segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 11 - Emanuel Lomelino

06-08-2023

Levantou-se um vento autoritário que varre tudo, inclusive a firmeza de ideias, qual censor desgaseificado.

Com a força do seu sopro, voam crenças, fés, certezas e uma ou outra resolução, que nem teve tempo para se vestir de gala porque, quando se perde a convicção, não vale a pena coser o bolso das calças.

Dizem que é tudo alteração climática, mas eu acho que é muito mais que isso. Sinto, na pele, que esta brisa desconfortável – que pica mais do que arame farpado ou agulhas de costureira – é uma onda de ar idiota e destemperado cuja missão é apenas instalar a discórdia.

Noutros tempos, talvez não tão humanos, mas com certeza mais, saudavelmente, filosóficos, haveria espaço para debate produtivo sobre a matéria e, entre os vários argumentos, encontraríamos alguma solução pacífica para combater este fenómeno.

No entanto, as sociedades modernas abraçaram o sedentarismo extremo e a preguiça não permite o pensamento livre. Os conceitos válidos são os básicos, que não demandam raciocínio e vigora a lei de quem gritar mais alto tem razão.

O único ponto positivo de tudo isto é que já existem por aí muitos moinhos de vento e a produção de energia eólica pode vir a ficar mais em conta e assim vai ficar mais barato comprar calças e sapatos novos.

EMANUEL LOMELINO

Nadando contra a maré (excerto) - Daniela Mendes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A reflexão sobre o conceito de estrangeiro, como alguém que sente que pertence a outro lugar, ressoa profundamente em mim.
Desde a minha infância, sempre me senti como se estivesse habitando uma terra estranha dentro de mim mesma, uma terra cujas fronteiras emocionais se estendiam para além do meu corpo físico. Uma sensação de que pertencia a outro lugar que não aquele que eu estava. E não se tratava apenas de uma desconexão física com o lugar onde eu estava, mas sim de uma percepção intrínseca de desajuste, como se estivesse constantemente nadando contra a maré.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

domingo, 29 de setembro de 2024

Ao pé-da-letra 5 - Emanuel Lomelino

Ao pé-da-letra 

5

Já ninguém acode ao “aqui d’el rei” porque quem manda é o umbigo e os aflitos de hoje são mais do que as mães.

Já ninguém acredita no “olh’o lobo” porque deixaram de existir cordeiros e todos estão iludidos com a possibilidade de serem predadores.

Já ninguém aceita “descalçar a bota” porque os caminhos são pontiagudos e não há quem se dê ao trabalho de grandes trabalheiras.

Já ninguém quer saber das “pedras no sapato” porque os sapateiros são espécie em vias de extinção e as meias-solas estão fora de moda.

Já ninguém grita “fogo” porque, em vez de bombeiros, os primeiros a chegar são os inúteis alarmes ambulantes pixelizados, que desconhecem a existência de baldes e mangueiras e, tampouco sabem como se abre uma torneira, ou o que é uma boca de incêndio.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 28 de setembro de 2024

Lomelinices 23 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

23

Não há mal algum em ser-se ambicioso, desde que haja plena consciência das dificuldades e não exista medo de enfrentar qualquer Adamastor que cruze o caminho traçado.

Não há inconveniente algum em ter-se objectivos desde que exista uma vontade férrea e inabalável de ultrapassar todos os obstáculos, por mais árdua que seja a tarefa.

Não há indolência alguma em querer alcançar-se determinadas metas, desde que exista total comprometimento e convicção da utilidade de cada jornada.

Não há arrogância alguma em desejar um aprimoramento pessoal, desde que exista clareza sobre a legitimidade daquilo que se pretende obter.

Só há problema quando não existe tolerância aos pequenos fracassos, boa capacidade de recuperação das inúmeras quedas que sempre acontecem, resistência às dores dos hematomas.

Só há entraves quando não existe ética de trabalho, grau de resiliência necessário para superar a grandeza dos desafios, sobriedade para distinguir as lutas que podem ser travadas.

Só há limites quando não existe espírito de sacrifício, determinação para aceitar os percalços como aprendizado, coragem para transformar as fraquezas em força renovada.

Só há embaraço quando não existe esperança em superar as próprias limitações, coerência nos passos que devem ser dados, humildade para aceitar voltar ao ponto de partida e recomeçar.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Lomelinices 22 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

22

Tento dedilhar a guitarra da vida, mas os acordes são disformes e não sou capaz de criar uma harmonia que não me fira os ouvidos. Definitivamente não sou músico.

