sábado, 11 de junho de 2022

Vô Torgamin (excerto) - ANAMARIA ALVES

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Deixa eu contar do meu avô. Dizem que a gente herda as coisas. Hoje ensinando idiomas para as crianças no Quênia, na África, eu vejo que estamos mesmo atrelados de alguma maneira. Vejo que o povo africano é dos mais inteligentes do planeta e de como dói ver negadas a essas pessoas sobrevivência e humanidade. Eu sinto a dor do esmagamento sistemático dessas crianças pequenas. Muto o microfone, desligo a câmera e choro um pouco. Volto. Meus pequenos africanos me lembram tanta coisa! Eles me lembram de mim. É como apontar um espelho para o passado e a luz que bate me traz no espelho o reflexo do meu avô Quilombola. Ele nasceu em 1920, 32 anos após a "abolição da escravidão". E ele lutou. Todos no Quilombo Chácara dos Pretos lutaram. Vô Torgamin e vô Geraldo lutaram, mas de um jeito diferente. Lembro de escrever o "Laroyê, Vô" em homenagem ao vô Geraldo. Mais lágrimas escorrem, vou ao banheiro do meu quarto e lavo o rosto já vermelho de chorar.
Vovô Otorgamin trabalhou na ferrovia por anos a fio. Um dia, ele caiu em baixo do trem em movimento, a roda vinha em direção a seu pescoço para arrancar-lhe a cabeça. Mais um negro morto. Mais uma vida ceifada por todo o peso do ferro que nos esmaga desde os cascos dos negreiros. Naquele momento, quando a vida passou diante de seus belos olhos cor de noite sem lua, ele ouviu uma voz macia: "Apesar do volume do sangue e da água ser o mesmo, a densidade do sangue é maior que a da água. Por definição, a densidade de um corpo é o quociente de sua massa pelo volume delimitado pela sua superfície externa. Você está ouvindo o Projeto Minerva, na sua rádio ....."

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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