quarta-feira, 30 de abril de 2025

Devaneios sarcásticos 15 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

15

Por mais inclusivo e tolerante que se seja aos diferentes pensamentos das múltiplas doutrinas literárias contemporâneas, existem confissões que, ao pregar a boa-nova, espargem paradoxos que só criam raízes nos menos avisados.

Estas facções evangelizadoras da literacia moderna, ao mesmo tempo que se apresentam estratificadas, criam uma auréola classista pela transmissão das suas mensagens

As liturgias são ocas de coerência estilística, não por definição profética propositada, mas por défice cognitivo inerente. Não existe raciocínio lógico fundamentado na solidez de ideias inovadoras, tampouco incentivo ao arrojo.

As eucaristias são cerimónias de pretensão e ufania mascaradas de certame abrangente, não por crença filosófica, antes pelo engodo pastoral dirigido aos devotos.

Os grã-mestres usam o eruditismo e eloquência das palavras frívolas para magnetizar a crendice dos fiéis simples, num catecismo de verdades e presságios que só a eles se aplica.

Por tudo isto louvo, cada vez mais, o meu entendimento agnóstico, que me impede de ingressar nessas seitas.

EMANUEL LOMELINO

Na epístola (excerto 6) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Pedi perdão na carta que deixei presa embaixo dos anjos. Por certo, compreenderiam os rabiscos de quem tem pressa, de quem não mais se contém. Espero que entendam essa vontade ou loucura.
Não queria mais atormentá-los, nem a mim mesma. Desejei somente aquietar meu interior definitivamente e fazer valer alguma coisa que restasse, ou que tenha ficado de bom nas lembranças. Bandeira branca para me retirar de cena, da luta diária que a vida me conferia. Não estava mais disposta a continuar. A exaustão me tomou por inteiro, corpo, alma, e seja lá o que mais estivesse compondo o espaço que me cabia.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

terça-feira, 29 de abril de 2025

Epístolas sem retorno 30 - Emanuel Lomelino

Paul Celan
Imagem pinterest

Amigo Paul,

Desconheço se a tua ligação emocional com a morte era mais do que revolta por Auschwitz e, por isso, não sei se este nosso não-tabu pode, de alguma forma, ser comparável.

Apesar da liberdade que me dou ao falar amiúde sobre ela, porque morro constantemente, e ao contrário de ti, não é um fascínio mórbido que me move, mas sim a consciência lúcida de uma inevitabilidade.

Posso dizer-te que, da minha parte, a morte nunca vislumbrará medo nos meus olhos ou coração. Não me intimida pelo breu, pela incerteza do que vem depois, nem pela imagética associada.

Mesmo desconhecendo a forma como a definitiva vai reclamar-me à vida, sei que ela espera por mim e está cada vez mais próxima. E quanto mais o relógio avança menos tempo sobra para falar dela.

Espero apenas que os meus discursos, quase tão negro como os teus, não me levem a um final igual. Neste momento prefiro ser abraçado por ela do que abraçá-la.

Lúcido

Emanuel Lomelino

Entre mãe e filho não se mete a chupeta (excerto 2) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ela respirou fundo, pegou tudo de que precisava: a chupeta, por precaução, o cronômetro, a naninha e os seus peitos. Olhou para o bebê mais encantador da face da terra com o sorriso mais contagiante do mundo, olhinhos que eram capazes de derreter o coração mais congelado que o próprio oceano glacial ártico. Sei o que você está pensando: “ah, mas que exagero”. É exagero mesmo. Mães são assim. É uma tentativa de quantificar um amor imensurável. Então, o que resta é exagero.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 38 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

38

Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.

Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.

Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.

Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.

Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.

E tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 27 de abril de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 31 - Emanuel Lomelino

30-03-2025

Há uma preocupação legítima com a vulnerabilidade das crianças aos inúmeros aliciamentos feitos online. Faz-se muito ruído, até justificado, pelo desregulamento na protecção dos menores e todos conseguimos identificar os perigos a que estão sujeitos nas redes sociais. Ouvem-se brados de esquerda, protestos de direita. Apontam-se dedos às plataformas digitais, aos políticos, às autoridades judiciais, enfim, responsabiliza-se este mundo e o outro sem, contudo, tocar com o dedo na génese da ferida.