Tento pintar a tela da vida, mas as pinceladas saem irregulares e não consigo acertar nas tonalidades, sombras e brilhos que contrastam com aquilo que quero retratar. Infelizmente não sou pintor.

Tento esculpir o rochedo da vida, mas os vértices que faço ficam rombos a cada passagem do escopro e a burilagem é tão desgastante que apenas consigo gravar migalhas. Compreensivelmente não sou escultor.

Tento refinar os troncos da vida, mas os sulcos que moldo são incompatíveis com os encaixes que modelo e os entalhes ficam tão amorfos que nem as fogueiras os querem como lenha. Miseravelmente não sou marceneiro.

Tento avigorar o ferro da vida, mas não tenho habilidade para dar à forja o calor suficiente para temperar o metal, que quebra na primeira martelada e o pesado malho trilha-me as mãos mais do que me fortalece. Categoricamente não sou ferreiro.

Perante tão humilhante incompetência, conclui-se que é a vida que me dedilha, pinta, esculpe, refina e avigora, e eu sou simplesmente a obra do seu ofício.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Lomelinices 21 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

21

É tão, absurdamente, fácil ficarmos retidos nos muros das dúvidas e esquecermos os malefícios da inércia quando optamos por encontrar uma estrela guia em vez de desbravarmos as heras que cobrem os caminhos.

É tão, insanamente, fácil ficarmos paralisados diante dos rochedos das incertezas e olvidarmos o propósito que nos devia mover quando decidimos encontrar um trilho que nos leve ao topo do obstáculo em vez de procurar contorná-lo.

É tão, ridiculamente, fácil ficarmos parados defronte do oceano de hesitações e ignorarmos os desígnios que levam a prosseguir quando nos fixamos no medo de afogamento em vez de fabricar o remo que falta à embarcação que nos pode levar à outra margem.

É tão, insensatamente, fácil ficarmos iludidos nos jardins do sedentarismo e alegarmos um propositado embargo à nossa missão quando não temos confiança suficiente na alternativa e fingimos que tudo faz parte do plano.

É tão, humanamente, fácil ficarmos abismados nas florestas de indefinições e perdermos o controlo das prioridades quando desviamos o foco dos nossos intentos e nos deixamos enredar pela desproporcionalidade entre o esforço necessário e o prémio que nos espera no final da jornada.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Contos que nada contam 26 (A confiança de Abílio) - Emanuel Lomelino

A confiança de Abílio

Na aldeia, todos conheciam Abílio pela sua autoconfiança e abnegação. Em todos os projectos que abraçava, o nível de entrega só era comparável à esperança que depositava no sucesso da empreitada. E mesmo quando as coisas não funcionavam, o que acontecia maioritariamente, ninguém o via cabisbaixo ou entristecido. Logo enveredava por outros caminhos com a máxima determinação e positividade, como se tudo fossem flores.

Todos admiravam a sua capacidade de superação aos desaires, mas também sentiam pena que alguém tão firme e convicto tivesse mais fracassos do que sucessos. E mais pena tinham por ver que, a cada novo desafio, Abílio saia prejudicado, não por incompetência, mas por estar cercado de pessoas menos resolutas, de menor resistência às adversidades e que sempre roíam a corda, deixando-o arcar sozinho com as consequências.

Embora nunca se tivesse deixado abalar pelos inúmeros insucessos, bem pelo contrário, Abílio começou, pouco a pouco, a abdicar de ajudas externas, preferindo entregar mais de si do que depender dos demais. E isso porque, a experiência ensinou-lhe, por mais resiliente que alguém seja, de tantas pancadas sofridas, um dia a confiança capitula. Principalmente a confiança nos outros.

EMANUEL LOMELINO

Não sou de lugar nenhum (excerto) - Fernanda Diniz

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Saí de casa antes de completar 18 anos para fazer faculdade. Sofri, chorei e cresci muito nesse período. Eu era uma menina do interior vivendo meus desafios: cidade grande, morar sozinha, pegar ônibus, aprender a cozinhar, lidar com saudades e distâncias. E não tive medo de, quatro anos mais tarde, arrumar as malas e voltar para a casa de minha mãe.
A vida fora não sorria tanto assim e eu pedi colo. Voltei para o ninho, para meu lugar seguro e aconchegante. Outros quatro anos se passaram e lá estava eu fazendo as malas outra vez, agora para aproveitar uma oportunidade de trabalho na cidade em que meu então noivo morava.

