
Zacarias era um pasteleiro que, nos intervalos do seu ofício, passava o tempo a plantar flores. Por conta dessa actividade extracurricular, ele passou a ter a visibilidade que nunca havia alcançado através da profissão.
Com o tempo, o seu nome passou a ser reconhecido no mundo da floricultura e ninguém estranhou quando ele passou a fazer arranjos florais para uma florista recém-fundada.
Entre altos e baixos, as coisas foram funcionando e, mesmo nos momentos de menor demanda, Zacarias teve sempre o suporte da florista. Ora plantava flores por sua conta, ora fazia bouquets para a florista.
Só que um dia, por achar-se o suprassumo da floricultura e não ver o maior dos seus arranjos (que não o melhor – bem pelo contrário) exposto no melhor local do jardim, ele decidiu apontar o dedo à florista pela falta de exposição.
O pior do seu amuo nem foi a contestação, mas sim a forma dissimulada como decidiu chamar sobre si os holofotes do universo floral, contando a sua versão ofendida da história e pintando a florista como sendo um demónio de desonestidade.
Nesse momento de raiva ressabiada, esqueceu-se de dizer aos seus acólitos apoiantes que, ao contrário daquilo que as pessoas pensavam, nenhum dos serviços prestados à florista foram feitos por altruísmo. Todos os arranjos que fez haviam-lhe sido pagos à razão de uma percentagem por cada flor vendida.
Definitivamente, Zacarias pertence àquele grupo de pessoas que, sucumbindo ao vício da vaidade, faz discursos inflamados, para inglês ver, e acaba por esquecer os seus telhados de vidro e perde a noção da realidade.
EMANUEL LOMELINO
Ondas de paz e contentamento (excerto 4) - Maria Helena J. Pereira
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 95 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
95
Pobres daqueles que, ao verem a poeira levantada por uma rajada de vento fortuita, creem estar perante uma tempestade de areia.
Não há nada mais nefasto do que viver na agonia de todos os males, desconsiderar que os dias são maiores do que as trevas e as miragens podem desvirtuar os sentidos.
Pobres daqueles que, na preguiça do intelecto, acreditam em todas as palavras proféticas dos arautos da desgraça alheia e, como marionetas sem fios, deixam-se amarrar aos vis conceitos de falsos mensageiros.
Não existe nada mais nocivo do que acreditar em castigos e pragas divinas, desvalorizar a intuição e deixar o próprio destino nas mãos de quem só está presente nos instantes de conflito interno.
Pobres daqueles que evitam encarar a vida, olhos nos olhos, por receio de cair e macerar o corpo vezes sem conta.
Não há nada mais danoso do que viver com medo das sombras e em permanente cobardia.
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 18 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 94 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
94
Pior do que perder a visão é não ter visão de nada, ficar na cegueira da dúvida sem decidir entre os caminhos que se ramificam diante dos olhos.
Pior do que perder a lucidez é abdicar da clareza de ideias e querer viver nas duas margens do mesmo rio, sem encontrar forma de o atravessar.
Pior do que perder a audição é não ouvir a voz da razão e limitar-se a escutar os torpes cantos de sereia que são enredos e tramas que somente conduzem ao engano.
Pior do que perder a consciência é não ter consciência dos actos e, principalmente, de tudo o que pode advir de cada decisão inconsciente.
Pior do que perder os sentidos é perder o sentido das coisas, ficar no limbo do pasmo por não saber identificar o momento certo de colher o que se plantou.
EMANUEL LOMELINO
O branco e a preta (excerto 10) - Pedro Sequeira de Carvalho
domingo, 17 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 93 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
93
Quando o tema de conversa é a Vida, existem quase tantas definições aplicáveis como gente no mundo. Para uns é isto, para outros é aquilo, para alguns é aqueloutro, para os demais é assim, para poucos é assado, para os restantes talvez não seja nada disso ou tudo junto.
Um dos aspectos comuns a todas as opiniões, mas sempre esquecido, ou melhor dito, nunca lembrado, é o facto de a Vida também ser uma unidade de tempo variável e os relógios que a medem sermos todos nós, com a particularidade de raramente estarmos no mesmo estágio de medição, porquanto cada um tem a Vida à sua medida.
A maior diferença da Vida para as outras unidades de medida do tempo é a sua perecibilidade. Enquanto os anos, os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e os segundos serão eternos e existirão para lá da existência de cada um, a Vida, na especificidade aqui explicada, termina com a morte daquele a quem serviu.
Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se aferir que cada Vida é tão única como as impressões digitais.
Assim sendo, à pergunta:
- O que é a Vida?
Pode-se responder:
- A Vida é… pessoal e intransmissível.
EMANUEL LOMELINO
sábado, 16 de agosto de 2025
Devaneios sarcásticos 26 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
26
Nesta bruma cerrada escondem-se os limites das sombras que nos fogem ao olhar e os enganos vestem-se camuflados de farol.
Nesta neblina fechada escondem-se os finais de tarde que, nem os mais furtivos raios de sol conseguem iluminar.
Nesta névoa trancada escondem-se as margens vampirescas que se mascaram de anjos para levar-nos ao precipício.
Neste nevoeiro selado escondem-se as barreiras da ilusão com o simples e matreiro propósito de nos ocultar os embustes.
