sábado, 4 de maio de 2024
Lavagem cerebral (excerto 4) - Luís Vasconcelos
sexta-feira, 3 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 297 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
297
Inflamam-se-me os genes da revolta quando os meus sentidos são atingidos pela imodéstia dos autodenominados vates da modernidade, que nem sequer sabem a diferença entre estrofe e estância, confundem haiku, tanka, limerick e poetrix, desconhecem o tautograma, fazem glosas sem mote, não sabem distinguir estruturalmente um soneto inglês de um italiano, de um monostrófico nem de um estrambótico e, valha-me Nossa Senhora da Língua Portuguesa, chamam acrónimos aos acrósticos.
Não se pede que todos saibam escrever odes, éclogas, elegias ou vilancetes. Tampouco se exige lirismo ou erudição específica, no entanto, saber identificar redondilhas, diferenciar trovas, canções ou baladas, não seria despiciente.
O que mais dói é conhecer alguns que até sabem muito do ofício, mas deambulam no universo da escrita com complacência pela ignorância colectiva, limitando-se ao silêncio por medo de perderem aplausos se mostrarem conhecimento acima da média.
Embora a voz deste burro não chegue ao céu, continuarei a afirmar que a maioria não sabe a diferença entre verso livre e prosa poética e que poesia e poema são duas coisas distintas.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 13) - Geórgia Alves
quinta-feira, 2 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 296 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
296
Quando a Tília oferece os seus botões ao mundo, o ar fica impregnado pelo cheiro de renovação, que nem as águas choradas tardiamente conseguem disfarçar.
O vento assobia uma valsa, apenas bailada pelas alvas gaivotas desnorteadas e alguns pardais zombeteiros, que ainda não esqueceram a fábula de João Capelo e insuflam as plumas negras.
Há um grilo cantor a imitar cigarras roucas enquanto as formigas regressam, impávidas e indiferentes à cantoria, à sua vidinha de sempre sob o olhar guloso dos piscos e lagartixas que tomam banhos de sol.
O jardim verdejante é patrulhado por dois gatos vadios que desejam encontrar um pombo distraído ou um roedor imprudente, sem deixarem de ter um olho na refeição e outro em alerta canídeo.
Tudo isto acontece, entre calçadas, nas margens do movimentado asfalto, onde a vertigem é prioridade e os insectos atropelam para-brisas e olhos nus.
EMANUEL LOMELINO
quarta-feira, 1 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 295 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
295
Ercília, sentada no seu banco de jardim favorito, interrompeu a leitura, do livro acabado de comprar na feirinha de antiguidades, para observar o jardineiro que parecia estar a conversar com as flores-de-alfazema.
Tal como ela, todos os que ali se encontravam cessaram os seus afazeres para presenciar a cena, que nada teria de inusitado se não fosse de conhecimento público, pelo menos de quem frequentava com regularidade aquele espaço de lazer e descontração, que o jardineiro era surdo-mudo.
Para Ercília, o mais inquietante daquela situação era o facto de, apesar do mutismo claro e evidente, ser invadida pela sensação de estar a presenciar um diálogo definitivo, tamanha a solenidade transmitida pelo olhar irrequieto do jardineiro e pelos movimentos lentos, mas incisivos, que ele fazia com as mãos, como quem revela uma confidência e espera compreensão.
Por breves instantes, os olhos lacrimosos do jardineiro cruzaram os seus e Ercília sentiu um ligeiro desconforto, como tivesse sido apanhada a escutar atrás de uma porta.
Nunca ninguém se deu ao trabalho de associar uma coisa à outra, mas a verdade é que aquele era o último dia de trabalho do jardineiro, antes de aposentar-se.
EMANUEL LOMELINO
Dedo na teia - JackMichel
terça-feira, 30 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 294 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
294
Por mais incompreensível que possa parecer, todos os silêncios têm um discurso acoplado e as asas das borboletas ficam mais fortes a cada batimento.
Nem todas as percepções correspondem à verdade dos factos e os hologramas, antes de serem avanço tecnológico, já faziam parte da vertente ficcional das prosas enxeridas e abelhudas.
