sábado, 18 de maio de 2024
A qualquer hora da noite (excerto 16) - Geórgia Alves
sexta-feira, 17 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 311 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
311
Embrulhado no desconforto agudo de mais uma manhã, observo o envelhecimento acelerado das mãos e sinto as correntes enfurecidas dos rios que pulsam em cada uma das veias, como houvesse uma urgência líquida a irrigar os novos desfiladeiros da pele.
Por momentos vejo a geografia dos poros e as contrações dermatológicas são proporcionais à assustadora dilatação obtusa dos dedos – gigantes cansados e doloridos – que gritam sensibilidade e incómodo.
Esfrego os mapas nascidos nas palmas, numa tentativa vã de acender novos focos de resistência, mas o calor emanado simplesmente serve para confirmar a perda de capacidade hermética causada pelas calosidades dos dias e pela erupção vulcânica das escaras que enfurecem à primeira fricção.
Neste processo descubro que as mãos já não servem para guardar segredos nem para fazer truques de magia.
EMANUEL LOMELINO
quinta-feira, 16 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 310 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
310
Dá-me graça assistir, desta poltrona sem foco, à modéstia exibicionista de alguns pseudoautores que, com penas sem tinta e lavras emprestadas, passam por ícones imaculados e assertivos.
A história repete-se, em círculos herméticos, com discursos de ocasião, cheios de frases batidas em castelo e clichês feitos por encomenda.
Por muito penoso que seja, não sobra alternativa que não passe por parabenizar, estes arautos da comunicação, pela ousadia e confiança com que fabricam os seus currículos, repletos de valências nuas de significado e importância, mas que, aos olhos dos beijadores de rabos, chegam como bacharelatos.
Há que dar mérito a quem, apesar dos engodos e falinhas mansas, enchem salas de iludidos e os bolsos de celebridade.
Tudo o resto é rodapé de outras prosas sem holofotes.
EMANUEL LOMELINO
Uma vez... em Aranhol - JackMichel
quarta-feira, 15 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 309 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
309
As palavras soam a pombas brancas quando flutuam no encanto do olhar lacrimejante. Um arco-íris espalha a magia colorida do sentimento fervente. Soltam-se odes melodiosas, qual sinfonia celestial. O tempo desacelera. O entorno deixa de existir. Os raios de sol ocultam-se. O mundo para.
As preces vagueiam entre o pedido de absolvição e a necessidade de bênção, como se o clamor das frases feitas tivesse o poder de apagar memórias, escaras e elos quebrados. Nas sombras, há um desfilar de dedos e teias de aranha. A presença obscura de arrelias, vacuidade e déjà vu são parcelas de uma equação com resultado previsível. Há o afloramento de histórias caducas que ressuscitam futilidades e destapam embalagens vazias. Depois temos as fábulas de um só sentido – sem sentido – com moral desenquadrada da realidade.
O céu fica cinzento e verte, gota a gota, cada nota de um fado enviesado e sem remorso, como fosse conduzido na plenitude de uma embriaguez vadia. Calam-se as guitarras. Mutam-se as vozes. Silencia-se a vontade.
EMANUEL LOMELINO
Maria: As mulheres em Mim (excerto 2) - Sofia Preto
terça-feira, 14 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 308 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
308
Somos seres de humores e, por isso, cada momento é irrepetível, porque específico. Por mais que se recriem ambientes e condições, dificilmente conseguimos repetir sensações.
À partida, esta constatação parece inabalável pelas verdades que encerra. No entanto, prestando atenção, verificamos que no seu conteúdo esconde-se um paradoxo.
Se, por um lado, é muito difícil que as nossas acções resultem sempre da mesma forma, levando-nos a vivenciar o mesmo grau de euforia, por outro, como se explica que a insistência numa determinada atitude resulte sempre na mesma insatisfação?
Tendo refletido neste paradoxo, cheguei a uma única conclusão: a tese da irrepetibilidade só é aplicável às boas sensações. Nas nefastas, a repetição resultará sempre em algo negativo. O mesmo é dizer que as boas sensações são uma paleta muita vasta e variável, enquanto um mau momento será sempre um mau momento.
EMANUEL LOMELINO
Sozinho (excerto 2) - Luís Vasconcelos
segunda-feira, 13 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 307 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
307
Apesar dos queixumes – porque os gritos, mesmo em silêncio, têm o condão de aliviar a carga negativa que transportamos nos ombros – descubro-me imune aos contratempos da vida.