A verdade, por muito dura que soe e por mais que incomode os egos dos libertários modernos, é tão óbvia que chega a ser revoltante. Pelo menos para alguém como eu que, mesmo não advogando pensamentos conservadores, também não fica indiferente à forma como a sociedade aceita e alimenta, de braços abertos e sem contestação, a crescente ausência de valores parentais, como se o papel dos pais se resumisse à concepção e tudo o resto fosse prescindível, porque é mais fácil e cómodo deixar as crianças, entregues à sua sorte, soterradas em aparelhos eletrónicos, do que assumir a responsabilidade genética e moral de as preparar para enfrentar a realidade da vida.

Mas isso, talvez seja pedir demais a pais que desconhecem o que significa ser responsável e nunca viveram dificuldades na vida porque tiveram sempre quem desse o corpo às balas por eles.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 26 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 37 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

37

Quando, do corpo macerado pelos afagos do tempo, evolam os últimos resquícios de promessas verdes, no recanto mais esconso dos céus nascem nuvens grávidas de dor e lágrimas.

As gaivotas do pensamento, sobressaltadas pela premonição de uma aguda tempestade, guincham maus agoiros enquanto enterram os seus pousos nos grãos de massa cinzenta, como quem procura refúgio em porto seguro.

A chuva empedrada, capaz de romper a macieza do mármore, asfalta a praia da razão com dúvidas e uma película esbranquiçada desregula o raciocínio lógico.

Sem lua nem marés para dominar a intempérie da mente, o eixo do mundo desintegra-se e o corpo fica à deriva, entregue ao capricho da fortuna aleatória.

Resta esperar que alguns raios de lucidez consigam romper a densidade dos cúmulos sujos e iluminar um novo caminho, com menos obstáculos debilitantes.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 36 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

36

Sempre que mordo as palavras por dizer, falece-me o apetite de ser e fico a mastigar húmus e raízes desidratadas.

A cada frase mal proferida, expira-se-me a resistência à solitude, num abraço autofágico embrulhado em conformismo.

Pereço-me, sobretudo, nos episódios de excessiva sensibilidade autoimposta por altruísmo bacoco.

Desencarno-me a cada oblíqua troca de razões em que predominam lugares-comuns e frases feitas.

Sucumbo-me nas alvoradas indiferentes e nos pretextos crepusculares.

Fino-me na ausência de aceitação aos detalhes básicos em detrimento da grandeza fútil.

Feneço-me pela cegueira táctil à necessidade de eremitismo pontual e meditativo.

Apesar de tudo isto, o silêncio não anuncia a minha morte porque tenho morrido sonoramente vezes sem conta, tantos são os estertores lamentosos como trovões.

EMANUEL LOMELINO

Na epístola (excerto 5) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Arrancaram meu filho deste embrulho que se fez no solo e, dessa vez, somente o menino sentiu o parir. Sobrevivente, tomava-se de um pesar sem choro, os olhos procuravam lentamente reconhecer os vivos, não movia os braços, mas pedia colo, um auxílio para lhe tirar daquela hipnose. E foi acolhido entre os assombros por uma luz repentina.
Levaram Emanuel para longe de mim e do corpo, e ele foi ficando cada vez mais distante.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Pensamentos literários 22 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

22

Quando o gerador de palavras fica entupido pelo espírito rebelde da ociosidade, olho para os livros adormecidos nas prateleiras e tento adivinhar o que cada um dos seus autores faria para desimpedir o estro. Então a loucura infiltra-se nos meus neurónios preguiçosos e sai algo como isto:

A filha do capitão (Púchkin), alertada pelo Doutor Jivago (Pasternak), soube que alguns humilhados e ofendidos (Dostoiévski) cheios de orgulho e preconceito (Austen) – os miseráveis (Hugo) -, tal como Ulisses (Joyce), viveram uma odisseia (Homero), numa das viagens à minha terra (Garrett), só comparável à tragédia da Rua das Flores (Eça).

Essa gente singular (Gomes), dotada de um dom casmurro (Assis), alcançou a libertação (Márai) quando a mãe (Gorki) de Síbila (Agustina) os acolheu na loja de antiguidades (Dickens), onde só o sangue cheira a sangue (Ahkmátova) e o mito de Sísifo (Camus) leva a cem anos de solidão (Márquez) numa jangada de pedra (Saramago).

