Diário
do absurdo e aleatório
110
Tibério
olhou a paisagem e decidiu que aquele era um bom lugar para descansar. Encostou
a mochila na base de uma oliveira, descalçou as botas, que lhe vinham torturando
os passos, tirou as meias rubras de sangue e mergulhou os pés macerados no pequeno
e cristalino ribeiro, deixando que a correnteza lhe limpasse as feridas.
Suportou
o doloroso incómodo sem perceber se a dor sentida era provocada pela
temperatura, quase gelada, da água ou pelo contínuo toque do líquido nas inúmeras
chagas abertas.
Tentou
abstrair-se das moléstias centrando a sua atenção no vale que se estendia
diante dos seus olhos. Lá, bem ao longe, ainda vislumbrava a pequena vila onde
estivera, pela manhã, na intensão de comprar alguns mantimentos, mas cuja carga
energética fez com que apenas a atravessasse, como quem foge de uma alcateia faminta.
Desde o primeiro instante, sentiu que não era bem-vindo. Os olhares
inexpressivos de todos - das crianças pequenas até aos velhotes enrugados - eram
aguçadamente mais ameaçadores do que o tráfico veloz de uma autoestrada
movimentada. Tibério sentiu que, a qualquer momento, podia ser abalroado pela
fúria explosiva que esses rostos tinham, mas escondiam.
Tal
como sucedera, dois meses antes, quando decidiu abandonar toda a sua vida na
grande metrópole, para não ser contaminado pela idiotice dos pensamentos
modernos, também a fuga da pequena vila o fez reflectir na sua postura. Ainda
não conseguia entender se estava a ser fraco ou audaz porque não sabia
identificar a ténue linha que separa a covardia da coragem.
A
única certeza de Tibério era não ter forças, nem espírito, para enfrentar a
mentalidade mentecapta das novas gerações que, na escassez de argumentos
lógicos e válidos, tentam impor, através do confronto físico, as suas revoluções
ideológicas. São moralistas sem moral (manifestam-se, despidos, contra a nudez
de estátuas); idealistas sem ideias (são desocupados a lutar em favor do ócio);
são incoerentes nas suas redundâncias (querem um modo de vida ambientalista,
sem extração de minério nem combustíveis fósseis, mas não abdicam dos seus
telemóveis de quartzo, gálio, lítio, tântalo, tungsténio, entre outros minerais,
tampouco abdicam de usar poliéster sintético, acrílico e spandex nas suas
tendas de campanha).
No
meio dos seus pensamentos, Tibério deu conta de estar a ser observado, do outro
lado do ribeiro, por uma lebre. No momento que os olhos de ambos se cruzam, o
pequeno animal moveu a cabeça, que o humano entendeu como um gesto de aprovação.
Hoje,
Tibério é um eremita, completamente afastado do mundo moderno e, ao contrário
dos contestatários de fachada, vive a sua noção de sustentabilidade sem impor,
seja o que for. Aprendeu que medo e valentia andam de mãos dadas, e um acto
corajoso vindo de um cobarde ou demonstração de fraqueza de um bravo têm o
mesmo valor.
EMANUEL LOMELINO