terça-feira, 30 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 294 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

294

Por mais incompreensível que possa parecer, todos os silêncios têm um discurso acoplado e as asas das borboletas ficam mais fortes a cada batimento.

Nem todas as percepções correspondem à verdade dos factos e os hologramas, antes de serem avanço tecnológico, já faziam parte da vertente ficcional das prosas enxeridas e abelhudas.

Não esqueçamos que as pedras podem virar pó e este transforma-se em barro ou lama, dependendo da quantidade de água derramada.

Depois temos o vento que, num ápice reptílico, passa da carícia ao empurrão e tanto pode acelerar o passo como soprar contracorrente.

E santos são os caules espinhosos das rosas e os ferrões das vespas, menos perigosos do que os lábios famintos de qualquer drosera.

E tantas outras metáforas poderiam ser usadas para referir que há demasiada gente dissimulada e adepta da má-língua, da bisbilhotice, da difamação, da intriga e do falso-testemunho.

EMANUEL LOMELINO

O poder das ancas (excerto 3) - Monica Rocha

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Como bailarina do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, o maior centro de dança da América Latina, comecei a convidar grupos de mulheres para vivenciar diferentes possibilidades de mover suas ancas pelo espaço em diferentes percursos: ora era a púbis que liderava em movimentos ondulados como a serpente; ora era a crista ilíaca em rodopios; ora era o sacro em movimentos vibratórios; e, assim, lá iam elas saborear de forma criativa e lúdica os movimentos, expressando com liberdade, leveza e beleza a sua verdadeira essência, convidando sua alma para cantar alegremente. Todo esse processo proporciona a expressão de emoções e sensações de alegria, felicidade, prazer, liberdade e fertilidade na mulher.

EM - CONVERSAS MADURAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

A fantástica fábrica de rapaduras (excerto 2) - Maria Aliender

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Que saudade daqueles dias e daquele cheiro de cana que se misturava ao zum, zum, zum das abelhas que também vinham provar o sabor da doce cana caiana. Eram tantos saberes e sabores que guardo até hoje na memória afetiva o modo de fazer daquelas doces e nutritivas rapaduras. O tempo passou, cresci e embora provando muitas rapaduras compradas em beira de estradas, sei que nunca, jamais comerei uma com aquele sabor de infância, elas eram únicas e sabem por quê? Porque eram feitas por meu pai e tinha o seu toque e é também por isso que até os dias de hoje povoam minha memória afetiva com tanta riqueza de detalhes.

EM - ENTRE ROSAS, TUIUIÚS E BONECAS DE MILHO - ELI COELHO, MARCOS COELHO, MARIA ALIENDER - IN-FINITA

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 293 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

293

- Ó padre Frederico! Perdoe-me a franqueza, mas às vezes fico a pensar que o doutoramento em teologia ajuda-o a salvar almas, mas nunca o preparou para identificá-las.

- Porque dizes isso, meu filho?

- Então, ao fim de vinte cinco anos é que você deu conta que o Peliça era um falso sem-abrigo afogado em dinheiro? Acaso pensou que a alcunha que lhe demos tinha outra conotação?

- Ele sempre me pareceu tão maltrapilho como os restantes. Nunca vi nada que o diferenciasse, à parte de estar sempre disponível para ajudar nos eventos sociais da paróquia. Quanto à alcunha… pensei que fosse por ele estar sempre de luvas e vocês apenas estivessem no chiste.

- Haja ingenuidade, padre Frederico! Desde quando é que um sem-abrigo anda de luvas cirúrgicas, com a barba aparada e sem sarro no rosto?

- Pois…

- Bem, ingenuidades à parte, o importante é preservar a memória do Peliça, como todos o conheceram, pelo tanto que ele fez aqui, e nos termos que ele deixou em testamento. Como beneficiários, temos a obrigação moral de retribuir o altruísmo e a generosidade destes vinte cinco anos. Ninguém fez tanto por esta comunidade quanto ele. Tampouco de forma anónima e despretensiosa.

- Paz à sua alma!