A pérola (Steinbeck) desta história foi a mensagem (Pessoa) encontrada em casa de uma família inglesa (Dinis) onde foi revelada, à dama das Camélias (Dumas), a queda de um anjo (Camilo), em 1984 (Orwell).

A história termina aqui porque Anna Karenina (Tolstói) pôs-se a falar com Madame Bovary (Flaubert) sobre El-Rey Junot (Brandão) e as minhas artérias ficaram desobstruídas.

EMANUEL LOMELINO

Entre mãe e filho não se mete a chupeta (excerto 1) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Mais uma noite chegou e, com ela, a milésima tentativa de colocar o bebê para dormir. Já são sete meses nessa peleja. Noite menos noite, ela conseguiria. No dia seguinte, também. Talvez, ainda, nas noites do mês inteiro. Lembrou-se da conversa com a família num domingo qualquer. Como era de se esperar, nesta família também tinha um dentista que rejeitava a chupeta, um psicólogo que defendia os rituais de sono, um professor que indicava exercício para estimular a psicomotricidade e uma avó que colocava linha na testa do menino para o soluço melhorar.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 35 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

35

A irregularidade das calçadas condiciona as passadas nos labirintos tricotados pelas sebes e árvores das praças e os bancos de madeira, envelhecida pelos dias, esperam com paciência os leitores de jardim e alimentadores de pombos.

Os pintassilgos sobrevoam a azáfama das formigas ao som do violinista que silencia as ociosas cigarras. Num ramo altivo, berço de densa folhagem alaranjada, dois olhos de esquilo perscrutam os canídeos que passeiam, pelas trelas, os donos hipnotizados pelos pixéis dos ecrãs iluminados.

Nas águas barrentas, dois cisnes flutuam a atenção na família de patolas que se refugiou no centro do lago, fora de alcance do atrevimento de um infante trôpego, incentivado pelos risos histéricos e babados dos progenitores.

E tudo isto é embrulhado por ciclistas, trotineteiros e patinadoras, de calções curtos e justos, que não querem destoar do equilíbrio da paisagem nem diferenciar-se dos caminhantes e corredores de circunstância.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 22 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 34 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

34

Quando o génio entra de férias, supostamente vitalícias, e as incertezas perdem terreno para a indiferença, eis que as adversidades mexem os cordelinhos e encontram sempre uma solução para se fazerem sentir, em todo o fulgor da sua inconveniência ácida.

Quando os caminhos ficam leves e consegue-se percorrê-los em ponto-morto, sem necessidade de gastos extra em esforço e desconforto, e as nuvens parecem querer revelar o brilho azul do céu diurno, eis que o fado arranja sempre um jeito de ser dedilhado tempestuosamente na paleta cinza e íngreme da sorte madrasta.

Quando o sossego é um voo planado, sereno e tranquilo, ao sabor de brisas camaradas, e os horizontes são balsâmicos na sua extensão, eis que Zéfiro acha sempre uma forma linear de boicotar a contemplação mansa das searas e sopra rajadas opacas de vinagre e absinto gelado.

Quando a vida parece lubrificada e tudo corre sobre rodas, eis que as pedras apelam ao deus dos seres inanimados e poluem as engrenagens da esperança, substituindo a mansidão pelo caos, a calmaria pela desconfiança, a paz pela teoria das cordas.

EMANUEL LOMELINO

Lita, a menina bonita (excerto) - Vieirinha Vieira

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Personagem principal da história que contava. Uma menina, apenas cinco anos, cabelos aos cachos num castanho oriado, 50 cm do chão. Cheia de vitalidade.
Filha única,habitava com a avó em Lisboa!
No dia que a avó tinha visitas, mesmo dia que por acaso Lita cometeu sua primeira asneira. Era domingo, seus tios com eles traziam uma criatura a qual só conhecia de nome, passou os olhos uma vez pela fotografia que a avó fez questão de mostrar já fazia algum tempo!

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segunda-feira, 21 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 33 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

33

Abençoadas alvoradas, e finais de tarde, em que ofereço a mim próprio alguns momentos de lazer e mato o tempo com estes exercícios de escrita, despretensiosos e sem compromisso.

