Diário do absurdo e aleatório
338
Neste tempo que é o meu, os anos são cúmulo de água, cloreto de sódio, sangue, reticências, pontos e vírgulas.
Reúnem-se dores e lamentos que se transformam em bagagem-de-mão e escalam-nos até aos ombros, para terem uma vista privilegiada dos horizontes que nos esperam.
Os caminhos; os elementos; as ideias; os anseios; as esperanças; as derrotas; os contratempos; tudo são facas de gumes afiados preparadas para cortar a derme à primeira oportunidade; ao primeiro deslize; à primeira desatenção; ao primeiro baixar de guarda.
Noutro tempo que também foi o meu, as cicatrizes (físicas e mentais) eram medalhas de crescimento e a sensibilidade recusava ficar à flor-da-pele e nunca despertava por dá-cá-aquela-palha.
Os monossílabos não originavam depressões. As encruzilhadas não provocavam ansiedade. Os arrufos não geravam separação. Os atritos não empunhavam belicismo. Todos sabiam que a banha da cobra era escorregadia e o óleo-de-fígado-de-bacalhau sabia mal, mas nem por isso havia dúvidas existenciais nem associações de apoio a seres cheios de não-me-toques.
EMANUEL LOMELINO
Sem comentários:
Enviar um comentário
Toca a falar disso