EMANUEL LOMELINO

Lavagem cerebral (excerto 3) - Luís Vasconcelos

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Há muitas formas de manipular as decisões pensamentos e condutas de alguém. De exercer alguma pressão, recorrendo-se subtil e, se calhar, até involuntariamente uma espécie de ameaça velada ou então à chantagem emocional. Interiormente, eu sentia-me culpado se não fizesse o que era esperado de mim, se não correspondesse às expetativas da Igreja, dos líderes da Igreja, dos fanáticos da Igreja. Às vezes todas estas posturas misturavam-se na minha mente e deixavam-me completamente confuso e perdido, com um sentimento de culpa que crescia dia após dia, mês após mês, ano após ano tornando-se cada vez mais insuportável.

EM - COMEÇAR DE NOVO - LUÍS VASCONCELOS - IN-FINITA

domingo, 28 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 292 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

292

Reconheço a precaridade dos meus passos e as responsabilidades alheias que coloquei nas costas quando, eu próprio, sentia a necessidade de outras latitudes, outros encargos, mais sensatez.

Porventura, deixei-me ficar no lado de cá do horizonte por achar que escalar outros cumes seria um acto de egoísmo descabido e só conheci a indiferença depois de muitos sapatos gastos.

O discernimento conquista-se a conta-gotas e a consciência precisa ser destilada para que a razão venha à tona. Por isso, só agora, passado o equador da viagem, é que dei conta do caminho circular – para não dizer espiral – que tenho trilhado.

Arrependimentos! Na prática nenhum porque, instintivamente, nunca fui acumulador de tralhas e abandonei algum lastro basáltico nas margens do esquecimento. Mas não se aflijam os ambientalistas porque deixei tudo bem acondicionado em embalagens recicladas e nos respectivos aterros.

EMANUEL LOMELINO

A qualquer hora da noite (excerto 12) - Geórgia Alves

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Depois da mínima morte. E quem não tem olhos ou ouvidos, quem não é capaz de ver como o amor nos faz levitar. E a alma passeia tal se faz em galeria de arte, vendo o outro, seguindo pelo emaranhando das digitais. 
Estão vis à vis, à parte, espero que não pairem dúvidas. Amam-se todos os dias desta vida. Duvidas? Oh, não, não duvides, imagines nunca mais comer a fruta preferida, o que fazer com a língua? Sem a cor preferida, a que serve olhar a tela? Sente falta do cheiro? Pois bem. Cora é o odor que Jaú precisa e lembra quando adormece. Depois de fazerem amor.

EM - A QUALQUER HORA DA NOITE - GEÓRGIA ALVES - IN-FINITA

sábado, 27 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 291 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

291

Quisera ser tempestade ribombante para, com a luminosidade dos raios e rouquidão dos trovões, atormentar as dualidades das marés lunares.

Quisera ser vulcão e cuspir rios de lava abrasadora sobre as vulnerabilidades infundadas que, quais etiquetas inamovíveis, falsamente denigrem o carácter mais brando e casto.

Quisera ter a acidez vernácula para combater a violência covarde de quem se esconde nas sombras do anonimato e depois passeia, altivo e de saltos altos, nas vergonhosas passadeiras vermelhas do engodo.

Quisera ter todos os verbos à flor da pele para, com a língua afiada, romper a brandura dos discursos, chamar os bois pelos nomes e colocar os pontos nos “is”.

EMANUEL LOMELINO

Reflexões (excerto) - Renata Campos

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A nossa saúde é uma junção de genética e epigenética. Somos as células que herdamos dos nossos familiares e nossos hábitos construídos. Ninguém é igual a ninguém. O que rege para uma pessoa pode não tocar para outra. Precisamos estar atentos e melhorar a nossa saúde dentro de casa.
Quando me apaixonei pelo universo da comida, não pensei que ele me levaria até aqui. Hoje, quando me alimento, reconheço o que de fato estou ingerindo e de que forma esse alimento vai agir no meu organismo e nas minhas emoções. Sim, falo das emoções porque hoje as pessoas estão comendo de forma solitária, seja no computador ou diante da TV, sem ao menos questionar de onde e de que forma aquela comida veio parar no seu prato.