São instantes que, na minha redoma de silêncio autista, permitem libertar-me dos grilhões de um fado odiado, que me consome e intoxica até ao tutano, e dão-me alento para tentar recuperar a sanidade que me foge todos os dias; a cada segundo, a cada expiração, a cada piscar de olhos.

Por mais absurda e obsessiva que esta rotina possa parecer, embrenhar-me na construção de textos aleatórios e isentos de literariedade é tão regenerador como respirar oxigénio puro para expurgar os venenos ingeridos na poluição dos dias.

Para desgraça já me chega a degeneração física natural da vida.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 20 de abril de 2025

Pensamentos literários 21 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

21

Ah, a poesia! Essa meretriz, meiga, terna, despreconceituosa e solícita, que se abre, apaixonadamente, a todo e qualquer entendimento, sem olhar a condições e proveniências, com a necessária dose de lascívia e volúpia para provocar os mais intensos e epifânios orgasmos mentais.

Ah, a poesia! Essa mestre-escola do pensamento universal e multidisciplinar, que filosofa, como um engenhoso e mecânico caleidoscópio holístico, sobre a química geográfica da biologia física (ou transcendente), e arquitecta conceitos éticos e metafísicos para a arte quântica, com precisão matemática, por ser, ela própria, ângulos e vértices da geometria do conhecimento.

Ah, a poesia! Esse paliativo catártico que regula os batimentos cardíacos dos sentidos, eliminando a palidez da existência com as cores mais fulgentes e os brilhos menos ofuscantes.

Ah, a poesia! Esse opiáceo multiforme que, depois de ser injectado nos olhos, corre pelas veias do raciocínio transformando todas as sombras em lucidez vertiginosa e permitindo as viagens mais alucinogénias pelos labirintos da razão, porque tem na sua fórmula estímulos anticoagulantes.

Ah, a poesia! Ah, a poesia!

EMANUEL LOMELINO

Na epístola (excerto 4) - Rose Pereira

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Arrebentaram a corda que me tirou o ar.
A existência abduzida de mim fluía num campo magnetizado em volta da cena, ora densa, e noutra, como se desfazendo no espaço, assistindo de perto a si mesma, e tão indiferente aos que ali se aglomeravam de maneira que já não compreendia.
Vagava. Estava só. Parecia não morrer. A sentença se rebelava contra a decisão. Incontrolavelmente tudo se passava como filme.
Meu mundo se fez outro.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

sábado, 19 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 32 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

32

Deambulando pelos trilhos da irrealidade, onde os céus alaranjados são rasgados pelas asas de criaturas fantásticas, mas nada aladas, as pedras sussurram peregrinações e as flores espirram alergias a cada gota de orvalho.

Os caminhos são percorridos em marcha lenta, quando não em ré, tal como as águas dos rios que fogem das tropelias dos oceanos grávidos e se infiltram nas margens salgadas pelo suor de sargaços em crise de identidade.

As árvores dos pomares têm os ramos entrelaçados e os abelhões de barro esculpem castanhas piladas no coração das trepadeiras para que as formigas de barriga vazia encham o bandulho antes que a orquestra de cigarras, grilos e pirilampos inicie mais uma demonstração psicadélica de artes conjuntas sem fins lucrativos.

Assistindo a toda esta cornucópia de absurdos, como uma criança a olhar um caleidoscópio, está um homem, armado até aos dentes, que se perdeu quando tentava encontrar uma espingardaria para se abastecer de munições a tempo do início da próxima guerra.

EMANUEL LOMELINO

Tudo sob controle (excerto 4) - Daniele Rangel

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O telefone do quarto tocou para anunciar que a caravana familiar chegara. A mãe ainda estava frustrada pela cesárea, usava uma sonda, mexeram nela da cintura para baixo e não sentira nada. Sem nenhuma dignidade e sem controle nenhum do próprio corpo, tentou se convencer de que tudo estava em ordem: cada pingo no seu “i”. Mesmo com alergia, mesmo com sonda, mesmo calada para não dar gases…

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sexta-feira, 18 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 31 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

31

Estou cansado das primaveras atrasadas, com flores estéreis e sem cor, espargidas de aromas inodoros. Prescindo dos favos de mel acerados pelas obreiras, sem solas nem décimo terceiro, e dos tijolos de milho prensado pelas ferraduras desenxabidas dos asnos-rei, também conhecidos como vendedores de banha-genérica – porque a banha da cobra já não compensa. 