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terça-feira, 24 de setembro de 2024

Lomelinices 20 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

20

Sabes Mundo, vive em mim uma empatia pelas lutas que travas na actualidade e revejo-me em muitos dos novos conceitos que agora defendes, porque os considero importantes e revestidos de lógica irrepreensível.

Mas, responde-me Mundo, por que razão a execução das ideias boas vem sempre atrelada a acções que desvirtuam a pureza do que professas? Como justificas a defesa das liberdades com a criação de outros cárceres? Qual a legitimidade de suprimir pensamentos retrógrados com ameaça e perseguição? Em que medida é correcto punir quem deseja validar as filosofias modernas através do diálogo? Porventura, esta atitude de imposição não te faz relembrar os tempos sombrios que viveste? Acaso esqueceste a história que te trouxe até este momento?

Sabes Mundo, um dia inventaste um adágio, mas algures deixaste de acreditar na moral que comporta. E porque “de boas acções está o inferno cheio” acho que decidiste revelar-te como o inferno na terra, em tempo real. É assim tão complicado derrubar muros sem o uso de argumentos e posturas bélicas? É assim tão difícil abdicar de condutas conflituosas? É impossível mudar as coisas sem refregas abertas e permanentes?

Sabes Mundo, por vezes dou por mim a pensar na tendência repetitiva que tens revelado ao ferires-te amiúde, como fosses a definição de masoquismo. O meu temor é que, enveredando por este caminho de trevas constantes, acabes por cogitar a possibilidade de mudares a tua dieta e te tornes autofágico.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Lomelinices 19 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

19

O mundo desembaraçou-se de absolutismos geográficos, ditaduras físicas e embargos cerebrais em nome da evolução da espécie, no entanto, agora erguem-se muros de intolerância, fronteiras de radicalismo, extremismos de carácter.

Saímos de dois milénios de dogmas e estigmas para mergulharmos numa era de paradigmas irracionais e verdades forjadas apenas porque tudo deve ser desmoronado, mesmo o que deveria estar solidificado.

Mudou-se o cimento autoritário pelo despotismo cimentado. Substituiu-se a imposição da força pela força da imposição. Trocou-se a luta por liberdade pela liberdade de lutar. Alterou-se a defesa de valores pelos valores de ataque.

O mundo transformou-se num gigantesco paradoxo em tão ínfimo espaço de tempo que temo estarmos a caminhar para a loucura coletiva.

Tudo isto faz-me lembrar a história verídica daquele que foi diagnosticado com obsessão compulsiva por, a toda a hora, desinfetar-se da cabeça aos pés. Todos o recriminaram e chamaram de louco, e no momento em que saiu do sanatório, terminado o tratamento forçado e dado como recuperado, o mundo passou a esfregar-se com álcool-gel.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 22 de setembro de 2024

Lomelinices 18 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

18

Odeio que façam algo em meu lugar, tampouco gosto de adjudicar trabalhos a terceiros, porque os “voluntários” e “solícitos” julgam que qualquer uma das situações faz de nós eternos devedores de um favor que nunca foi pedido, e por vezes até já foi pago.

Odeio as frases feitas porque são sinais de alerta para a presença de alguém que nada de novo tem para acrescentar, por preguiça de formular uma opinião própria.

Odeio as conversas de circunstância que só existem para expressar o quão insonsa é a comunicação entre os envolvidos e servem apenas para matar o tempo até que algo interessante aconteça a um dos intervenientes.

Odeio as perguntas que exigem uma resposta monossilábica, porque demonstram o completo desinteresse do questionador sobre o questionado.

Odeio os exaustivos e enfadonhos discursos, multitemáticos, proferidos na sequência de uma pergunta concreta e objectiva, como se a questão fosse abstrata e abrangente.

Odeio a falsa exacerbação dramática e a exaltação excessiva de regozijo, porque ambas padecem de exagero tão desmedido quanto desnecessário.  

Odeio os elogios fáceis porque são os mesmos que fazem a outros. O elogio devia ser como um cartão de cidadão ou bilhete de identidade: pessoal e intransmissível.

Odeio tantos outros comportamentos de incoerência, mas não tenho tempo para detalhá-los como estivesse a compilar uma tetralogia sobre gente de múltiplas máscaras.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 21 de setembro de 2024

Contos que nada contam 25 (O fado do Fanã) - Emanuel Lomelino

O fado do Fanã

Fanã, mesmo estando atrasado, como sempre, abrandou a passo, antes de entrar na casa de fados, onde Dália ia actuar, nessa noite. Esbarrou em dois sujeitos que bloqueavam a entrada. Pediu desculpas por ser desastrado e foi até ao balcão, com um sorriso ardiloso colado nos lábios e uma carteira acabada de colar-se aos seus dedos experimentados.