EM - SEGUNDA PRIMAVERA - RENATA CAMPOS - IN-FINITA

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 290 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

290

Os aforismos vivem e respiram em cada verso criado pelas almas noctívagas, sedentas por estancar silêncios e arruinar sossegos mentais.

As penas – nunca plumas – são torneiras abertas aos discursos atormentados, sem saberem que as tormentas maiores estão nos olhos da posteridade.

O maior sofrimento é sentido pela folha de papel por reciclar, por não ter história além daquela que lhe tatua o corpo em pigmentos desbotáveis e com prazo de validade.

Quanto ao vate… de pouco lhe serve o entendimento e um descodificador de ideias e processos porque tudo fica perdido na ausência de rasuras e notas de rodapé.

Mas, apesar de tudo ser efémero, desde a concepção até à fogueira, existem momentos de poesia que respondem às leis da natureza. Porque nada se perde, tudo se transforma e renova.

EMANUEL LOMELINO

Encontro com a teia - JackMichel

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A infante apurou a vista na esperança de enxergar com mais nitidez a teiazinha leve que, insistentemente, continuava a brilhar naquele mesmo foco de sol, sem parar. 
Nôrzinha foi andando lentamente, guiada pela visão misteriosa que projetava-se por entre as plantas...
Até que parou como que hipnotizada por algo que, para ela, era absolutamente novo e desconhecido. Tecida no jasmineiro, estava uma linda... magnífica... esplendorosa teia, com uma aranha nela.

EM - NA CORTE DE MADAME ARANHA - JACKMICHEL - IN-FINITA

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 289 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

289

Olavo descobriu, muito cedo na vida, que era apaixonado pela escrita. Construía frases a partir de uma ideia base, encadeava-as de forma cirúrgica e precisa, e nasciam textos que encantavam todos aqueles que os liam, embora ele sempre tivesse alguns reparos a fazer e nunca os desse por terminados.

O acto de escrever era, por si só, um momento de regozijo, libertação e êxtase, e todos esses sentimentos juntos faziam-no sentir-se plenamente realizado, mas nunca satisfeito. Por isso, muitos ficaram surpreendidos quando decidiu dedicar-se profissionalmente à escrita.

Sabendo, de antemão, que o percurso de um escritor nunca é fácil, e porque um bom livro não aparece feito de um momento para o outro, como num golpe de mágica, Olavo começou a fazer traduções das obras mais emblemáticas da literatura universal, de modo a conseguir um rendimento que lhe permitisse subsistir enquanto trabalhava, com afinco, na sua própria obra.

O tempo foi passando… passando… passando e, porque o seu livro de estreia teimava em não surgir, alguns amigos começaram a interrogá-lo sobre a demora. Rapidamente descobriram que, a cada nova tradução feita, Olavo sentia necessidade de reescrever todo o seu material porque tinha-se deparado com alguma técnica, estilo ou abordagem que achava pertinente incluir no seu livro.

Hoje, muitos anos após a sua morte, Olavo é uma referência para a maioria dos tradutores de obras clássicas, pela qualidade das quase duzentas traduções que fez. Já em relação ao seu livro… apesar das múltiplas vezes que o reescreveu, ele nunca viu a luz do dia por uma questão de perfeccionismo exacerbado.

EMANUEL LOMELINO

O poder das ancas (excerto 2) - Monica Rocha

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Mas afinal, qual é o Poder de dançar com as ancas?
Nas minhas pesquisas, ao longo dos anos, percebi que, quando movemos nossas ancas através da consciência pelo movimento, explorando diferentes qualidades nessa forma de mover (como, por exemplo, ritmos, sensações e percepções diferenciadas), vamos ganhando mais autonomia e consciência durante esse processo. Aos poucos, cada pessoa vai enriquecendo a sua relação e consegue despertar cada parte até então adormecida e, assim, surge, além de um novo vocabulário corporal, um corpo mais livre, leve, solto, completamente destravado, mais independente e apropriado de si.

