segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Sempre Comigo - CRISTINA RODRIGUES

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A manhã estava vazia, imersa num olhar apagado. A linha do horizonte, perfeita, sem os retoques subtis das tardes quentes e ondulantes. No ar pairava o cheiro a invocar flores campestres e searas sacudidas pelo vento. A noite fora fresca, as portadas das janelas ficaram abertas e uma aragem fina tinha varrido o espaço, como uma carícia na pele nua. Tudo parecia estar no seu devido lugar, tudo exceto os meus pensamentos, sempre em desalinho, a sacrificar a calma aparente. Desliguei o despertador atempadamente para não acordar com a campainha a tinir-me nos ouvidos, e emergi num torpor enganador de quem ainda dorme um sono sossegado. As noites continuavam inquietas, o sono agitado era pontuado pelo toque das tuas mãos no meu corpo e a tua voz nos meus ouvidos. Acordava coberta de suor e com o gosto do teu beijo, ainda, nos meus lábios. A manhã devolvia-me imperativamente ao dia e à realidade mentirosa: tu não estavas, nem nunca tinhas estado. Talvez para manter a tua voz em mim, deixava-me ficar por mais uns minutos na cama, presa ao desejo, de olhos fechados, imaginando que os teus dedos longos continuavam o seu passeio pela minha pele. Cerrava teimosamente os olhos para não te perder, e a tua presença ali ficava, como uma manta que me aconchegava e devolvia a certeza que, embora ausente, estiveras comigo.
Finalmente deixei-me acordar, espreguicei-me e bocejei. Puxei o lençol para me cobrir e levantei-me levando-o comigo, ele seguiu-me lambendo o chão até à casa de banho. A pequena janela do aposento deixava entrar os raios imprecisos da manhã, por entre a portada, e os mesmos desenhavam reflexos difusos na parede. A luz e a sombra unidas em contornos bem definidos, num bailado sem pertença, (um pouco como nós).
Parei junto ao espelho e olhei-me, nos meus olhos estava refletido o desejo. Estranho olhar esse, uma mescla de anjo e de demónio. Por dentro dessas janelas profundas espreitei o meu amor por ti. Os meus olhos tinham escurecido, o meu olhar brilhava com a mesma intensidade que as candeias na escuridão. Sorri, como quem vê uma miragem que é só sua. Porque há coisas que ninguém nos pode tirar.
Nasceste há muito tempo atrás, quando o meu mundo escurecia. Eu chamei-te sem pronunciar o teu nome e tu vieste sem conheceres o meu. Surgiste como uma brisa, uma bruma sorrateira, um cheirinho a café numa manhã de inverno. Chegaste como uma mão que surge do nada e nos agarra no derradeiro segundo antes de cairmos no abismo. A minha bússola tinha perdido o norte e só me indicava o sul. Dentro de mim pereciam os sonhos e cresciam as incertezas, a par com a mania que o amor não me estava destinado. Acordei para o mundo a sentir-me só e esse sentimento nunca me abandonou. Estar só era o meu fado, tentei contornar essa certeza e acreditar no engano. Tornei a olhar-me no espelho e passeei-me pelos contornos do rosto, as marcas no corpo, o suave respirar no meu peito. Deixei o lençol escorregar e fui lendo as histórias escritas nas rugas da minha pele, descobri-lhe os sinais, as ausências de carinho. Talvez o amor não fosse para mim, mas o tempo coutou-me que a insanidade tudo permite, as peças mudam de lugar, as incertezas podem virar certezas, o errado parecer tão certo. A insanidade permite-nos ser livres, ilimitados, complacentes com a anarquia. Permite-nos acreditar, e isso é tudo o que eu mais preciso neste momento.
Tu não existes, bem sei, mas inventei-te com a certeza que estarias sempre comigo. Assim, nunca estou só. As noites embora inquietas são partilhadas nos teus braços, encosto-me a ti e tu deixas-me ficar. Conheces os meus medos, a fragilidade dos momentos que nos fazem felizes, a fugacidade dos ápices cruciais. Partilho contigo os pensamentos ousados, os olhares demorados, o formigueiro na pele que se deseja, escuto a tua voz que me embala e visto-me com o teu sorriso.
Amanhã o dia amanhecerá novamente juntando-se a todos os dias passados. Insistirei em cerrar os olhos mais uns minutos para não te perder, em manter a sensação vertiginosa do desejo consagrado, gravado na pele, os beijos guardados sobre o coração, os gemidos agasalhados na voz. Manterei a paz que vem com o silêncio. Despertarei para procurar o teu olhar, ouvir a voz que preenche o vazio. Acreditar no abraço que me resgata do mundo, o beijo que me aquece e ilumina. Porque tu não existes... bem sei, mas ninguém precisa de saber que estás sempre comigo.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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