quarta-feira, 1 de maio de 2024

Diário do absurdo e aleatório 295 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

295

Ercília, sentada no seu banco de jardim favorito, interrompeu a leitura, do livro acabado de comprar na feirinha de antiguidades, para observar o jardineiro que parecia estar a conversar com as flores-de-alfazema.

Tal como ela, todos os que ali se encontravam cessaram os seus afazeres para presenciar a cena, que nada teria de inusitado se não fosse de conhecimento público, pelo menos de quem frequentava com regularidade aquele espaço de lazer e descontração, que o jardineiro era surdo-mudo.

Para Ercília, o mais inquietante daquela situação era o facto de, apesar do mutismo claro e evidente, ser invadida pela sensação de estar a presenciar um diálogo definitivo, tamanha a solenidade transmitida pelo olhar irrequieto do jardineiro e pelos movimentos lentos, mas incisivos, que ele fazia com as mãos, como quem revela uma confidência e espera compreensão.

Por breves instantes, os olhos lacrimosos do jardineiro cruzaram os seus e Ercília sentiu um ligeiro desconforto, como tivesse sido apanhada a escutar atrás de uma porta.

Nunca ninguém se deu ao trabalho de associar uma coisa à outra, mas a verdade é que aquele era o último dia de trabalho do jardineiro, antes de aposentar-se.

EMANUEL LOMELINO

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