Não esqueçamos que as pedras podem virar pó e este transforma-se em barro ou lama, dependendo da quantidade de água derramada.
Depois temos o vento que, num ápice reptílico, passa da carícia ao empurrão e tanto pode acelerar o passo como soprar contracorrente.
E santos são os caules espinhosos das rosas e os ferrões das vespas, menos perigosos do que os lábios famintos de qualquer drosera.
E tantas outras metáforas poderiam ser usadas para referir que há demasiada gente dissimulada e adepta da má-língua, da bisbilhotice, da difamação, da intriga e do falso-testemunho.
EMANUEL LOMELINO
O poder das ancas (excerto 3) - Monica Rocha
A fantástica fábrica de rapaduras (excerto 2) - Maria Aliender
segunda-feira, 29 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 293 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
293
- Ó padre Frederico! Perdoe-me a franqueza, mas às vezes fico a pensar que o doutoramento em teologia ajuda-o a salvar almas, mas nunca o preparou para identificá-las.
- Porque dizes isso, meu filho?
- Então, ao fim de vinte cinco anos é que você deu conta que o Peliça era um falso sem-abrigo afogado em dinheiro? Acaso pensou que a alcunha que lhe demos tinha outra conotação?
- Ele sempre me pareceu tão maltrapilho como os restantes. Nunca vi nada que o diferenciasse, à parte de estar sempre disponível para ajudar nos eventos sociais da paróquia. Quanto à alcunha… pensei que fosse por ele estar sempre de luvas e vocês apenas estivessem no chiste.
- Haja ingenuidade, padre Frederico! Desde quando é que um sem-abrigo anda de luvas cirúrgicas, com a barba aparada e sem sarro no rosto?
- Pois…
- Bem, ingenuidades à parte, o importante é preservar a memória do Peliça, como todos o conheceram, pelo tanto que ele fez aqui, e nos termos que ele deixou em testamento. Como beneficiários, temos a obrigação moral de retribuir o altruísmo e a generosidade destes vinte cinco anos. Ninguém fez tanto por esta comunidade quanto ele. Tampouco de forma anónima e despretensiosa.
- Paz à sua alma!
EMANUEL LOMELINO
Lavagem cerebral (excerto 3) - Luís Vasconcelos
domingo, 28 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 292 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
292
Reconheço a precaridade dos meus passos e as responsabilidades alheias que coloquei nas costas quando, eu próprio, sentia a necessidade de outras latitudes, outros encargos, mais sensatez.
Porventura, deixei-me ficar no lado de cá do horizonte por achar que escalar outros cumes seria um acto de egoísmo descabido e só conheci a indiferença depois de muitos sapatos gastos.
O discernimento conquista-se a conta-gotas e a consciência precisa ser destilada para que a razão venha à tona. Por isso, só agora, passado o equador da viagem, é que dei conta do caminho circular – para não dizer espiral – que tenho trilhado.
Arrependimentos! Na prática nenhum porque, instintivamente, nunca fui acumulador de tralhas e abandonei algum lastro basáltico nas margens do esquecimento. Mas não se aflijam os ambientalistas porque deixei tudo bem acondicionado em embalagens recicladas e nos respectivos aterros.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 12) - Geórgia Alves
sábado, 27 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 291 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
291
Quisera ser tempestade ribombante para, com a luminosidade dos raios e rouquidão dos trovões, atormentar as dualidades das marés lunares.
Quisera ser vulcão e cuspir rios de lava abrasadora sobre as vulnerabilidades infundadas que, quais etiquetas inamovíveis, falsamente denigrem o carácter mais brando e casto.
Quisera ter a acidez vernácula para combater a violência covarde de quem se esconde nas sombras do anonimato e depois passeia, altivo e de saltos altos, nas vergonhosas passadeiras vermelhas do engodo.
Quisera ter todos os verbos à flor da pele para, com a língua afiada, romper a brandura dos discursos, chamar os bois pelos nomes e colocar os pontos nos “is”.
EMANUEL LOMELINO
Reflexões (excerto) - Renata Campos
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 290 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
290
Os aforismos vivem e respiram em cada verso criado pelas almas noctívagas, sedentas por estancar silêncios e arruinar sossegos mentais.