A apatia, a inércia, o modo impassível, que me outorgam, como etiquetas tatuadas, revelam o quão falsos são os diagnósticos quando sou analisado com critérios que nunca forma meus e pelos quais nunca me regi.
A vida ensinou-me a não criar expectativas sobre ela própria e a seguir sempre em frente, independentemente das circunstâncias e das consequências, com a cabeça erguida e sem olhar para o que foi, o que teria sido, o que podia ser, ou, para aquilo que será.
A lição maior é simples de entender. A vida jamais será uma conjugação verbal e deve ser vivida, apenas e só, pelo que é.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 15) - Geórgia Alves
domingo, 12 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 306 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
306
É triste viver num mundo que nos pinta com a tinta de deturpação, dando à essência de cada um tonalidades disformes fora de contexto.
Quem for organizado é taxado de obsessivo, quem não for é desleixado. Aqueles que meditam e refletem antes de agirem são perversos ou desconfiados, já quem age por impulso é irresponsável. Os que dão uso à disciplina vivem presos na rotina, os que prescindem dela são rebeldes. Os assíduos e pontuais são chamados de rígidos ou severos, quem falta ou chega atrasado é libertino negligente. Os introvertidos são vistos como antissociais, os extrovertidos são chamados de loucos.
Mas o mais inquietante é ver que a maioria não consegue viver a sua essência e tem os armários repletos de máscaras para usar de acordo com as circunstâncias.
Depois estranham aqueles que se afastam e viram eremitas!
EMANUEL LOMELINO
sábado, 11 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 305 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
305
A praia esvazia-se de olhos postos nas pranchas que deslizam na ondulação costeira, enquanto, na barra, as traineiras são preparadas para a faina, assim que terminar o pôr-do-sol.
As mulheres de negro aglomeram-se no pontão para sacudir os lenços brancos, na angústia dos céus carregados, na incerteza eterna dos ventos e na esperança do retorno breve.
O farol ilumina a liquidez da noite, mas o horizonte fica escondido entre a penumbra e a maresia. O ambiente sepulcral só não é total porque as águas martelam a vulnerabilidade das embarcações ao ritmo das preces afãs.
Às ondas do mar pouco importa se os grãos de areia fina já foram, um dia, seixos lisos ou se as gaivotas poisam para palitar os bicos nas conchas abandonadas. Tampouco querem saber se as estrelas-do-mar são incendiárias jurássicas a preparar terreno para outras espécies ou se, nessa noite, as redes serão capazes de expulsar a fome.
EMANUEL LOMELINO
O fio da meada - JackMichel
sexta-feira, 10 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 304 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
304
Passa mais um dia de vento no estendal e os pombos, quais pintores alucinados, pincelam a roupa lavada de fresco com as suas incontinências tão pérfidas quanto certeiras.
Olho o resultado Van Goghiano e penso estar diante de uma metáfora pulsante e tridimensional da existência – talvez a minha, talvez a de muita outra gente.
Recolho aquelas artes abstratas sem saber se devo reciclar o asseio pós-lavagem ou emoldurar tudo para fazer uma exposição, como aquela que vi, na minha adolescência, num jardim de Óbidos, e reclamar para mim a autoria. Não são muito diferentes.
Mas a dúvida é um fragmento temporal que se extingue quando penso no que iria gastar nos caixilhos. Prefiro a exorbitância do detergente – como está caro! – e desafiar a sorte reiniciando o programa de limpeza.
EMANUEL LOMELINO
Maria: As Mulheres em Mim (excerto 1) - Sofia Preto
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 303 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
303
Tudo começou com o trovejar dos bombos seguido de um choro colectivo dos violinos, primeiro sussurrado, depois bradado. Só depois o clarinete buzinou uma passagem de nível e as colinas deixaram-se florir numa sinfonia de cores exóticas.
Houve uma vertigem zumbida que polinizou um dente-de-leão e as glicínias olharam o céu em prece pedindo, aos deuses florais, permissão para o regresso dos colibris.
A mariposa sacudiu a transparência das asas para receber a simpatia da brisa e serpentear entre as peónias bailarinas.
As campainhas tocaram triângulos a compasso e o salgueiro-chorão aproximou-se do rio para ver, mais próximo, a família de carpas-dragão que manchava a serenidade cristalina das águas.
O pica-pau trauteou morse no tronco rijo de uma laranjeira e a orquestra edílica deu lugar ao silêncio absoluto porque apareceu uma mochila a empurrar um ser bípede que estava noutra sintonia e decapitava margaridas.