Nesta cortina de fumo espesso escondem-se as armadilhas sedentas de sangue, de quem, com esperança e boa-fé, se deixa guiar.
Os véus do engodo aproveitam-se da cegueira dos tolos e inocentes, como se o prejuízo dos desavisados fosse a única e suprema via para matar a fome da cobiça desmedida e cobarde.
EMANUEL LOMELINO
O futuro nos espera... (excerto) - Aline de França
sexta-feira, 15 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 92 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
92
Pesa-me mais o cansaço dos passos dados em vão do que os quilos de horas que se acumulam nas pernas. Nesses intermináveis momentos de fadiga, o corpo dorido implora pelo mergulho na calmaria do sentir e pede para ser anestesiado por uma qualquer chuva de verão fora de época.
Ofegante é o desejo de permanecer imóvel, sem obrigação de estender os braços aos céus em preces de mudança. Há um pedido mudo que se revela uma necessidade imperativa de ver o voo das pombas brancas, mas o mundo continua a girar inclemente.
O crepúsculo já não é de paz e serenidade porque paira no ar uma cãibra que ignora a urgência de sossego e vazio. As madrugadas são lençóis de lava e as noites prolongam as vigílias inoportunas. O sono é picotado por cada som dos megafones motorizados que fazem derrapagens tão imprudentes quanto estridentes.
Então vem a alvorada com marcas no rosto porque o sol que nasce não é novo, mas sim o pleonasmo do anterior – mais passos em vão e horas acumuladas nas pernas.
Assim passam os dias que enrugam a pele e gritam a monotonia cruel costurada nos caminhos. Uns chamam-lhe destino, outros creem ser fado. Isto é apenas o desassossego da vida e há mortes mais dramáticas.
EMANUEL LOMELINO
Ondas de paz e contentamento (excerto 3) - Maria Helena J. Pereira
quinta-feira, 14 de agosto de 2025
Devaneios sarcásticos 25 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
25
Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.
Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.
Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.
Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.
EMANUEL LOMELINO
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 91 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
91
Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.
Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.
Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.
Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.
O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num círculo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…
EMANUEL LOMELINO
O branco e a preta (excerto 9) - Pedro Sequeira de Carvalho
terça-feira, 12 de agosto de 2025
Pensamentos literários 41 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
41
Nesta loucura de mim, reflexo das piscadelas de olho dos meus (apurados?) sentidos, cravo todos os verbos auxiliares de memória e construo uma história sem futuro, mas intemporal.
Como criador que sou (e me sinto?) abro o kamasutra de possibilidades ilimitadas do estro (se o tenho!) e desenho a inconveniente postura de um adjectivo concreto, para expurgar o iodo das sentenças enfermas e, assim, eliminar a linha condutora dos raciocínios exactos que me invadem.
Enquanto autor de incoerências e paradoxos redundantes, mergulho na liquidez de um pensamento firme e dou-lhe características plásticas, como quem mastiga a dor de uma revelação insonsa - de cuja falta de encanto pode germinar a frase mais contundente e acintosa.
Há propósito nos casamentos que imponho às palavras porque de nada servem as solteiras, prenhes de solidão gramatical e mais susceptíveis ao embuste e ao narcisismo.
Acredito na desformatação das fórmulas e no aniquilamento do óbvio (advérbios e derivações!) em detrimento – que não substituição – dos recursos assessórios, que não os simples e básicos, porque essenciais e necessários.
Creio na encriptação metafórica e na irónica exploração dos verbos regulares, como quem personifica uma multitude de gestos comprometedores.
Por isso, todos os meus textos podem ser explicados numa única e definitiva frase, quando não por apenas uma singela palavra.
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 11 de agosto de 2025
Prosas de tédio e fastio 90 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
90
Ao contrário de todos os outros sentimentos, acho que o medo ainda me espera no inesperado.
Não tenho medo de répteis, roedores ou gosmas, apenas asco e repugnância. Não tenho medo de agulhas, ou outros instrumentos pontiagudos.
Não tenho medo da solidão porque a procuro. Não tenho medo do vazio porque me preencho. Não tenho medo do escuro porque me atrai. Não tenho medo de gritos porque os ignoro. Não tenho medo de falinhas mansas porque desconfio. Não tenho medo de traições porque as sinto. Não tenho medo da desilusão porque prevejo. Não tenho medo do futuro nem da morte porque os desconheço.
Não tenho medo de monstros, bestas, feitiços, crenças, seitas ou outras criações fantasiosas da humanidade porque também as sei criar.
Tenho vertigens, mas nunca me recuso subir ao penhasco mais alto e íngreme porque sou combativo mesmo sentindo angústia e desconforto.
Dizem que o medo dá arrepios, também a febre. Dizem que o medo faz tremer, também o frio. Dizem que o medo faz suar, também o ginásio. Dizem que o medo deixa a garganta seca, também a sede. Dizem que o medo dá nós no estômago, também a fome. Dizem que o medo gera apreensão, também a pobreza. Dizem que o medo causa ansiedade, também as drogas. Dizem que o medo acorda os sentidos, também o sexo. Dizem que o medo origina desconfiança, também a política. Dizem que o medo provoca lágrimas, também a cebola. Dizem que o medo assusta, também eu.
EMANUEL LOMELINO