No momento em que se preparava para ver o produto da sua manha, ouviram-se os primeiros acordes da guitarra portuguesa. Apesar dos seus quase cinquenta anos e ter ganhado fama de durão, ele nunca foi capaz de fazer, fosse o que fosse, quando ouvia o trinar de uma guitarra. Era como se o instrumento tivesse um poder hipnótico sobre si.

No momento seguinte, aproveitando o silêncio que a música provocou na sala abarrotada de gente, a voz rouca, mas doce, de Dália ecoou-lhe até ao fundo da alma.

Quase por instinto, abriu a carteira que havia surripiado na entrada e a primeira coisa que viu foi uma foto de família.

- Maldita sejas, Dália! – murmurou entredentes.

Foi até à porta, onde ainda estavam os dois sujeitos, e disse, esticando a mão para um deles:

- Acho que isto lhe pertence.

Sem esperar resposta, voltou para o seu lugar, no balcão. Cruzou o olhar com Dália, que lhe sorriu, orgulhosa, enquanto cantava “O fado do malandro arrependido”.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Epístolas sem retorno 16 - Emanuel Lomelino

Natália Correia
Imagem pinterest

Saudosa Natália,

Poderia falar-te do talentoso impacto açoriano nas artes lusas, a que tão meritoriamente pertences.

Poderia dizer-te algumas palavras sobre a decadência morfética que tem sobrevoado a literatura nacional nas duas últimas décadas.

Poderia confessar-te a falta que faz uma língua afiada, e sem papas, como a tua, para colocar alguns pseudointelectuais da modernidade no devido lugar.

Poderia dissertar sobre a realidade crua do nosso país-pátria ou da melancolia que grassa na nossa terra-mátria.

Poderia falar-te de tudo isso, e mais algumas coisas, mas, desde que expuseste o Morgado, os capados ganharam protagonismo e querem censurar os sexos para dar espaço aos géneros eunucos.

Da geração quase extinta

Emanuel Lomelino

Colcha de retalhos (excerto) - Christine Marote

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Sempre fui estrangeira, mesmo antes de ter consciência disso. Mudanças fazem parte da minha história de vida, e não é de hoje que digo isso. Depois de mudar várias vezes de casas, bairros, cidades e estados, mudei de continente. Fui para o Oriente.
Foi somente na China que comecei a olhar para trás e perceber que ali estava eu, fazendo, uma vez mais, o que sempre fiz: me adaptar às circunstâncias. E logo constatei que não importa, aonde eu for, carregarei comigo esse espírito de mudar, recomeçar.

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quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Lomelinices 17 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

17

Na dúvida do que está por vir e enquanto não surge a certeza do futuro, embrenho-me na escrita, tal qual a penso e sinto, mas sempre na esperança de que cada mote se justifique por si mesmo, sem me explicar.

Não falo de mim nem me denuncio, porque sou abstrato, livre e obcecado pela minha privacidade. Antes crio meadas que teço com os fios velhos que reaproveito. Antes burilo gemas sem brilho que encontro nos troços que percorro. Antes cultivo as sementes do raciocínio, que é comum ao mais comum dos mortais. Antes cinzelo ideias universais com a perícia de quem desconhece tudo, mas suspeita. Antes refino o carvão dos sentidos e dou corpo de diamante às palavras que uso. Antes lavro pensamentos vulgares com fitas coloridas e enfeitadas de verdades.

Depois sou engolido pela noção errada das interpretações que me fazem por ser avaliado pelo que escrevo, como se isso, de alguma forma imperativa, pudesse definir o meu mais recôndito, misterioso e oculto interior.

O homem existe, somente, na intimidade de mim e para conhecimento de quem está próximo. O que está além disso é apenas sombra e o instrumento que dá corpo ao autor.

Esse sim, encontra-se, em toda a plenitude e substância, regido pelo devaneio de dar a conhecer a sua capacidade instintiva de criar a partir do zero. Esse sim, tal qual um heterónimo, merece interpretação, nunca pelo que é, mas pelo que constrói com o estro vulgar que detém e trabalha.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Lomelinices 16 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

16

Há um contragosto fatigado e dorido que fere a vontade de mudança rumo ao júbilo.

Existe uma feroz tristeza, que é real e inibe o ambicioso desejo de subir, degrau após degrau, até patamares mais ousados.

Permanece a inoportuna febre que restringe as passadas necessárias para que o arrojo triunfe.