As penas – nunca plumas – são torneiras abertas aos discursos atormentados, sem saberem que as tormentas maiores estão nos olhos da posteridade.
O maior sofrimento é sentido pela folha de papel por reciclar, por não ter história além daquela que lhe tatua o corpo em pigmentos desbotáveis e com prazo de validade.
Quanto ao vate… de pouco lhe serve o entendimento e um descodificador de ideias e processos porque tudo fica perdido na ausência de rasuras e notas de rodapé.
Mas, apesar de tudo ser efémero, desde a concepção até à fogueira, existem momentos de poesia que respondem às leis da natureza. Porque nada se perde, tudo se transforma e renova.
EMANUEL LOMELINO
Encontro com a teia - JackMichel
quinta-feira, 25 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 289 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
289
Olavo descobriu, muito cedo na vida, que era apaixonado pela escrita. Construía frases a partir de uma ideia base, encadeava-as de forma cirúrgica e precisa, e nasciam textos que encantavam todos aqueles que os liam, embora ele sempre tivesse alguns reparos a fazer e nunca os desse por terminados.
O acto de escrever era, por si só, um momento de regozijo, libertação e êxtase, e todos esses sentimentos juntos faziam-no sentir-se plenamente realizado, mas nunca satisfeito. Por isso, muitos ficaram surpreendidos quando decidiu dedicar-se profissionalmente à escrita.
Sabendo, de antemão, que o percurso de um escritor nunca é fácil, e porque um bom livro não aparece feito de um momento para o outro, como num golpe de mágica, Olavo começou a fazer traduções das obras mais emblemáticas da literatura universal, de modo a conseguir um rendimento que lhe permitisse subsistir enquanto trabalhava, com afinco, na sua própria obra.
O tempo foi passando… passando… passando e, porque o seu livro de estreia teimava em não surgir, alguns amigos começaram a interrogá-lo sobre a demora. Rapidamente descobriram que, a cada nova tradução feita, Olavo sentia necessidade de reescrever todo o seu material porque tinha-se deparado com alguma técnica, estilo ou abordagem que achava pertinente incluir no seu livro.
Hoje, muitos anos após a sua morte, Olavo é uma referência para a maioria dos tradutores de obras clássicas, pela qualidade das quase duzentas traduções que fez. Já em relação ao seu livro… apesar das múltiplas vezes que o reescreveu, ele nunca viu a luz do dia por uma questão de perfeccionismo exacerbado.
EMANUEL LOMELINO
O poder das ancas (excerto 2) - Monica Rocha
A fantástica fábrica de rapaduras (excerto 1) - Maria Aliender
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 288 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
288
A passo lento, Rómulo pisa a calçada, ainda húmida do orvalho matinal, como quem tem uma pedra no sapato e as meias encharcadas.
No rosto, carcomido pela insónia, leva estampada uma história de tormentas cosidas a desencontros e linhas tortas. No canto do olho, como em todos os dias amargos, carrega o reflexo de lágrimas por libertar, que nem a cacimba é capaz de disfarçar.
O manto puído dá-lhe o poder da invisibilidade perante a turba que se acumula junto ao semáforo, sem tempo para olhar o mundo tal qual ele se apresenta.
Ao ronco das entranhas, Rómulo responde colocando a sua mão boa – a que tem menos escaras vivas – no que resta do bolso direito. Saca a côdea do desafogo das últimas semanas e, com a prática de um golpe de indicadores, solta duas migalhas que leva à boca salivante.
Olha em redor, como quem anseia ver algum conhecido, e regressa, inexpressivo, ao interior da caixa de frigorífico, onde se abriga nas noites selvagens de Inverno, para mais uma tentativa de hibernação – o sono pode não ser pacífico, no entanto, tem o condão de apaziguar o estômago por mais algumas horas, até à próxima dose de migalhas.
EMANUEL LOMELINO
Lavagem cerebral (excerto 2) - Luís Vasconcelos
terça-feira, 23 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 287 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
287
Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.
Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um violão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.
Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.
EMANUEL LOMELINO