EM - CONVERSAS MADURAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

A fantástica fábrica de rapaduras (excerto 1) - Maria Aliender

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Semana de pular da cama de madrugada para lamber prosa em volta da fornalha feita de tijolos que sustentava o tacho de caldo de cana caiana, que antes era moída no engenho artesanal de ma- deira movimentado por uma junta de bois que apesar de sentir pena dos pobres animais se esforçarem tanto, eu achava bonito aquela disciplina deles e se não fosse o sacrifício eu teria saudade até dessa parte. Mais tarde essa tarefa dos bois foi substituída com louvor, diga-se de passagem, por um motor a gasolina e posteriormente por um elétrico. Pegávamos o caldo da cana, fonte de vitaminas B e C e muitos outros nutrientes como: ferro, cálcio, potássio...

EM - ENTRE ROSAS, TUIUIÚS E BONECAS DE MILHO - ELI COELHO, MARCOS COELHO, MARIA ALIENDER - IN-FINITA

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 288 - Emanuel Lomelino

Imagem eas

Diário do absurdo e aleatório 

288

A passo lento, Rómulo pisa a calçada, ainda húmida do orvalho matinal, como quem tem uma pedra no sapato e as meias encharcadas.

No rosto, carcomido pela insónia, leva estampada uma história de tormentas cosidas a desencontros e linhas tortas. No canto do olho, como em todos os dias amargos, carrega o reflexo de lágrimas por libertar, que nem a cacimba é capaz de disfarçar.

O manto puído dá-lhe o poder da invisibilidade perante a turba que se acumula junto ao semáforo, sem tempo para olhar o mundo tal qual ele se apresenta.

Ao ronco das entranhas, Rómulo responde colocando a sua mão boa – a que tem menos escaras vivas – no que resta do bolso direito. Saca a côdea do desafogo das últimas semanas e, com a prática de um golpe de indicadores, solta duas migalhas que leva à boca salivante.

Olha em redor, como quem anseia ver algum conhecido, e regressa, inexpressivo, ao interior da caixa de frigorífico, onde se abriga nas noites selvagens de Inverno, para mais uma tentativa de hibernação – o sono pode não ser pacífico, no entanto, tem o condão de apaziguar o estômago por mais algumas horas, até à próxima dose de migalhas.

EMANUEL LOMELINO

Lavagem cerebral (excerto 2) - Luís Vasconcelos

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Os líderes religiosos são como os políticos. Fazem sempre questão de usar um tipo de linguagem tão bizarra e rebuscada, que se calhar eles próprios já nem pensam no que estão a dizer, quanto mais os crentes, no que lhes é dito. Frases feitas, discursos decorados. Rezas e ladainhas todas as religiões, sem exceção têm. Cada qual à sua maneira, mas têm. Expressões e frases repetitivas. ou então pregações especialmente preparadas para mexer emocionalmente com pessoas mais frágeis, carentes e crédulas, muitas vezes atravessando períodos de dor e sofrimento muito intenso.

EM - COMEÇAR DE NOVO - LUÍS VASCONCELOS - IN-FINITA

terça-feira, 23 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 287 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

287

Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.

Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um violão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.

Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.

EMANUEL LOMELINO

A qualquer hora da noite (excerto 11) - Geórgia Alves

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Houve um breve suspiro, Cora se recupera da sensação de tontura, Jaú da enorme frustração e contenção de amor quase feito, deita-se enquanto ela desfaz as roupas da mala, colocando-a ao lado do corpo dele, seu grande mistério é saber como foi capaz de abrir os olhos, estava tão enlevada pela sensação de ternura, de desejo de fazer amor. 
Jaú quase não escuta mais, sua voz fica baixa, como um grão de areia quisesse emitir sons sobre o arrastar tanques da primeira grande guerra. Voz em luta contra o pesado silêncio que toma conta do quarto.

EM - A QUALQUER HORA DA NOITE - GEÓRGIA ALVES - IN-FINITA

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 286 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

286

Como não bastasse a densidade do bosque, com as suas altivas árvores de copas escuras e tão espessas que o sol não as trespassa, ainda se pôs este nevoeiro cerrado que cega o início do olhar.