EMANUEL LOMELINO
Sozinho (excerto 1) - Luís Vasconcelos
quarta-feira, 8 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 302 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
302
Sim, aos poucos têm-se evaporado os nenúfares e pintarroxos da criação para darem espaço aos gumes afiados das pedras enegrecidas pelas vaidosas fogueiras, alimentadas de toros vulgares, que pululam neste novo desenho de intenções.
Mergulha-se a autonomia expressiva dos voos livres nas masmorras do convencional e os arco-íris são engavetados nas sombras dos profetas eleitos pela unanimidade da preguiça, que graça nos bustos esculpidos pela ignorância.
Assim perecem os fios do irrepetível e nasce a pura absolvição dos espelhos, para contentamento dos usurpadores de ideias que usam sapatos largos e luzes ofuscantes.
Este é um tempo raso que flui, na precipitação do seu descaso enraizado, como um rio daninho que oferece lodo às margens e ceifa, dos salgueiros, a seiva que não precisa nem merece.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 14) - Geórgia Alves
terça-feira, 7 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 301 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
301
Leónidas respirou fundo para aplacar o seu estado de fúria, por ter sido obrigado a faltar ao trabalho, para uma reunião com o diretor de turma do seu filho.
Apesar de ser um aluno exemplar e ter excelentes notas, o professor informou que, há algumas semanas, após as aulas, Lúcio não tomava o caminho de casa e dirigia-se para o acampamento de sem-abrigos, que ficava no outro extremo da cidade. Perante o facto, sentiu-se na obrigação de alertar o progenitor.
Com o intuito de não ser precipitado no julgamento e saciar a curiosidade que aquela revelação havia suscitado, Leónidas decidiu investigar mais a fundo as actividades do filho. Esperou o fim das aulas e seguiu-o. Tal como o professor tinha dito, Lúcio não foi direto para casa e encaminhou-se para o lado oposto.
Chegado
ao acampamento, Leónidas viu como algumas crianças maltrapilhas rodearam o seu
filho e o acompanharam para o interior de uma tenda, tão miserável quanto eles.
Quando tentou aproximar-se para descobrir o que estava a acontecer, foi interpelado por um sujeito. O vozeirão do homem suou como um alarme e, rapidamente, Leónidas viu-se rodeado por alguns sem-abrigo.
Apesar da fúria, mas em inferioridade, explicou a sua presença naquele local e foi surpreendido por uma clamorosa manifestação de reconhecimento por ser pai de quem era.
Leónidas perdeu o soldo de um dia de trabalho, mas ganhou a consciência de ter um filho que, de forma altruísta, sigilosa e desinteressada, passava uma hora do seu dia a ensinar crianças desfavorecidas que não tinham possibilidades de frequentar a escola.
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 6 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 300 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
300
Juro que tento ressuscitar em algumas mortes, mas é difícil devolver a vida a raízes que passaram por impiedosa trituração.
Deixou de haver remédio para colmatar o desconforto provocado pelos engodos permanentes e intencionais. Já não existe antídoto para os embustes perversos. Tampouco há milagre que inverta a falsidade hipocondríaca.
As compressões no peito já não desobstruem os incómodos pérfidos originados pelas frases feitas, lugares-comuns e puxões de tapete.
Nem a manobra de Heimlich consegue desengasgar-me as goelas dos sapos, viscosos e intragáveis, que tentei engolir na crença esperançosa de novos horizontes.
Assim, por razão de sanidade mental e para evitar a putrefação de todos os sentidos, deixei de perder tempo em reanimações e sou mais célere na confirmação dos óbitos em mim.
EMANUEL LOMELINO
Convite da aranha - JackMichel
domingo, 5 de maio de 2024
Diário do absurdo e aleatório 299 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
299
As dores deixaram de ser passageiras e as sílabas tónicas jamais serão analgésicos para a contemporaneidade.
Por mais pensadas que sejam as frases, a criatividade é um ente falecido por excesso de penas ocas.
Há um movimento de passadeira boémia tão ébrio quanto uma reunião de enólogos descredibilizados e os rótulos estão fora de validade para safras novas.
A mesmice é uma obstinação desta época, sem contrastes, como fosse sinónimo de capricho bafiento.
Há uma tendência autofágica que amputa o simples porque as manchetes da moda requerem odes à vulgaridade.
Valha-nos o santo papel reciclado.
EMANUEL LOMELINO