Há um fúnebre cansaço que pesa no corpo como quem proíbe uma progressão legítima e impede o regozijo da glória.

Permanece uma indolente escravidão, sem grilhões, mas bem mais carcerária que as celas de Alcatraz, que dificulta a mais insignificante conquista.

Há uma fragilidade prenhe de restrições que prende os movimentos suaves e singelos, como quem maniata os avanços mais naturais e precisos.

Existe um melancólico acanhamento do ânimo que, pouco a pouco, desfalece por inércia imposta pelas punitivas circunstâncias de todos os dias.

Permanece o insucesso do querer por imposição de um dever odiado, mas crucial para que as metas sejam cruzadas.

Há, existe e permanece um temor ofegante de que todo o esforço despendido seja inócuo e em vão.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Lomelinices 15 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

15

Nasce-se para se morrer, independentemente daquilo que se fizer no intervalo.

Já nasci e morri tantas vezes que a cronologia natural desses feitos deixou de fazer sentido.

Todas as mortes foram diferentes, enquanto os nascimentos foram tremendamente dolorosos para mim, com excepção do primeiro, cujas dores nem recordo.

Nasci e morri de tantas formas distintas que, em algumas delas, senti-me um personagem de Lovecraft.

Foram tantos os partos que nem deu tempo para fazer certidões de nascimento, porque as mortes estavam ao virar da esquina.

Foram tantos os óbitos que nem a necrologia conseguiu acompanhar e ninguém foi notificado.

Morri e renasci tantas vezes que já nem gato sou.

Com tantas parições e falecimentos foi-me permitido confirmar que, por mais que se faça tudo certinho em cada vida, de múltiplas e diferentes formas possíveis, nunca seremos capazes de impedir o desfecho final. E essa circunstância implica que no final das contas, o número de nascimentos será sempre igual ao de mortes.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Lomelinices 14 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

14

Não existe falácia na ânsia causada por um silêncio violado pela maliciosa verve, intencionalmente impostora, que fere de garras afiadas os órgãos mais frágeis, como lâmina aquecida a perfurar matéria inflamável.

Não há remorso nas labaredas que beijam os sentidos na esperança de postular uma cauterização lenta até ao cessar dos dias, como a queda num precipício infindo.

Ninguém percebe a vontade intrínseca do sal líquido derramado como consequência do fétido ardor que um verbo pode causar quando penetra o interior imaculado – como floresta virgem - isento de mágoas e nódoas.

Ninguém entende a extensão dos danos perpetrados pela radioatividade das palavras ácidas, propositadamente regurgitadas como cuspidela traiçoeira de um réptil mal-intencionado.

Ninguém compreende o desgosto de um tímpano ferido de inverdades. Há um mórbido desejo de surdez permanente, que é herético, mas apetecido como água fresca em dia desértico.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 15 de setembro de 2024

Contos que nada contam 24 (A colecionadora de cores) - Emanuel Lomelino

A colecionadora de cores

Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, Conceição respondia, sem hesitações:

- Colecionadora de cores.

Esta resposta fazia os adultos rirem, mas Conceição não entendia onde estava a graça. Ela falava a sério. Queria mesmo ser colecionadora de cores e não havia no mundo quem fosse capaz de demovê-la de tal propósito.

Ninguém sabe se esses risos impulsionaram o seu desejo, mas a verdade é que hoje todos a conhecem, como Conceição das Cores, e formam enormes filas à entrada de sua casa para verem a maior colecção de cores do mundo.

Diz quem já lá esteve que a colecção é tão vasta e tão completa que, a cada nova cor adquirida, os olhos de Conceição foram-se transformando nos artigos mais raros da colecção e agora são dois enormes arco-íris.

EMANUEL LOMELINO

Às margens do desencaixe (excerto) - Carolina Becker

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A condição de estrangeira sempre me habitou, sempre carreguei uma sensação de deslocamento do mundo. Sentia e ainda sinto que quase nunca me encaixo no que acontece ao meu redor: deslocada no tempo e no espaço, me percebo à margem, habitando fronteiras e sendo mal compreendida.
Desde cedo, eu “chorava por qualquer coisa”. O choro era meu sinal de incompreensão do mundo, da violência que via nele e não conseguia abstrair, dos jeitos esquisitos de se portar em sociedade que não faziam sentido mesmo para minha pequena e restrita percepção. Para os que estavam fora de mim, apenas uma criança quieta e chorona.

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sábado, 14 de setembro de 2024

Lomelinices 13 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

13

Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Lomelinices 12 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

12

O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Lomelinices 11 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

11

Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

EMANUEL LOMELINO