Apenas ruído. Uma espécie de assombro canalha que gela pedras e raciocínio. Um tilintar indistinto, contudo macabro, fúnebre e tão encantatório como um coro de sereias à caça de náufragos.

O caminho, à margem das vespas e espinheiros, faz-se irregular, qual montanha-russa num parque de diversões devoluto.

Ouve-se o piar de uma coruja-das-torres e um indefinido restolhar, ténue e miúdo, tão rasteiro como uma subcave invisível, mas presente.

Subitamente, num passo de mágica, abre-se uma clareira tão larga quanto negra, como fosse o leito de uma gigantesca fogueira antiga, que oferece três trilhos. Um de seixos brancos e lisos de erosão, outro coberto por um tapete de folhagem calcada, o terceiro enlameado, íngreme e invadido por troncos tombados.

Os dois primeiros reentram no bosque. O último, menos convidativo, circunda a clareira e embica na direcção oposta. Por via das dúvidas, incorpora-se o espírito de Régio e segue-se adiante.

EMANUEL LOMELINO

O dia em que a música acabou (excerto) - Renata Campos

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Quando nos casamos, cumprimos protocolos pré-estabelecidos pela sociedade. A validação de que o caminho está correto vem através dos filhos, uma combinação perfeita e imposta para uma vida bem-sucedida.
Essa história poderia ser minha, mas é da Cristiane Corga e espero que inspire outras mulheres presas em cativeiros, com a alma dolorida, numa rotina sem saída.
Mãe de três filhos e inserida num segundo casamento abusivo, precisou encontrar a hora certa de morrer para renascer. Aos cinquenta anos cansada daquela arena, acreditou que a vida podia ser melhor. Se preencheu de coragem e saiu.
Durante seis anos, ficou casada com o primeiro marido, com quem teve dois filhos. A relação era movida pela felicidade e prazeres. Mas aos poucos, foi invadida pela sensação de não reconhecer quem estava ali. A brincadeira de casinha estava dando lugar ao começo da vida real. Já não cabiam mais os “felizes para sempre”, e o amor se transformou em dor.

EM - SEGUNDA PRIMAVERA - RENATA CAMPOS - IN-FINITA

domingo, 21 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 285 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

285

De nada serve abrandar ou ziguezaguear a vida por medo da morte. Fazê-lo é prescindir das cores que a primeira contém, substituindo-as pela beleza daltónica da segunda, sempre em tons esbatidos e duvidosos.

Não adianta colocar pé no travão da existência porque as pétalas do tempo não se comovem com o abrandamento do passo e seguem, flutuantes, rumo à finitude da sua queda.

Não há fontes de água-benta que impeçam o pólen de Hades de espalhar-se entre a humanidade e aumentar a sua colecção de almas.

Mais confortável é aceitar com naturalidade o fim assegurado, deixando-o navegar nos mares da ignorância, como quem espera o sorteio da loteria sabendo que as hipóteses de ganhar são superiores a qualquer outra sorte.

EMANUEL LOMELINO

Teia no jardim - JackMichel

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Certo dia, Nôrzinha foi brincar no vasto... claro... florido... jardim da fazenda, como sempre fazia após seu café da manhã. 
Correndo, serelepe, ela deu voltas... giros... giros... e... mais voltas... em torno das roseiras, craveiros, papouleiras, demorando-se um pouco mais nos jasmineiros que estavam em flor e exalavam um suave perfume único. 
Porém, em dado momento, a menininha cansou-se de tanto correr... e, parando um pouco para descansar, qual não foi a sua surpresa ao ver brilhando ao longe, sob um foco de sol, uma delicadíssima teia de aranha que, de tão leve, era soprada pelo vento.

EM - NA CORTE DE MADAME ARANHA - JACKMICHEL - IN-FINITA

sábado, 20 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 284 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

284

Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.

Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.

Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.

Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.

Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.

E tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.

EMANUEL LOMELINO