Não quero mais esperar pelas marés de lua cheia nem pelo rodopio vertical das andorinhas acrobatas, em fins de tarde sem pôr-de-sol. Tampouco me interessam os aprendizes de Fernão Capelo, ou versões “pimba” das fábulas, onde lebres e cágados são personagens isentas de fiabilidade.

Cansei-me de todas as histórias inundadas de lugares-comuns e de oásis com palmeiras virtuosas, dromedários adormecidos, e odaliscas vergadas ao império do silicone. Já não tenho pachorra para evangelizações discursivas e esgotei a paciência nos testemunhos dos criativos de ponto cruz e bombazina.

Até os hálitos de menta e tomilho fumado deixaram de perfumar o ar que respiro, assim que estendi a toalha da fadiga e liguei a ventoinha de incenso.

Abdiquei do estéreo e voltei a mono.

EMANUEL LOMELINO

Na suave cadência das ondas do mar (excerto) - Terezinha Pereira

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Enquanto caminhava na praia com a mulher de meus sonhos - prazer tamanho do mar - entranhado no mistério de seus segredos, contei-lhe uma história.
“Era uma vez, anos atrás, um pescador que saía, dia ainda escuro, a buscar o sustento de sua amada. Mar calmo, mar revolto, ventania, tempestade, o homem voltava com o barco cheio de peixes e encontrava a mulher à espera no porto. Juntos, separavam a pesca boa para o dono do barco. Comiam do que restava.

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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 30 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

30

Olho as rugas do espelho e os brilhos solares trespassam a íris cega e irreconhecível, tornando qualquer imagem uma sombra esguia que recusa os holofotes da realidade.

Há minerais baços por detrás de cada bafo gelado e as narinas são crateras que expelem geiseres esquentados na tremedeira involuntária, de um dorso retraído e enrolado sobre si, consequência natural de mais uma morte.

Há um luto dermatológico acompanhado pelas fanfarras, nada jazzísticas, dos acordes doloridos que brotam de cada escara mal cicatrizada. As manchas avermelhadas são mapas temporais dos golpes infligidos ao ritmo da descrença, do desapontamento, do conformismo masoquista e da submissão arbitrária de todos os sentidos.

Não há verde que reanime o âmago nem andorinhas a anunciar uma nova primavera. Há caducidade em todos os poros salinos e um breu que apregoa futuras finitudes.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Contos que nada contam 40 (Cortar o mal pela raiz) - Emanuel Lomelino

Cortar o mal pela raiz

Farto de ser avaliado pelos hipotéticos feitos que lhe eram imputados, por um extenso leque de catedráticos de cortinado (seres alcoviteiros e com pouco sal nas próprias existências), Genuíno apoderou-se das rédeas da vida e deu-lhe outro rumo, sem importar-se com as reacções que essa decisão suscitaria.

Romper com hábitos adquiridos não foi tarefa fácil, no entanto, ele estava disposto a abdicar, mesmo que temporariamente, de situações que lhe eram prazerosas, consciente de que, por vezes, são necessários sacrifícios para se atingir um bem maior.

Embora nunca tenha expressado o sentimento, essa mudança de postura - mais circunspeta, fechado sobre ele mesmo – revelou-se acertada e trouxe-lhe uma paz de espírito inigualável, que passou a ser imprescindível para manter um elevado nível de serenidade e conforto mental.

Hoje, apesar de ter mais dúvidas do que certezas, Genuíno sente-se um homem seguro, com total domínio sobre a sua vida e, acima de tudo, confortável quando tem de cortar algum mal pela raiz.

EMANUEL LOMELINO

Hedera (excerto) - Susana Veiga Branco

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Amanheceu a gotejar, após uma noite de lua em quarto crescente
e de esperanças. 
Inês abriu a portada mas não lhe chegou.
Descalça, saiu, pisando a pedra e a relva molhada.
Sorvendo tragos de aroma a outono, abriu os braços ao céu, à natureza que sabe também sua.
Um gato cirandava junto a si, ainda com algum orvalho no seu pêlo de veludo.
Os primeiros raios de sol despontavam, trazendo o som do chilrear de pássaros destemidos, saltitando em ramos de árvore, espanejando as suas penas de ar e magia.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - COLETÂNEA - IN-FINITA